De cidadela fechada ao comum dos cidadãos, sob pena de morte imediata, passou a atracção principal da cidade de Pequim, publicitada em panfletos turísticos e visitada diariamente por milhares de pessoas; de sede do governo e habitação de duas dinastias imperiais, transformou-se no Palácio-Museu, onde apenas nos becos e palacetes mais afastados é possível reviver o aprazível isolamento que os Filhos do Céu tinham reservado para si.
Tiananmen, Mao Tsé Tung e a Cidade Proibida
Uma bruma cai sobre a praça de Tiananmen. Entrevêem-se velhos autocarros, muitas bicicletas, alguns riquexós e os vendedores de papagaios de papel, que fazem demonstrações com peixes e dragões voadores, capazes de tentar mesmo os ocidentais mais adultos.
Fotógrafos de rua propõem recordações de grupo, frente ao enorme retrato de Mao Tsé Tung que, na entrada da velha Cidade Imperial, coroa a porta de Tiananmen. Ao fundo, do outro lado do deserto de cimento da praça, a porta de Tchianmen reúne à sua volta grupos barulhentos de minibuses, que partem um pouco para todo o lado.
Pequim acorda cedo, como qualquer capital asiática, mas o comércio começa a funcionar lentamente e as portas da Cidade Proibida não abrem antes das oito e meia. A essa hora, já os primeiros grupos de turistas chineses se juntaram junto às pequenas pontes que permitem atravessar o fosso de protecção da cidadela e entretêm-se agora a bafejar moedas, para conseguir que fiquem agarradas alguns segundos às grandes portas vermelhas da entrada – antigamente reservadas ao imperador e, agora, ao alcance das superstições do povo.
São mais de dez mil visitantes que chegam, por dia, para ver a morada de vinte e quatro Filhos do Céu, que aqui residiram entre os séculos XV e XX.
O imperador Yong Le (1403 – 1424), da dinastia Ming, foi o responsável pela mudança da capital de Nanjing para Beiping, assim como pela mudança do seu nome para Beijing [ou Pequim], a Capital do Norte.
A construção desta cidade-dentro-da-cidade, foi feita com requintes que, hoje, já não podemos admirar completamente, uma vez que incêndios e reconstruções se sucederam com relativa frequência e as invasões manchus de 1660 arrasaram, mais uma vez, toda a zona do palácio. A maior parte dos edifícios, que formam o que é o maior e mais preservado conjunto arquitectónico histórico em toda a China, datam agora do século XVIII.
Para ver os tesouros que estes muros guardavam, também já é um pouco tarde: além do que se perdeu em catástrofes naturais ou provocadas, japoneses primeiro e as forças do Kuomintang logo de seguida, levaram o que puderam; parte do espólio ainda pode ser visto nos museus de Taipei, onde foi depositado pelo governo “rebelde”, que nunca aceitou o nascimento da República Popular da China, anunciado por Mao em 1949.
Um eixo de magníficos portais e salas de audiência espera os visitantes que chegam de Tiananmen: depois da Porta Meridional, cujos gongos e campainhas soavam a cada passagem do imperador, vêm os Salões da Harmonia Suprema e da Preservação da Harmonia, com funções definidas, como cerimónias de coroação, nomeações dos líderes militares ou o aniversário imperial.
Toda a estatuária, pintura e elementos decorativos destes edifícios têm formas precisas e uma simbologia auspiciosa para os reais residentes, como uma grande tartaruga de bronze – símbolo de longevidade e estabilidade – com uma parte amovível que permitia queimar incenso no seu interior e fazer o fumo sair pela boca, em ocasiões especiais; com o barulho dos gongos, o fumo do incenso e o cerimonial da corte, que mandava tocar com a testa no chão nove vezes na presença de sua majestade, as audiências imperiais deviam ser uma experiência verdadeiramente… estonteante.
Mas nenhuma emoção poderia ser considerada demasiado forte, quando se estava frente a frente com um Filho do Céu, cujo poder mantinha o equilíbrio entre o comum dos mortais e as forças da natureza.
O conceito de imperador como um ser quase divino, mediador entre o céu e a terra, instalou-se durante a dinastia Zhou, que teve início cerca do séc. XI a.C. Inseparáveis deste, porém, outros conceitos existiam que bem revelam o típico pragmatismo chinês: se o governante se tornasse um tirano, o seu Mandato Celeste seria vítima de terramotos, cheias e pragas, que levariam a que o Direito de Rebelião do povo se manifestasse, substituindo o líder e dando início a uma nova Dinastia – tudo isto por ordem divina, devidamente justificada pela expressão terrestre das vontades do céu.
Confúcio (551 – 479 a.C.), que viveu durante uma das épocas mais instáveis da história da China, tentou encontrar soluções para as guerras sem fim, extremos de pobreza e riqueza e poderes tirânicos que assolaram o império.
Da sua filosofia, em que sobressaem os conceitos morais, destaca-se a defesa de uma sociedade baseada em funções sociais definidas, com obrigações recíprocas, como o dever do súbdito para com o seu governante e o dever deste para com o seu povo – que foi, de algum modo, utilizada em seu proveito pelos imperadores chineses – e a noção de Idade de Ouro, localizada algures num passado distante, que deveria servir de modelo ao presente, a nível político, social e cultural, como um sebastianismo oriental, muito mais complexo e empírico, que marcou até hoje a mentalidade chinesa.
1949, ano da abertura da Cidade Proibida
A Revolução Vermelha abafou estas tendências, obrigando os chineses a olhar apenas o futuro e os trágicos anos da Revolução Cultural arrasaram muitos dos símbolos imperiais, templos e palácios, memórias escritas e tradições. A Cidade Proibida, fechada aos olhares intrusos durante quinhentos anos, foi devassada mas sobreviveu.
Está aberta ao público desde 1949 e, como diz um guia turístico bem-humorado, “o preço da entrada desceu bastante: antes, era tortura e morte; hoje, é apenas 55 yuans!” Falamos do preço para estrangeiros, claro, que os nacionais pagam metade. Mas esta é uma política de transição que está a chegar ao fim: dos transportes aos monumentos, os preços estão a ser unificados, elevando os locais à categoria de “turistas ricos”.
Não é isso que vai esvaziar os corredores do Palácio-Museu: grupos de chineses, gregários e ruidosos, visitam profusamente a antiga morada dos Filhos do Céu, acocorados nas sombras, fotografando-se mutuamente, descansando nos degraus e varandins dos palacetes, empurrando-se gentilmente para espreitar o interior dos elaborados salões, palácios e museus que formam o complexo.
As 9.000 divisões dos 800 edifícios, que cobrem uma área de 720.000 metros quadrados, são mantidas em bom estado por um batalhão permanente de empregados de limpeza, guardas e restauradores.
Para uma restauração completa, foram estimados dez anos de trabalho, ao fim dos quais seria necessário recomeçar de novo, tal o tamanho do complexo e o pormenor de detalhes que cobre, não só os interiores, como também o exterior dos edifícios.
A começar pelos telhados, cobertos de telhas cor de laranja, com exóticas criaturinhas encavalitadas nas cumieiras ou escorregando pelas esquinas até ao beiral: dragões, cavaleiros, figuras míticas e reais em delicadas formas de cerâmica. Apesar de parte da cidade continuar fechada aos visitantes, tudo o que se pode ver confirma as nossas expectativas em relação ao rebuscado luxo oriental.
Os interiores, então, são requintadíssimos, recheados de tesouros trazidos de outras partes do país e não há nenhum trono de audiências igual a outro, instalados nos diferentes salões; cada um possui a sua decoração muito própria, cheios de pinturas a ouro e vermelho, com reproduções do paraíso budista, entalhes delicados e estofos de seda.
Há móveis preciosos, um relógio de água, elegantes colunas pintadas, enormes incensadores – e alguns modernos quiosques, que vendem souvenirs, gelados e garrafinhas de água fresca, indispensáveis para quem quer continuar a travessia de pátios infindáveis, salões, portas e palacetes, até ao extremo norte da cidade.
Alguns dos edifícios do Palácio-Museu acolhem agora exposições permanentes ou temporárias, de muito interesse: peças de bronze, cerâmica, relógios, joalharia, etc. A de cerâmica, para além de belíssimas peças de uso evidente, vindas de várias zonas do país, apresenta ainda uma curiosidade deliciosa para nós, ocidentais: almofadas. Almofadas de louça, singelas ou com formas de animais e pessoas, pintadas ou lisas, com ligeiras variações de tamanho.
Foi difícil descobrir o uso que se poderia dar àqueles tijolinhos engraçados; afinal, servem para encaixar entre o ombro e a orelha, proporcionando um sono pesado… e duro. As peças de bronze mais conhecidas – e que podem ver-se em vários sítios diferentes – representam um leão, cuja pata repousa sobre uma esfera; trata-se da imagem do imperador de Zhongguo (China), o Império do Meio, senhor dos senhores sobre a terra e mensageiro do céu, único habitante de pleno direito da Cidade Proibida.
O “Último Imperador” da China
Cinco delicadas pontes de mármore branco atravessam o que se chamava a Nascente Dourada – hoje transformada num charco estagnado – riacho a que foi dada a elegante forma de um arco tártaro e que antecede o Salão da Suprema Harmonia que, por sua vez, dá para um enorme pátio, com capacidade para albergar uma audiência de cerca de cem mil pessoas.
Aqui, mais do que em outro lugar, vêm à memória cenas do filme de Bertolucci, que recria a vida de Puyi (1909 – 1967), “O Último Imperador” da China.
Do outro lado, sobre um terraço, erguem-se os três salões principais da cidade, que levam à área habitacional propriamente dita. Escadas descem ao longo de placas de mármore branco, com cerca de 250 toneladas, onde dragões se escondem por entre nuvens que lembram a espuma do mar.
Dizem que as pedras foram trazidas para Pequim deslizando sobre placas de gelo, para não se partirem; nada era impossível para estes Filhos do Céu que, entre o Palácio da Pureza Celestial, o da Tranquilidade Terrestre e o Pavilhão dos Mil Outonos, se deviam aborrecer imperialmente no meio da sua corte de eunucos e militares.
Aliás, o ambiente fechado e o terror em que muitos deles viviam, de serem assassinados por inimigos políticos ou por uma das suas concubinas, levavam, muitas vezes, à paranóia e a histórias que seriam ridículas, se não fossem cruéis – como a do imperador Ming Jiajing (1522 – 1566), que tomava “pílulas da longevidade”, cuja preparação requeria o sacrifício de meninas entre os oito e os dez anos, trazidas às centenas de fora dos muros da cidade por ordem do seu alquimista.
Com uma mão em pala sobre os olhos, uma família espreita através dos vidros da janela, tentando entrever pormenores dos aposentos das concubinas imperiais. Se na área central de pavilhões e salas de recepção, por onde grupos de turistas passam rapidamente atrás da bandeirinha colorida que identifica o guia, as massas visitantes são detidas por cordas ou grades colocadas frente às portas, nas ruelas em volta, de paredes rosadas que desembocam em pátios escondidos, os edifícios estão completamente fechados e é preciso estudar gestos e posições que ensombrem os vidros e permitam ver o lado mais humano da Cidade Proibida.
Os quartos continuam prontos a utilizar, revestidos de madeiras preciosas trabalhadas por mãos de mestre e não faltam bacias de cloisonné e esmalte colorido, cobertas e cortinas de seda, vasos de cerâmica, decorações de madrepérola; nas salas de trabalho e estudo, como o Salão da Cultivação Mental, selos e tinteiros de jade alinham-se sobre mesinhas baixas, ao lado de pincéis com encastrações no cabo; salas sucedem-se, como verdadeiras exposições de arte, da pintura à escultura, com pormenores, às vezes nas raias do kitsch, que requerem uma verdadeira paciência “de chinês”, como as árvorezinhas e flores delicadas feitas com pedras semipreciosas, que saem de vasos de porcelana, poisados com negligência em qualquer canto.
De cada vez que um incêndio, causado por um festival de lanternas ou de fogo de artifício – ou ainda por eunucos, na ânsia de esconder o que muitas vezes roubavam – devastava uma área da cidade, era indispensável a recolha de impostos extraordinários para repor as preciosidades perdidas, não apenas os objectos, mas também o tipo de materiais que se exigia para a reconstrução da morada dos Filhos do Céu.
Para além dos custos de eventuais catástrofes, a simples manutenção da Cidade Proibida já consumia em excesso a fazenda do império; durante a dinastia Ming, por exemplo, estima-se em 9.000 o número de criadas ao serviço da família real e concubinas – as últimas das quais eram às dezenas. Para mais, quando se “reformavam”, as concubinas passavam a viver numa zona especial da cidade, sempre a cargo do imperador.
Eunucos, eram cerca de 70.000 e parece que não havia falta de candidatos à arriscada “operação”, à qual só sobrevivia metade dos pacientes. Quem passava a dura prova, acabava por não perder tudo; pelo menos tinha garantido o conforto para o resto da vida e, muitos deles, caídos nas boas graças dos governantes, ganhavam verdadeiro poder dentro deste mundo fechado, que funcionava por influências e favores.
Durante os quarenta e oito longos anos de poder da dama Ching Dowager Cixi – elevada de concubina a imperatriz, ao substituir no poder o seu filho e um sobrinho – tornou-se conhecido o seu eunuco de confiança, Li Lianying e os arquivos imperiais mencionam vários outros casos, como o de Wei Zhongxian, que instalou um verdadeiro reino de terror, na corte Ming do imperador Tianqi (1621 – 1627), tal era o seu poder.
Os parques Zhongshan e Jingshan
No limite norte da cidade fica o parque Zhongshan, com as suas árvorezinhas esculpidas por hábeis jardineiros, canteirinhos recortados, pagodes e montículos de rochas com varandins em cima.
Atravessada a cidade desde Tiananmen, aproveita-se agora as sombras para descansar; à excepção de um ou outro pátio interior, onde foi deixada alguma árvore solitária, a cidadela não tem zonas verdes.
É aqui que se pode comer um snack ou beber um iogurte, antes de voltar para o sossego dos becos labirínticos de muros altos, com portões que abrem para átrios aconchegados.
Quem não veio em grupo senta-se no chão, estuda as lições dos guias da cidade, abana-se com leques e vê quem passa; o calor de Julho convida ao descanso e não há sítio melhor para gozar a imperial tranquilidade que os soberanos reservavam para si, do que os pátios de um destes palacetes fechados, acessíveis por passagens estreitas e desertos de gente, à excepção de algum guarda sonolento e acalorado.
O parque Zhongshan está permanentemente cheio de turistas, num reboliço de sombrinhas, a atirar migalhas aos peixes e a fazer vídeos familiares, que ficam sempre mais realistas se apanharem alguns estrangeiros a dizer adeus – e não falta quem peça a nossa colaboração, em chinês, mas com uma simpatia expressiva e irrecusável.
A colina artificial do parque Jingshan, em frente à porta norte e do outro lado da estrada, foi feita com a terra tirada ao cavar o fosso que rodeia a cidade.
Do cimo, consegue-se a melhor vista possível sobre os telhados vermelhos rodeados de muros altos, as torres de vigia nas esquinas, o fosso de águas verdes, enfim, quase toda a área do Palácio-Museu.
Mas para ver os antigos jardins do imperador – hoje o popular parque Beihai – onde dragões de aluguer movidos a pedais percorrem o lago Mar do Norte em todos os sentidos, é preciso seguir a estrada em direcção à grande stupa que coroa de branco a colina da Ilha de Jade.
Diz-se que o lago e o jardim em volta já datam do tempo de Kublai Khan, que aqui estabeleceu a sua capital após a conquista do império chinês, em 1279. Para mais, este é um excelente exemplo do clássico jardim oriental, com os seus pavilhões, templos e passarelas cobertas com telhados pintados.
A stupa, construída em 1651 para festejar uma visita do Dalai Lama e o Painel dos Nove Dragões, que protegia dos maus espíritos a entrada de um templo que já não existe, são as estruturas mais impressionantes do parque onde, outrora, os imperadores vinham pescar e passar algumas noites de Lua cheia.
Junto à doca de onde saem barcos colectivos, o restaurante Fangshan continua a oferecer algumas das iguarias favoritas da imperatriz Dowager Cixi (talvez não todos os 120 pratos e 30 sobremesas que ela gostava de provar por refeição…) mas, a avaliar pelas caixinhas de doces sortidos que se vendem cá fora, não é nada que se recomende a quem nasceu no país do Arroz Doce e dos Ovos Moles…
Rodeados por imagens de criaturas míticas, os Ming e os Qing recriaram, na sua cidade, o reino celeste que representavam na terra. Legaram-nos o belíssimo cenário em que se movimentavam e, uma vez que a Cidade Proibida já o não é, temos a rara oportunidade de pisar o palco monumental onde, durante quinhentos anos, se decidiram os destinos do Império do Meio. A não perder.
Guia prático
Este é um guia prático para viagens à Cidade Proibida, com informações sobre a melhor época para visitar, como chegar, pontos turísticos, os melhores hotéis nas proximidades e sugestões de actividades em Pequim.
Como chegar a Pequim
Várias companhias europeias voam para Pequim, nomeadamente a Lufthansa, a Air France e a KLM, com escala em Frankfurt, Paris e Amesterdão, respectivamente. A transportadora chinesa Air China é outra opção recomendável.
Onde ficar
Não faltam bons hotéis na capital chinesa. Por exemplo, o Hotel Qiaoyuan é razoável e fica próximo dos autocarros que levam ao centro.
Gastronomia
O difícil é dizer nomes de restaurantes num país onde a língua nos é indecifrável. O melhor, onde quer que esteja, é ver a comida exposta ou os pratos dos outros clientes – não é má educação e até causa grandes risotas – e pedir o que parecer bom. Em Pequim e em todas as grandes cidades, também existem as cadeias alimentares americanas que todos conhecemos. O restaurante mais recomendado, sobretudo pelo “pato à Pequim”, é o Qianmen Roast Duck Restaurant, em Qianmen, perto da entrada do metro.
Seguro de viagem
A IATI Seguros tem um excelente seguro de viagem, que cobre COVID-19, não tem limite de idade e permite seguros multiviagem (incluindo viagens de longa duração) para qualquer destino do mundo. Para mim, são atualmente os melhores e mais completos seguros de viagem do mercado. Eu recomendo o IATI Estrela, que é o seguro que costumo fazer nas minhas viagens.