Escolho a pequena povoação piscatória de Santa Fé, nas águas tépidas das Caraíbas venezuelanas, como último destino da minha odisseia planetária. Faço passeios de barco, conheço as praias de uma região menos segura do que aparentava e cruzo-me com um revolucionário que estivera em Portugal no pós 25 de Abril, antes de dar por finda esta volta ao mundo e regressar a solo luso. Imensamente feliz.
Estava na Venezuela quando entrei numa agência de viagens para indagar sobre os preços de um voo especial. O de regresso. Ainda me recordo do que escrevi na primeira crónica desta série. “A liberdade de decidir, a cada momento, onde acordar no dia seguinte, é um dos mais reconfortantes luxos que terei ao meu dispor nos tempos mais próximos” – antevia, nessa altura. Assim foi durante toda a viagem.
Catorze meses depois, com a mesma liberdade que sempre me acompanhou nas encruzilhadas do mundo, optei por voltar a acordar no mais familiar de todos os lugares. Aquele a que, após calcorrear parte do nosso planeta, continuarei a chamar casa. Quando saí da agência de viagens, tinha um voo marcado para Portugal para daí a uma semana.
Havia que aproveitar os últimos dias e o apelo da costa caraíba fez-me entrar num por puesto – meio de transporte comum na Venezuela, que não é mais do que um táxi ou miniautocarro que só arranca quando a lotação estiver completa – com destino à pequena povoação piscatória de Santa Fé. Fica situada entre Puerto La Cruz e Cumaná, as duas principais portas de acesso à hiperdesenvolvida ilha Margarita, nas Caraíbas venezuelanas. Apesar da proximidade dos luxos do mais turístico destino de todo o país, Santa Fé era uma localidade simples. Agradável sem ser bonita, prazenteira sem ser exuberante e, pensava eu, pacata.
“Depois de escurecer, não vás lá para o fundo” – disse-me, pouco depois de chegar, um velho pescador encostado ao seu barco e apontando para a zona oeste da praia. “É perigoso. Naquele lado há muita droga e malandragem” – afiançou. Nunca em catorze meses de viagem tive problemas com assaltos, mas agir com bom-senso e confiar nos conselhos dos habitantes locais são duas regras de ouro que me habituei a adoptar. E assim, mesmo sabendo que a segurança é muitas vezes aparente e a insegurança outras tantas vezes psicológica, quedei-me na zona “segura” da povoação.
Curiosamente, nem essas precauções aparentavam ser garantia do que quer que fosse num país onde a violência faz parte do quotidiano de quem lá vive ou por lá passa. Que o digam dois jovens franceses que iniciavam, quatro dias antes, uma viagem de três meses pela América do Sul. “Chegaram de Caracas e vieram directamente para Santa Fé para escaparem à insegurança da capital” – contou-me outro francês que conhecia os seus azarados compatriotas. “Ao saírem do autocarro, aqui em Santa Fé, uns tipos ameaçaram-nos com machados e levaram-lhes todas as mochilas. Agora estão sem roupa, sem dinheiro, sem passaporte, levaram-lhes tudo” – prosseguiu, para logo concluir: “Aguardam apenas que a embaixada lhes emita novo passaporte para regressarem a França”. Muito azar para quem acabara de iniciar uma viagem, pensei.
Seria, no entanto, injusto classificar Santa Fé como um lugarejo perigoso. A maior parte das pessoas que para lá se dirigem fazem-no, aliás, com o simples propósito de relaxar. Ou para visitar o Parque Nacional Mochima. Um passeio de barco pelas ilhotas que compõem o parque revelou-se uma excelente forma de conhecer praias interessantes, embora sem a beleza tropical de paragens como o idílico arquipélago Los Roques, próximo de Caracas. Faltava a areia branca, os recifes e as águas azul-turquesa transparentes para poderem figurar num típico postal ilustrado caraíba. Mas eram lugares agradáveis, limpos e estavam povoados de golfinhos no mar e casais apaixonados em terra, porventura influenciados pelo ambiente romântico de um final de tarde nas águas tépidas das Caraíbas. Foi nesse passeio que conheci Ramón e a sua namorada.
Ramón aparentava ter cinquenta e muitos anos anos. Era funcionário da embaixada espanhola em Caracas e comunista fervoroso. Estava de férias em Santa Fé. Quando soube que eu era português, disparou: “Estive em Portugal logo após a revolução. Nessa época, eu era um membro muito activo do partido comunista espanhol e tínhamos uma forte ligação com o PCP” – contou. “Logo após o 25 de Abril, estive inclusive com o Cunhal” – afiançou, com uma ponta de orgulho a transparecer na sua voz. Falou ainda de outras experiências revolucionárias, na Nicarágua, enquanto navegávamos por entre as ilhas do Parque Nacional Mochima. “Mas agora estou mais calmo” – encerrou o assunto, quando já me preparava para falar do retorno a Portugal. “Ramón, é precisamente para lá que vou amanhã” – informei. “Boa viagem. A luta continua!” – declarou. Despedimo-nos.
Fui cedo para o aeroporto. Estava calado, imerso em pensamentos confusos. Como iria reagir ao regresso a casa? – perguntei a mim mesmo. Entrei a bordo da primeira das aeronaves que me haveriam de trazer de volta a solo lusitano, consciente de que estava a colocar um ponto final no cumprimento do sonho que me fez partir. Horas depois, à chegada ao Aeroporto Francisco Sá Carneiro, no Porto, a “viagem de sentido único” aterrava no ponto de partida. O globo estava circunscrito.
Na manhã seguinte, haveria de acordar em casa. Estava imensamente feliz. Por ter empreendido esta odisseia. Por tudo o que vivi nestes meses de aventura. Por estar de regresso.
Esta é a capa do livro «Alma de Viajante», que contém as crónicas de uma viagem com 14 meses de duração - a maioria das quais publicada no suplemento Fugas do jornal Público. É uma obra de 208 páginas em papel couché, que conta com um design gráfico elegante e atrativo, e uma seleção de belíssimas fotografias tiradas durante a volta ao mundo. O livro está esgotado nas livrarias, mas eu ofereço-o em formato ebook, gratuitamente, a todos os subscritores da newsletter.
Comentários sobre “Das Caraíbas para Portugal”
Missão cumprida…
É com muita alegria que, exactamente no dia de hoje, leio o desfecho dessa estória, que tenho acompanhado há muito… Saibas que me sinto feliz por teres concretizado o sonho de uma vida.
Mas… e agora, o que virá?
Um novo mundo se desvenda então aos seus olhos e sua alma sensível certamente buscará novos caminhos que te façam sentir pleno!
Boa sorte…
“As paixões são como ventanias que inflam as velas dos navios fazendo-os navegar, outras vezes podem fazê-los naufragar, mas se não fossem as velas, não haveria viagens, nem aventuras, nem descobertas…” (Voltaire)
Comentário enviado por Gi em 09.OUT.2005 – 22:01
Parabéns pelo sonho concretizado!
Comentário enviado por Ana em 11.OUT.2005 – 11:19
Temos é que ouvir estes e outros relatos dessa magnífica viagem pessoalmente!
Para quando a francesinha? :)
Abraço!
Comentário enviado por Nuno Basto em 14.OUT.2005 – 11:59
Muitos parabéns por tamanha aventura! Que tal o lançamento de um livro com os relatos das várias etapas? Fica a ideia.
Comentário enviado por Nelson Neves em 14.OUT.2005 – 21:11
Fernão de Magalhães foi o primeiro português a dar a volta ao mundo, o Filipe foi o último… Que a história nos continue a proporcionar relatos tão intensos e apaixonantes!
Parabéns!
Comentário enviado por Mário em 16.OUT.2005 – 09:36
Filipe,
Espero bem que possas um dia ter a oportunidade de partilhar comigo estas estórias e outras que ficaram por contar…
Espero também que o teu regresso represente uma nova etapa para aqueles que se deixaram comover com a tua viagem…
Outros há, que sem partir, se perderam por aí…
Parabéns, a meu ver, realizaste um feito extraordinário!
Comentário enviado por Maktub em 16.OUT.2005 – 23:16
Olá Felipe, hoje é a primeira vez que leio suas passagens. Saiba que admiro muito esta façanha… talvez até por querer fazer o mesmo mas se limitar! Enfim, fiquei completamente encantada pelos seus documentários. Quem sabe um dia não tenha um pedacinho ao menos desse espírito e possa então lhe enviar uma aventura?!
Muitos beijos e até breve!!!
Comentário enviado por Luciane Danelon em 23.OUT.2005 – 22:57
Caro amigo,
Sempre sonhei com uma viagem destas.
Ao ler as suas crónicas, por momentos também viagei pelo mundo, fez-me recordar alguns lugares por onde passei e fui feliz.
Um muito obrigado,
João Fernandes
Comentário enviado por João Fernandes em 06.NOV.2005 – 09:19
Eu gostava de ver umas imagens das Caraíbas, porque nunca vi mas é um destino turístico muito popular.
Comentário enviado por Ana Lourenço em 22.FEV.2006 – 16:25
Para a próxima semana vou para a Venezuela, mas estou com alguns receios. Acha que o sítio mais “seguro” para passar uns dia relaxados é Los Roques?
Comentário enviado por Carla Matos em 06.MAR.2006 – 12:06
Parabéns! Muitíssimo bom!
Comentário enviado por Raquel em 30.MAR.2006 – 22:18
Parabéns. Eu já vi fotos das Caraíbas, é mesmo fixe, lindo. O meu pai trabalha lá nas Caraíbas, e diz que é muito calor. Tchau!!!
Comentário enviado por Liliana em 30.MAI.2006 – 19:17