Da fronteira entre a Síria e a Turquia levamos o desespero no não-diálogo com as autoridades, as tentativas de arranjar um sítio para dormir sem que ninguém nos entendesse, e a simpatia turca sempre acompanhada por um copo de chá.
“O que é isso?”, pergunta-me um polícia na fronteira síria apontando para a bicicleta. “Diz-lhe que é um barco!”, ouço a Tanya dizer-me. “Uma bicicleta?”, respondo-lhe em tom de pergunta, surpreendido também, e pensando que poderia ser para os apanhados. Mais à frente, quando apresentámos os passaportes para estes serem carimbados e para assim podermos entrar na Turquia, finalmente, dizem-nos: “Vocês já ultrapassaram o tempo previsto em uma semana.”
Sabia que não poderia ser tão fácil sair daqui, penso para mim próprio e respondo: “Sim, é verdade, já estamos aqui há mais de 30 dias, mas quando estivemos em Homs, propositadamente para estender os vistos, disseram-nos no gabinete de imigração que não seria necessário, pois quem tira um visto de quinze dias, pode ficar um mês e quem tira de um mês, pode ficar cinquenta e quatro dias” – é verdade que achámos estranho tudo aquilo, mas a verdade não era outra, a extensão do visto foi-nos recusada e a justificação foi mesmo essa. A outros amigos que fomos encontrando pelo caminho foi-lhes dito a mesma coisa. Porém, a resposta não poderia ser mais concludente: “Sim, nós acreditamos, mas agora não podem sair do país porque já ultrapassaram o tempo permitido”.
“E então, o que fazemos agora? A culpa não é nossa…”
“Agora esperam uma ou duas horas até o chefe chegar e depois ele decide. Mas talvez tenham de voltar para Latakya” – responderam e nós estávamos estúpidos.
“Desculpe? Nós estamos de bicicleta…”
“Apanham um táxi!”, a resposta foi imediata.
“Ok, nós esperamos” – e rendemo-nos à incompetência das autoridades.
Estava sol e a placa que dizia “Welcome to Turkey” estava ali a uns cem metros, vermelha a brilhar! As horas passaram, a noite caiu e nós insistíamos em saber novidades, mas a resposta era sempre a mesma: “Não podemos fazer nada, vão ter de esperar”. Mais tarde, andávamos nós de um lado para o outro dentro da sala de espera, desesperados, um dos polícias chamou-nos e disse que ia telefonar ao seu superior. Dois minutos depois voltava e dizia, sorrindo: “Sem problema. Podem sair”. Carimbou-nos os passaportes num processo que não demorou mais do que cinco minutos e em tom de despedida perguntou: “Com toda a certeza voltarão, certo?”
Não sabemos se será tão certo, pelo menos tão cedo. É demasiada burocracia, demasiada “perseguição” por parte das autoridades, demasiadas perguntas, tudo em demasia, mas enfim, com o Iraque ali ao lado, Israel mais abaixo, os confrontos na Líbia, as mudanças no Egito, tudo pode ser justificado ou não.
Entrar na Turquia de noite não é propriamente o melhor cenário, ainda por cima quando a fronteira é a Síria. O país anterior, fortemente militarizado. A Turquia então, nem se fala. Logo na entrada, três militares aproximaram-se dizendo que não podíamos estar ali parados, porque era uma zona do exército. Justificamo-nos com o facto de estarmos a viajar de bicicleta e de querermos tirar uma foto em frente ao sinal que nos dava as boas-vindas ao país. “Ok, mas agora podem continuar” – e nós continuámos.
Numa pequena vila adiante, depois de quilómetros a pedalar numa noite cerrada, dirigimo-nos a alguns habitantes perguntando onde poderíamos acampar. Depois, a mais um posto militar. Ninguém dizia uma palavra noutra língua que não fosse Ronaldo. Poderíamos acampar, entendemos, mas só depois da autorização da polícia. Fomos para a polícia e ofereceram-nos um chá (nisto a Turquia é exemplar). “Podem dormir na Casa dos Professores, uns duzentos metros à frente. Nós já telefonámos.”
“São 50 liras”, dizem-nos na Casa dos Professores. “Mas ainda agora estivemos na polícia e eles disseram-nos que sim.”, respondemos. “Sim, mas são as ordens que temos, pedimos imensas desculpas.” Desculpas pedidas e o Rafael e a Tanya estavam outra vez na rua. Plano B? Pedir ao Crescente Vermelho (o mesmo que a Cruz Vermelha). “O meu chefe mas onde não temos espaço pois, mas teriam que sair às sete da manhã mas o meu chefe não sei ”, gaguejava a senhora, arranjando desculpas para não nos acolher. “Pronto, deixe estar, mas ajude-nos a escrever uma mensagem em turco para batermos por aí, em alguma porta”, dissemos, com um sorriso cansado na cara, e partimos para o plano C: bater às portas.
Na primeira, não tivemos sucesso. Na segunda, um homem nos seus trintas abre-nos a porta e apresentamos o pequeno bilhete. Começa a falar alto, num misto de ansiedade, emoção, simpatia, hospitalidade! Diz meia dúzia de palavras à mulher e ela aparece à porta com uma nota cor-de-laranja (pelo menos 50 liras estavam ali) e com o seu inglês primário, conseguimos perceber que tinha muito dinheiro e que nos ia levar a um hotel.
“Não, não, não!” E explicámos no nosso turco-português-arábico-inglesado que não queríamos hotéis, que queríamos ficar com os locais e nisto aparece um grupo de estudantes que também eles, no seu mix de línguas onde o português não tinha lugar, nos ajudaram a explicar ao homem a nossa intenção. Era bonito de se ver, toda a gente aos gritos no meio da rua, de noite, uns rindo-se – os estudantes – outros quase implorando de joelhos ao humilde senhor que não nos levasse para nenhum hotel – nós -, e a família que nos olhava de dentro de casa, quais extraterrestres acabados de aterrar e que foram bater, logo por azar, àquela porta. Azar ou não, o certo é que acabámos todos – nós e a família – a jantar dentro de casa, quentinhos e depois de horas a comunicar, com dicionários francês-turco e turco-inglês, com um catraio de quatro anos a repetir-nos os nomes dos seus brinquedos infinitamente sem que conseguíssemos percebê-lo, acabámos por adormecer como uns anjos. No dia seguinte, depois do pequeno-almoço com os restos do jantar, mas com pão fresquinho, e já depois de tudo colocado nas bicicletas, o humilde homem insistia em dar-nos dinheiro para comermos. “Não, não queremos. Muito obrigado por tudo, mas não podemos aceitar”, dito mais com gestos do que por palavras. Ele entendeu.
Pela frente, a Turquia com as primeiras montanhas num verde intenso, as primeiras flores nas árvores, os pastores por todo o lado e a simpatia acompanhada por copos de chá.
O projecto Eurásia é uma viagem de bicicleta entre Portugal e Macau, com passagem pela Europa, Médio Oriente e Ásia Central e 19 meses de duração. Ao longo de todo o percurso foram publicadas crónicas com periodicidade média quinzenal.
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