O ponto mais baixo à face da terra é só mesmo isso, o ponto mais baixo. A capital é só mesmo isso, a capital. Os últimos dias na Jordânia, não fosse a fantástica hospitalidade dos locais, seriam desinteressantes. Do outro lado, um país a descobrir. As expectativas eram altas. Relatos de amigos diziam-nos maravilhas da Síria. Mas logo nos apercebemos que, para serem simpáticos, seria preciso pagar. Welcome to Syria!
Chegar ao Mar Morto era um dos pontos altos da viagem, contrariando a realidade que o tem como o ponto mais baixo do planeta, uns 400 metros abaixo do nível do mar. Mas chegar ao Mar Morto vindo de Petra e passando pelo deserto de Wadi Araba é pouco impactante. É chegar a um grande lago salgado que todos os anos diminui drasticamente sem que Israel e a Jordânia cheguem a um acordo quanto ao canal que, ambos, desejam construir há mais de 20 anos. Um país porque quer irrigá-lo a partir do Mar Vermelho, outro porque o deseja fazer a partir do Mediterrâneo. Enquanto ninguém se entende, a casa onde pernoitámos nessa noite frente a esta quantidade de água seis vezes mais salgada que o normal e que, quando foi construída ficava a 20 metros do mar e agora fica a 600, continuará a ver a água afastar-se. Passar pelo Mar Morto não passa do simbolismo disso mesmo, de uma passagem pelo ponto mais baixo do planeta, pois nada tem de interessante a ver e a fazer.
Tal como seguir até Amã, no dia seguinte, era perfeitamente dispensável. Uma das pessoas que nos alojou levou-nos toda a bagagem até à capital, o que nos facilitaria a viagem. No entanto, o vento não estava de feição e empurrava-nos em sentido contrário. Chegámos completamente esgotados, chateados e sem vontade de pegar na bicicleta nos próximos dias. Sabíamos que Amã não era uma cidade bonita, nem sequer interessante, mas soava-nos bem a ideia de podermos, por pouco tempo que fosse, lavar a roupa, colocar coisas no frigorífico, cozinhar e tomar um bom duche – coisas simples que não aconteciam há já algum tempo.
É na parte mais baixa da cidade que tudo acontece, que a vida toma forma, que o burburinho se sente, que as pessoas se atropelam umas às outras nas compras, nas inúmeras lojas vendendo a mesma coisa, a maior parte de produção chinesa: artesanato, roupas e afins. É aqui que vivem centenas de estrangeiros, trabalhando em multinacionais, nas Nações Unidas, em embaixadas, em escolas internacionais e organizações não governamentais. É aqui que vivem milionários iraquianos, depois de terem saído do país aquando da guerra do golfo. A cidade tem de tudo, para todos os gostos e todos os bolsos. É uma cidade cara. À parte disso, assim como o Mar Morto, nada de interessante a assinalar.
Sair deste imenso centro urbano onde vivem 2 milhões de pessoas foi uma boa sensação. Jarash, a cidade que tínhamos como destino nesse dia, ficava a uns 60 quilómetros. A juntar a estas duas boas notícias, mais uma: seria sempre a descer. Pelo meio, uma estrada sem importância, sem qualquer paisagem de relevo, sem ninguém que nos convidasse para um chá, nem que fosse um último chá, antes de deixarmos o país para trás. Ao fundo, começámos a ver as ruínas que fazem da cidade um ponto de passagem obrigatório. Não fazendo parte de qualquer rota comercial de relevo da antiguidade, era ainda assim uma província romana com quase 20.000 habitantes, sendo portanto fácil de adivinhar a dimensão das ruínas na actualidade, muitas delas em óptimo estado de conservação.
Estacionámos as bicicletas ao lado da polícia e visitámos aquilo que nos foi permitido para, logo de seguida, nos sentarmos para um bom piquenique. O dia estava cinzento e nós também. Não nos apetecia pedalar muito mais e ficar num hotel, naquela que seria a nossa última noite na Jordânia, estava fora de questão. Sair um pouco da cidade e tentar encontrar quem nos alojasse foi a solução encontrada. Ainda com as ruínas bem visíveis, perguntámos na primeira casa escolhida se podíamos montar a tenda por uma noite. “Welcome!”, e depois da tenda montada, acabámos por dormir numa das salas da família que habitava essa casa. “Lá fora está muito frio. Ficam cá dentro. Têm fome? Sede?”. Tínhamos acabado de almoçar mas isso não foi razão suficiente para, minutos depois de termos chegado, nos aparecerem à frente com esparguete e bolas de carne guisadas. Felizmente não foram cozinhadas propositadamente para nós, porque foi tudo para trás depois de termos novamente explicado que tínhamos almoçado há pouco e que éramos vegetarianos. Entenderam perfeitamente e todas as refeições seguintes seguiram “as regras”. À noite, apesar de cansados, acabámos em casa de um familiar a beber café, chá e a responder a inúmeras perguntas e a afirmar uma série de vezes “Yes, very good!“, quando nos diziam: “Cristiano Ronaldo”.
Dali até à Síria, uma boa pedalada de um dia e mais um furo a somar aos 12 que já levo nesta viagem. A placa assinalava “Syrian Border“, chovia mas, nem por isso, um pequeno arame deixou de entrar na minha câmara-de-ar, levando-me a parar mais uma vez. À saída da Jordânia, tudo muito rápido, pagamento feito e carimbos no passaporte. À entrada da Síria, tudo mais lento, pagamento feito, perguntas e mais perguntas, papéis preenchidos, mais perguntas, mais um pedido para ver o passaporte e, metros depois, a fotografia de uma nova figura por todo o lado. Na Jordânia, o Rei. Na Síria, o Presidente, ou o Rei (ninguém consegue bem explicar), ou aquele sujeito alto de bigode que só tem duas ou três fotografias, porque não fica bem em nenhuma. Estes seres que têm necessidade de ver fotografias suas por todo o lado têm um grande problema de autoconfiança, ou será que as pessoas gostam mesmo de ter fotografias deles por todo o lado? No Egito era assim, até a população se revoltar.
“Na Síria pedem dinheiro por tudo e por nada”, tinham-nos dito no Egito e umas tantas vezes na Jordânia. Não podíamos acreditar. Amigos nossos haviam viajado no país e disseram maravilhas, afirmando ser um dos povos mais acolhedores do mundo. Entrámos com as expectativas bem lá em cima.
Depois de um caloroso “Welcome” do primeiro guarda na fronteira, um “Avancem, não podem tirar fotografias” de um segundo guarda, quando tentávamos assinalar a nossa entrada no país, a descoberta de que muito pouca gente fala qualquer outra língua que não o árabe, o facto de nos terem dito, quando procurávamos um hotel barato para ficar, que por uns sete euros podíamos ficar lá em casa e de nos tentarem enganar com os preços nos dois únicos hotéis da cidade, a nossa ideia da Síria começou a desmoronar-se. A somar a tudo isto, a chuva e o muito frio.
No dia seguinte, já noutra cidade, quando pedimos o contacto telefónico de uma pessoa que havíamos conhecido pela internet e que nos ofereceu alojamento, a resposta do seu irmão foi a seguinte: “Quanto me pagam para vos dar o número?”. Estávamos surpreendidos. Estupidamente surpreendidos. Onde está, então, a hospitalidade síria?
O projecto Eurásia é uma viagem de bicicleta entre Portugal e Macau, com passagem pela Europa, Médio Oriente e Ásia Central e 19 meses de duração. Ao longo de todo o percurso foram publicadas crónicas com periodicidade média quinzenal.
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