No Largo dos Trigueiros, numa qualquer tarde de verão, podemos ver sentados no banco por baixo da árvore vestida de crochet senhoras idosas a fazer tricot e a conversar, homens negros a ouvir música cabo-verdiana, mulheres de sari, jovens a fumar uma ganza ou um par de turistas louros cansados. Na esplanada do Cantinho do Aziz serve-se comida moçambicana, o atelier de Camila Watson está em frente, no Trigueirinho come-se comida portuguesa. Caminhando na Rua do Benformoso, ouve-se chinês e bengali. Há lojas chinesas e talhos halal, restaurantes indianos, bengali, chineses e vietnamitas. Veem-se caracteres chineses nas campaínhas dos prédios. O M da Mouraria actual é de Multiculturalidade.
Mas este M é resultado de outro, que vem da história do bairro. O M do nome, M de Mouros que foram expulsos do que era a sua cidade, em 1147, data da conquista de Lisboa. Empurrados para fora da antiga muralha, do lado escuro da encosta do castelo, aqui ficaram até serem de novo expulsos ou reconvertidos, no século XV. O Gueto dos Mouros, a Mouraria.
Esta visão esquecida e marginal do bairro manteve-se ao longo dos séculos e das várias populações que o foram habitando, criando um ambiente favorável à prostituição e ao tráfico de drogas. Isto reflectiu-se na degradação dos edifícios e na falta de apoios a uma população empobrecida, envelhecida e excluída. As sucessivas vagas de migrantes – os trabalhadores rurais que chegavam a Lisboa à procura de melhores condições e os imigrantes, primeiro dos países africanos de língua portuguesa, depois da China e do Bangladesh – que hoje dão à Mouraria parte da sua identidade continuaram, como os Mouros, isolados. E o resto da cidade, de costas voltadas para ele, desconhecia um dos bairros mais antigos de Lisboa.
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Mouraria, bairro em transformação
Nos últimos anos, através do trabalho de associações locais e com o apoio da Câmara Municipal de Lisboa, o bairro da Mouraria sofreu uma grande transformação. Foram reabilitados edifícios e ruas, surgiram novos espaços públicos, restaurantes e cafés, desenvolveram-se projetos sociais e de reintegração e promoveu-se o turismo como forma de “abrir” o bairro, ao mesmo tempo que se melhorou para os seus habitantes.
Neste trajeto de abandono, perdeu-se muito do passado, mas ainda é possível descobrir pedaços dele. Estão espalhados pela Mouraria estes vestígios da história, misturados com o caldeirão de culturas que carateriza o bairro desde a sua génese.
No Largo do Martim Moniz, um dos seus limites, está a Igreja de Nossa Senhora da Saúde. Em frente a esta localizava-se uma das portas de entrada (ou saída) da cidade, pela muralha fernandina. A igreja foi construída no século XVI, para a devoção primeiro a São Sebastião e depois a Nossa Senhora da Saúde, como forma de tentar conter a peste fora das muralhas da cidade. A maior parte da igreja foi reconstruída após o terramoto de 1755, mas mantém-se ainda um portal do início do século XVIII.
Ainda nesta zona, por cima da farmácia, encontra-se a placa comemorativa da construção da cerca Fernandina, em 1373/75, que passava justamente neste lugar.
Ao lado da igreja, no número 64 da Rua da Mouraria, está o antigo Colégio dos Meninos Órfãos, com uma escadaria coberta de painéis de azulejos setecentistas que representam passagens do Antigo e do Novo Testamento.
Continuando em frente, chega-se à Rua do Benformoso, com a sua variedade de restaurantes. No Pho Pu come-se as famosas sopas vietnamitas, em vários andares há restaurantes chineses “ilegais”, montados nas casas, e abundam também os restaurantes do Bangladesh.
Na Rua das Olarias a Cozinha Popular da Mouraria abraça toda a diversidade cultural do bairro, através da comida, ao mesmo tempo que fornece um espaço de partilha e educação da comunidade (para os moradores as atividades são gratuitas). É uma cozinha aberta onde se pode almoçar os pratos do dia, participar num workshop – que tanto pode ser dado por um chefe “oficial” como por um dos moradores do bairro -, jantar com um grupo de amigos (só por marcação), convidar o seu grupo de amigos e cozinhar para eles, ou juntá-los todos na cozinha e fazer um grande festim de pratos. Nas palavras da fundadora, “é como se fosse uma cozinha familiar grande; e pode estar aqui um grupo de fora a jantar e os miúdos do bairro a cozinhar.”
O Largo da Achada, do outro lado do bairro, esconde uma das casas mais antigas da cidade, com origem no século XVI e sobrevivente do terramoto de 1755. Repare-se no balcão de ressalto e nas portas e janelas ogivais, típicas da construção medieval.
Neste largo pode-se também visitar a Casa da Achada, um centro cultural dedicado à obra de Mário Dionísio. Aqui, numa antiga oficina metalúrgica renovada, pode aceder-se a obras do pintor e de outros, que lhe pertenciam. Tem também um espaço de leitura e de sessões públicas, de encontros e convívio, há uma biblioteca de acesso livre e um quintal arborizado, onde se realizam atividades no verão.
Mais abaixo, a Igreja de São Cristóvão, também ela sobrevivente ao terramoto, esconde 35 pinturas sobre tela datadas do séc. XVII e da autoria de Bento Coelho da Silveira, com representações da vida de São Cristóvão. Estas telas, bem como a igreja em si precisam de obras de restauro urgente, para as quais surgiu um movimento que tem dinamizado diferentes atividades para a angariação de fundos e partilha da história do local.
Em torno desta zona podem encontrar-se outras amostras de cozinhas do mundo. No Cartuxinha, comida são-tomense, no Alcaide africana de vários países, e brasileira, na Cantina Baldraca, italiana, n’O Eurico, portuguesa. Variedade não falta, é perder-se nas ruas estreitas e ir experimentando.
Na entrada da Rua do Capelão há uma guitarra em pedra. Na placa da rua lê-se “Símbolo da Mouraria, Matriz do Fado”. O M da Música.
Aqui, nas tabernas onde trabalhavam as prostitutas do século XVIII, nasceu o Fado. Mais acima, no Largo da Severa, nasceu e viveu Maria Severa. Prostituta, amante do Conde de Vimioso, levou o Fado das ruas para os salões da nobreza, no século XIX. Foi a primeira fadista conhecida. A sua casa é hoje um restaurante e casa de fados, o Maria da Mouraria. É dos poucos no bairro. A Mouraria manteve-se fiel às suas origens e por aqui o fado ouve-se espontaneamente na rua, em espetáculos organizados ou cantado por quem aparece, nos restaurantes, e não em casas especializadas.
No Beco do Forno, num sábado à tarde, mantém-se viva esta tradição. Correm-se as cortinas, que o Fado quer-se à meia-luz, e entre um copo de vinho e um flirt inocente, um senhor de cabelo todo branco canta “Aquela Maria”, dedicando-o “à minha querida D. Maria da Conceição, aqui ao meu lado”. A senhora cora e pede que não a trate por dona, “meu amigo”. No fim abraçam-se, toda a gente bate palmas.
Este e outros momentos repetem-se todas as semanas, entre as 15:00 e as 18:00. O restaurante trata dos guitarristas, quem quer canta. Paga-se o almoço, e fica-se pela tarde. Reúnem-se principalmente vizinhos, amigos mais antigos do bairro, mas toda a gente é bem-vinda. Sente-se o espírito antigo, o do Fado alegre, picante, do povo. O do sentimento, mais que da técnica.
Na cafetaria da Mouradia, a casa da associação Renovar a Mouraria há periodicamente noites de Fado, tocado e cantado por gente do bairro, profissionais e não profissionais. A mesma associação organiza visitas guiadas sob o mote da história do fado e, no verão, há visitas cantadas pelas ruas e tasquinhas.
Nesta casa, celebra-se também a multiculturalidade. Juntam-se os dois M’s, com concertos de vários tipos de música. A Renovar a Mouraria é uma das principais responsáveis pela dinamização e revitalização da zona e as receitas da cafetaria revertem para as suas muitas ações de ajuda aos moradores.
Por todo o bairro, a homenagem de Camila Watson aos seus habitantes estende-se aos fadistas, e há fotografias destes nas paredes. No Beco do Jasmim, vemos Fernando Maurício, o “Rei do Fado”. Filho da Mouraria, é considerado o maior fadista da sua geração (anos 60 a 90, morreu em 2003). Em julho, abriu na Rua João do Outeiro, a Casa Fernando Maurício, um mini museu dedicado ao músico. Aqui é possível conhecer todo o percurso do fadista, ouvir a sua discografia completa e redescobrir filmes de arquivo com atuações ao vivo e entrevistas.
Já quase a chegar à Graça, na Travessa da Nazaré, um palácio antigo junta história, tradição, desporto, e fado. O Palácio dos Távora foi doado ao Grupo Desportivo da Mouraria, e é a sua sede desde 1972. Tem vários salões ainda com a decoração original, que sobreviveu ao terramoto de 1755, de onde se destacam os azulejos que cobrem muitas das paredes, um bar, onde funcionava a cozinha do palácio e um terraço/esplanada com uma vista privilegiada para o Castelo de São Jorge.
Em 2012, foi aqui criada a Escola de Fado da Mouraria. No segundo sábado de cada mês, às 21.30h, no Salão Fernando Maurício, realizam-se tertúlias de fado, com os alunos e convidados a darem espetáculo de entrada grátis.
Aqui, como no resto do bairro, misturam-se os M’s em nome da comunidade. Venha descobri-los!
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