Dos sítios Património Mundial da Humanidade de Bosra e Palmyra, aos desencontros na cidade mais antiga do mundo, até ao silêncio encalhado entre o deserto e a montanha no Mosteiro de Mar Musa, a nossa viagem pedala lentamente, ao sabor da nossa vontade. Porém, um dia, temos de partir em direcção ao norte.
Escrevemos de Mar Musa, um mosteiro a 80 quilómetros de Damasco e a nossa estadia aqui está quase a terminar. Viemos para ficar duas noites e já aqui estamos há uma semana. A razão da nossa permanência aqui?
Chegámos a Damasco depois de termos passado pelo impressionante sítio histórico e Património Mundial da UNESCO de Bosra, a segunda capital do reino nabateu, o mesmo que fez de Petra, na Jordânia, a sua capital. A parte antiga da cidade está aberta aos visitantes e a extensão das ruínas é enorme. Ao caminharmos pela cidade, podemos ver diferentes estilos de arquitectura e diferentes níveis pelos quais a cidade já passou. No entanto, o mais interessante para se ver em Bosra é o teatro romano ali existente. Coberto até meados do século XX por areia, terra e casas que os locais, dentro do espaço, foram construindo, foi quando decidiram recuperar o teatro e o fizeram “renascer”, que foi descoberto um dos mais belos e bem preservados teatro romanos do mundo.
Com capacidade para 9.000 pessoas, quem o vê de fora, tem a impressão de estar a olhar para um castelo árabe, tamanhas são as muralhas que ali foram construídas para o proteger. Apesar de alguns problemas que tivemos em Bosra, alguns deles com a polícia que segue e controla toda a gente na Síria, é uma cidade que aconselhamos, apesar de ficar um pouco fora do circuito normal do viajante. Fora do trajecto, mas totalmente dentro da rota do turista está Palmyra, possivelmente a maior atracção do país, com as ruínas que se espalham por mais de 50 hectares.
Deixámos as bicicletas em Damasco e entrámos pela primeira vez num autocarro desde que começámos a viagem. A viagem de 3h30 até Palmyra faz-se por entre um deserto árido onde são poucas as pessoas e as casas que se vêem. A chegada é num qualquer restaurante da cidade onde a companhia recebe alguma comissão. O nosso ponto de chegada foi a 6 quilómetros do centro de Palmyra e por um feliz acaso, pois ninguém nos avisou que já havíamos chegado. Ao sairmos, como quase todos, um taxista que a seguir nos queria cobrar uma quantia de se ficar sem palavras por meia dúzia de quilómetros, disse-nos que ali era o sítio, provavelmente, onde queríamos ficar, Tadmor, a cidade das tâmaras, como é conhecida no Médio Oriente! Já com a chave do quarto de hotel no bolso, fizemos uma primeira abordagem às ruínas e esperámos o pôr-do-sol.
O vento soprava forte, fazia frio no deserto, mas ter toda aquela imensidão de ruínas pela frente era um espectáculo único e, por mais turístico que seja, há sempre uma grande extensão de Palmyra só para nós! O dia amanheceu cinzento, com muito frio e, de vez em quando, uma tempestade de areia levantava-se do nada. Percorremos os monumentos mais emblemáticos: o templo de Bel, o anfiteatro romano, os túmulos, mas foi do topo da colina onde se encontra o castelo construído no século XVII pelos árabes que temos uma noção de onde estamos. Não minto quando digo que olhando não conseguimos ver a cidade por completo, ela “renasce” todos os dias a cada nova escavação que se faz.
Voltados a Damasco, onde já tínhamos passado quase uma semana, e a rotina dos nossos dias não se modificou. Depois dos normais desencontros pelas ruas da cidade, acabávamos os nossos dias num pequeno café às portas da velha Damasco a ler e a desenhar, enquanto bebericávamos um café turco ou um chá com demasiado açúcar.
Ao nosso lado, shisha, tão normal por estes lados, e por entre um trago ou outro, o fumo saía da nossa boca e o cheiro agradável a maçã espalhava-se e juntava-se aos dos outros clientes.
Sair de onde nos sentimos bem não é fácil e a capital da Síria tem essa particularidade: a de nos fazer sentir demasiado bem, a de nos proporcionar imensas coisas para fazer, a de nos propor cursos de árabe a preços mínimos, a de ter uma vida activa como não tínhamos há muito tempo. Sair de Damasco foi porém, obrigatório, pois queríamos seguir viagem, seguir para norte e depois para o oriente.
Entre Damasco e o Mosteiro de Mar Musa fica Maalula, uma pequena vila em tons de azul, presa na montanha e repleta de capelas e igrejas que fazem deste pequeno povo um caso aparte de quase todo o país. Além da religião, esta é uma das únicas três cidades no mundo onde o aramaico, o idioma falado por Jesus Cristo, é ainda utilizado na comunicação entre as pessoas.
O que nos levou ali foi o convento de St. Takla, uma mártir que depois de se ter entregue totalmente a Deus após ter escutado São Paulo, foi sentenciada à morte pela mãe e pelo homem a quem estava destinada e, fugindo dos que a tentavam apanhar, encontrou-se no sítio onde hoje existe Maalula, frente a uma montanha que não lhe dava qualquer saída. Rezando a Deus, no entanto, a montanha dividiu-se e Takla conseguiu escapar ilesa, vendo-a fechar logo de seguida, salvando-lhe assim a vida. Refugiou-se depois numa gruta onde permaneceu até ao fim dos seus dias e onde foi construído depois o convento de freiras e órfãos. Assim reza a lenda de Maalula.
E depois existe Mar Musa, onde a nossa viagem se encontra neste momento, encalhada entre a montanha e o deserto. A 15 quilómetros da cidade mais próxima, este mosteiro reconstruído a partir de 1982 é um ponto de encontro entre as religiões de todo o mundo – especialmente entre a muçulmana e a cristã. Há poucas palavras que façam justiça ao local. Além de toda a história que tem, o conceito-chave em Mar Musa é a de partilha, de comunidade, de que, se cada um fizer um pouco, juntos fazemos muito. Viemos para ficar duas noites e logo nos primeiros minutos nos disseram: “Duas noites é pouco. Têm de ficar mais tempo. Melhor, fiquem o tempo que quiserem”. Assim foi.
Longe de ser um hotel, são muitos os viajantes que aqui chegam vindos de todo o mundo, porque o espírito do mosteiro já galgou fronteiras. Aos que pensam em viajar para se divertir, para beber uns copos, para ficarem acordados a noite inteira, este não é o local. A Mar Musa chega-se para descansar, para se estar em silêncio, para meditar, para nos encontrarmos espiritualmente, para ouvir. Aqui, tudo é de todos, tudo é feito por todos, tudo é dever e direito de todos. A comida, a dormida, a bebida. E o mais surpreendente é que tudo é dado em troca de um donativo, que não é sequer obrigatório. E aqui estamos nós, no silêncio da Síria, quase com o visto a terminar, e ainda não chegados nem a metade do percurso no país. Amanhã, talvez, seja o dia da partida… talvez.
O projecto Eurásia é uma viagem de bicicleta entre Portugal e Macau, com passagem pela Europa, Médio Oriente e Ásia Central e 19 meses de duração. Ao longo de todo o percurso foram publicadas crónicas com periodicidade média quinzenal.
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