O Mekong revelou-se-nos, ainda, autêntico. Pequenas aldeias ancoradas nas suas margens despem-se de preconceitos e mostram-nos o que é viver-se livre. A beleza das pessoas, a sua simplicidade, simpatia e naturalidade fizeram deste trajeto um dos mais bonitos desta odisseia. Simplesmente, Mekong!
O Camboja faz-se em duas estradas: a nacional 6 que desce do norte até Phnom Penh e a nacional 7 que sobe da capital até ao Laos, transformando-se depois na nacional 13, já no Laos.
Se da primeira não há muito por onde fugir, da segunda um caminho em terra batida e, mais tarde, um trilho proporcionam-nos uma das mais belas experiências no país, embora só acessível a quem tenha transporte próprio, pois todos os autocarros e carrinhas apinhadas de backpackers rolam no asfalto cansativo e despido de interesse da nacional 7. Foi exactamente pelo caminho empoeirado que seguimos, cheios de orgulho pela nossa escolha acertada.
Os dias que passámos a pedalar ao longo de um dos rios mais míticos do mundo: cruzamento de tantas culturas, meio de comunicação, sustento para a maior parte das vilas ancoradas nas suas margens, local de inspiração de tantos livros, tanta arte foram de uma calma total, assim como o é cada quilómetro de terra percorrida, observando tamanha corrente de água.
De Phnom Penh sai-se pelo meio de carros que se cruzam sem qualquer respeito pelas regras, escapes que cospem fumos negros, uma névoa provocada pela poluição, pela constante queima dos terrenos para produção agrícola, pelos incêndios que consomem o país, por pessoas que se esforçam por sorrir num corre-corre anormal numa capital destas dimensões. A globalização traz o stress à mais pequena das vilas. Chega a todos.
Escapámo-nos dos escapes e entrámos num atalho que nos deixava ver o Mekong do lado direito. Se existe alguma razão que me faça viajar, essa é, sem dúvida, a proximidade às pessoas. Nesta viagem, mais no sudeste asiático do que noutro qualquer lugar, sinto que o turismo chegou com força e, se em alguns locais a autenticidade se manteve, noutros ela desaparece a cada minuto que passa, com uma cara cada vez mais ocidental – essa parecença que os asiáticos querem ter connosco, sem que nenhum de nós perceba o porquê.
Se existe uma razão para que tenhamos adorado fazer todo este trajecto, essa razão prende-se com a autenticidade… ainda! Disse-nos o Padre Lucca, o responsável numa pequena comunidade cristã nas margens do rio, que “já andam aí uns chineses a fazer medições. Qualquer dia, temos aí uma linha de asfalto onde hoje existe esta poeira. Bom para eles [população] mas muito mau para a sua identidade”.
O que guardamos destes dias é a identidade que ainda existe, a naturalidade com que os meninos correm nus na rua, com que as meninas usam somente as suas saias e deixam o tronco nu, com que os adultos tomam os seus banhos matinais nas mangueiras que trazem água do rio, com que as mulheres despem o seio para amamentar os filhos, com que os sorrisos se escapam com uma sinceridade sem igual.
Não nos interessa se em mais de trezentos quilómetros existem apenas duas povoações com hotéis. Não nos interessa se chegamos ao fim do dia e não temos água a cair-nos em cima para nos tirar o pó do corpo sujo. Não nos interessa se teremos ou não dificuldade em explicar vezes sem conta que somos vegetarianos. Não interessa se cansa mais pedalar neste manto de buracos e solavancos, areia que engole os nossos pneus, de trilhos sem sinalização. Não interessa se quem nos vê passar não nos entende e se não os entendemos a eles, que nos seja complicado até pedir água. Quando chegámos à fronteira com o Laos, quase uma semana depois, sentíamo-nos maravilhosamente bem! Sujos, cansados e felizes!
O Camboja pode até nem ter sido o nosso local de eleição nesta viagem. Não é o mais fascinante dos países. Porém, foi aquele em que até agora nos sentimos mais perto do que é ser-se natural! Os homens são magros e musculados, resultado do trabalho árduo. As mulheres incrivelmente belas, uma mistura de índias amazonas e asiáticas, que nos fazem sonhar. As crianças, selvagens, sãs ágeis, rijas, livres! Até os animais, todos eles, vivem como se a sua existência nunca lhes trouxesse a morte, felizes, brincalhões, autênticos! O Camboja que logo deixámos para trás, mostrou-nos uma espécie de liberdade a que já não estávamos acostumados.
O Laos levou-nos umas notas “por debaixo da mesa” só para que nos carimbassem os passaportes. Que excelente maneira de dar as boas-vindas. “Dois dólares a cada um!”, disseram-nos. “Para os copos de logo à noite”, acrescentámos nós.
O dia estava a ser longo demais. Queríamos chegar a Don Det naquela mesma tarde. A ideia de entrarmos noutro país e pedalar para um local conhecido como 4 Mil Ilhas fez-nos fazer um ligeiro esforço. A contrapartida chegou quando colocámos as bicicletas na varanda do nosso bungalow virado para o Mekong, com uma das mais bonitas árvores como pano de fundo e um silêncio ensurdecedor.
Lemos em vários sítios que Don Det era a mais concorrida das 4 Mil Ilhas, cheia de guesthouses, turistas de cerveja na mão, biquinis e calção às flores, restaurantes com menus western e agências para todo o tipo de aventuras. Como em tudo, há sempre a rua de trás. Como em tudo, fugir-se da praia cinco por cinco cheia de miúdas mais brancas que a areia e de camones avermelhados é uma questão de opções. Nos três dias que ali passámos, não me lembro de ter ouvido música a “bombar”, de ter passado por adolescentes a cair de bêbados ou de sentir que tenho-de-fugir-daqui-que-isto-não-é-para-mim.
Aliás, voltámos a um terreno abandonado frente ao rio por duas vezes, sonhando com o nosso próprio hostel, naquela mesma ilha turística, um dia! Quem sabe?
O barco, com mais meia dúzia de passageiros e as nossas bicicletas, levou-nos de novo a terra firme. A próxima paragem seria Champasak, a pequena vila que serve de base a um dos dois locais que fazem parte da lista de património mundial da UNESCO no país.
A nacional 13 começava ali, para nosso azar…
O projecto Eurásia é uma viagem de bicicleta entre Portugal e Macau, com passagem pela Europa, Médio Oriente e Ásia Central e 19 meses de duração. Ao longo de todo o percurso foram publicadas crónicas com periodicidade média quinzenal.
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