A “montanha no mar”, como lhe chamou Maupassant, é feita de picos rochosos muitas vezes nevados, rodeados por um mar morno e transparente. Mas os clichés da ilha-paraíso não lhe servem: moldada por ventos e marés, a Córsega possui um carácter forte e indomável – e os seus habitantes também.
A bela ilha da Córsega
O assalto aos sentidos começa mal se põe o pé em terra; misturados com a maresia chegam-nos perfumes resinosos de mato e flores açucaradas. Junto à costa, o mar é baixo e alterna azuis-turquesa com verdes-menta, debruados pela tira branca da areia. O sol quente aviva as cores e faz apetecer passeios pela sombra e banhos de mar. Oliveiras e medronheiros cobrem as encostas de verdes secos e sombras apetecíveis. Generosamente, a Córsega oferece tudo isso e algo mais: montanhas nevadas por onde descem riachos gélidos, que nos fazem esquecer o Mediterrâneo.
O seu interior é percorrido por estradinhas sinuosas e estreitas, que rodopiam entre florestas e cabeços rochosos, alguns encimados por taffoni, arcos de pedra perfurados pela erosão. Vales glaciários abrem-se na rocha nua, com aglomerados de casas cinzentas e o inevitável campanário aguçado no centro, a marcar a presença humana: a aldeia de Zonza e seus monumentais pitões de granito cinzento, conhecidos por Agulhas de Bavella, são a imagem mais conhecida da montanha corsa.
Vales como o de Asco ou Spelunca estão muito longe daquilo que as similares palavras portuguesas poderiam sugerir e, nas gargantas da Restonica, o percurso pedestre até aos lagos de Melo e Capitello é um encontro com a beleza selvagem da ilha, só comparável com a ascensão aos 2.706 metros do monte Cinto, o seu ponto mais alto.
Também na costa existem lugares notáveis pela sua beleza em estado puro: o balão azul-turquesa da baía de Rondinara e o Parque Natural de Scandola – este último considerado Património Mundial da Humanidade – possuem, como poucos, o encanto bravio da costa mediterrânica.
Não muito longe, ficam as Calanches de Piana, também protegidas pela UNESCO, que ninguém descreve melhor que Guy de Maupassant, em “Une Vie”: “(…) uma floresta, uma verdadeira floresta de granito púrpura. Eram picos, colunas, pequenas torres de campanário, figuras surpreendentes, modeladas pelo tempo, o vento corrosivo e a bruma do mar. Altos até aos trezentos metros, finos, redondos, torcidos, recurvados, disformes, imprevistos, fantásticos, estes surpreendentes rochedos pareciam árvores, plantas, bichos, monumentos, homens, monges de hábito, diabos cornudos, pássaros desmesurados, todo um povo monstruoso, uma exibição de pesadelo petrificada pelo desejo de um qualquer deus extravagante …”.
E ali ao pé fica o golfo azul de Porto, onde as calanche se reflectem, varridas ferozmente pela tramuntana e pelo libeccio.
A prodigalidade da natureza não se fica pelo relevo: a vegetação da ilha é constituída por cerca de duas mil espécies, das quais quase oitenta são endémicas; da fauna também faz parte uma vintena de mamíferos selvagens, entre os quais o muflão (u muvrone), que se tornou o emblema da montanha corsa, altiva e rebelde. Claro que quem percorre as florestas interiores, a pé ou de automóvel, encontra mais facilmente rebanhos de cabras e ovelhas ou varas de porcos, numa vagabundagem inédita nestes tempos de CEE.
De vez em quando pára um carro, e aparece alguém com milho para distribuir; é que, embora não pareça, os animais têm dono, mas aqui acredita-se seriamente nas vantagens desta criação assilvestrada, que permite o cruzamento com javalis e uma alimentação mais natural.
São famosos os enchidos de javali, mas nada chega à excelência do brocciu, aquele queijo de ovelha ou cabra de perfume explosivo (quem não leu “Astérix na Córsega”?), ou às magníficas castanhas, que invadiram o gosto da cerveja e dos crepes; ao mel silvestre, ou ao azeite. Bela e farta, a ilha incita aos prazeres da mesa e ao lazer.
Habitada desde há muito, ao percorrê-la, espanta a ausência de gente. Metade dos seus cerca de duzentos e cinquenta mil habitantes vivem em Ajaccio e Bastia. No interior, as povoações têm um aspecto austero e quase abandonado, mas cada capu (monte) ou lavu (lago) tem o seu nome próprio. Na costa, o turismo instalou-se como primeira fonte de rendimento e sobram as marinas, hotéis, aldeamentos, e cafés mundanos. Mas também na arquitectura a Córsega misturou estilos, filtrou e criou um estilo “corso” com referências históricas incontornáveis.
Ilha de fortes e torres no Mediterrâneo
O símbolo presente nos folhetos e cartazes turísticos, por exemplo, são as famosas – e abundantes – torres genovesas, que parecem o modelo original da Torre do Jogo de Xadrez.
Foram construídas durante o domínio de Génova, com funções de vigilância permanente da costa: os Turchi, piratas vindos da África do Norte, eram um perigo real para os habitantes. Destruíam culturas e aldeias inteiras, e faziam escravos todos os que apanhassem; chegaram a contar-se uns seis mil corsos cativos em Argel, só no ano de 1560. Com uma altura média de quinze metros, as torres permitiam avisar as populações através de fogos ateados no cimo, em caso de aproximação de barcos desconhecidos.
A abundância de fortes – os de Calvi e Bonifácio são os mais espectaculares – prende-se com esta necessidade perpétua de defender a ilha da fácil abordagem, não só de piratas, mas da cobiça das várias potências marítimas. Como todas as ilhas do Mediterrâneo, a Córsega também andou de mão em mão, pertencendo ao reino de Pisa (1077 – 1284) e ao de Génova (1284 – 1768), antes de ser vendida à França pela última.
Das torres genovesas restam cerca de oitenta e cinco, umas restauradas e outras em ruínas; muitas mais que as pequenas pontes de pedra, de arco único e “bossa” no meio, que datam da mesma época – um dos exemplares mais bem conservados atravessa as gargantas de Spelunca, junto a Ota. Bem cuidadas estão as igrejas em estilo “românico pisano”, como as de Aregno ou de San Michele de Murato, edifícios bicolores decorados com figuras geométricas, imagens de animais e personagens simbólicas deliciosamente naifs.
Ajaccio, Bastia, Corte e Bonifácio
Não há nenhuma povoação na ilha que assuma a urbanidade e cosmopolitismo de uma cidade.
Mesmo Ajaccio, a capital, terra de Napoleão Bonaparte, e Bastia, na costa oriental, são cidades agradavelmente pequenas e provincianas. Abundam as motoretas e os estacionamentos em lugares proibidos, as esplanadas, a roupa pendurada nas varandas, um certo estilo muito latino.
Animadas e soalheiras, revelam-se bem diferentes de Corte ou Bonifácio que, talvez por serem mais pequenas, mantêm o aspecto austero das ruas estreitas com casas de pedra. Genuinamente corsas, ambas são cidades fortificadas, construídas sobre morros transformados em barcos de pedra pelas ruas empedradas, de casario alto. Bonifácio tem a atmosfera de um velho castelo ancorado em águas transparentes, com a sua falésia calcária a esboroar-se em ilhotas. Corte, nobre cidade universitária, chegou a ser capital da Nazzioni Corsa durante catorze anos.
Foi Pascal Paoli quem proclamou a independência, em 1755, depois de diversos levantamentos populares contra Génova, a intervenção francesa, e a intervenção ou tomada de partido dos diversos clãs corsos. Mas em 1768, os que tomaram partido pela França – por exemplo, Charles-Marie Bonaparte, pai do futuro imperador – vencem a batalha, e a Córsega torna-se definitivamente francesa.
França, mas não muito…
Sendo uma ilha, para mais com um relevo montanhoso bem marcado, é natural que anteriores experiências colectivas de isolamento e dificuldades de comunicação, entre certos pontos da ilha e também com o continente, determinassem a existência de carácteres individualistas e fortemente conscientes da sua diversidade; verificam-se, por exemplo, diferenças linguísticas entre o norte e o sul, apesar da ilha não ultrapassar os 8.680 quilómetros quadrados.
Tem a forma de um punho fechado, com um “indicador” – o Cap Corse – a apontar inquisidoramente a costa francesa, de onde vêm as únicas embirrações que conseguem unir os corsos, mas também os subsídios da Comunidade Europeia e a maior parte do turismo.
A questão da independência levanta-se, de vez em quando, com grupos mais ou menos radicais a reivindicarem parte dos atentados que vão ocorrendo. Na versão de alguns corsos com quem falámos, trata-se, sobretudo, de ajustes de contas pessoais e guerrilhas internas pelo poder, que levam a que seja punido o bode expiatório francês.
A França acabou por se tornar aquele “inimigo de estimação” de quem fica sempre bem um político demarcar-se, mas que não se odeia realmente. É verdade que ainda estão a sarar os ressentimentos de certas atitudes neo-colonialistas, como a adjudicação das melhores terras agrícolas da ilha a mais de quinze mil franceses vindos da Argélia.
Presentemente, ao contrário de políticas anteriores, são aceites as diferenças regionais, mesmo as mais marcadas, sobressaindo os bretões e os corsos como os mais conhecidos “dissidentes culturais” do Hexágono – para não falar nos longínquos territórios espalhadas por outros continentes, como a ilha da Reunião ou a Guiana.
A Universidade de Corte, fundada por Paoli e encerrada em 1769, só reabriu em 1981. De raízes celtas e lígures, o corso foi progressivamente latinizado e sofreu fortíssima influência toscana, sobretudo a partir do séc. IX. A sintaxe ainda continua próxima do toscano medieval, enquanto o vocabulário foi – e vai – sendo enriquecido com vocabulário francês “corsificado”.
O séc. XX foi, portanto, o da afirmação da língua corsa, com a publicação do seu primeiro jornal, “A Tramuntana”, assim como alguns romances, poesia e contos folclóricos; podemos portanto dizer que u corsu è oghj una lingua. E para quem ouve pela primeira vez, tem ressonâncias latinas e uma musicalidade muito próxima do italiano; buciardo cume a scopa, “mentiroso como a urze” (que floresce mas não dá fruto), é uma deliciosa expressão local que traz para a língua os perfumes de um maquis composto de medronheiros, urzes, alecrins e estevas perfumadas.
Uma cabeça de mouro com um lenço na fronte, atado à corsário, continua a ser o símbolo da ilha, utilizado oficialmente, mas também por grupos independentistas ou como bandeira de barcos de recreio. Embora aluda à expulsão dos mouros no séc. IX, é a imagem onde a ilha se revê: o corsário livre, indomável, aventureiro, destemido e independente.
Os outros, nomeadamente os franceses do continente, têm uma versão diferente, mas não totalmente oposta; a esta ideia de espírito rebelde, o estereótipo do corso fica completo com um toque de indolência, uma pitada de susceptibilidade, uma boa dose de espírito de clã (do arreigamento à família ao nacionalismo exacerbado), certa propensão para a trafulhice, e a vendetta como passatempo nacional – logo a seguir a destruir os sinais de trânsito a tiro.
Pessoalmente, substituiria algumas destas ideias feitas por uma certa desconfiança, um apreciável sentido de humor, e a capacidade de não deixar escapar uma bela conversa com um desconhecido. “Para que são as fotos? Olhe que eu sou procurado pela polícia…” – dizia o dono de um restaurante em Ajaccio; “Não quer provar os meus cogumelos? Tem medo de morrer envenenado?” – perguntava um simpático habitante de Asco, ao convidar-nos para uns cogumelos na brasa acabadinhos de trazer do bosque.
Córsega, ilha com carácter
A cento e setenta quilómetros da costa francesa e a apenas oitenta e dois de Itália, a Córsega fundou o seu carácter neste belíssimo pedaço de terra, farta em água e vegetação. Os fenícios chamaram-lhe Korsai, “lugar arborizado”, e os gregos Kallisté, “a mais bela” – ambos com carradas de razão.
– Está calor. Este tempo não é normal, pois não?
– Não, mas as pessoas também não são. Temos a mania que somos os reis do mundo. Já viu como se conduz, e o que fazem às placas das estradas, cravejadas de tiros? E esta ilha até podia ser um paraíso…
– E os atentados, por que é que acontecem?
– Ah, isso é cá entre nós. Isto está bom é para começar um negócio de explosivos, ou então de vidraceiro…
– Não acha que têm afinidades com a Itália? A língua, por exemplo, soa mesmo a italiano…
– Nem pensar! Não somos franceses nem italianos – somos corsos!
Conversas soltas em esplanadas sombrias, pela hora do calor. Ilha de luz e sombra, contrastes e matizes, que não deixa ninguém indiferente. Casas de paredes espessas e janelas pequenas, espelhos de água que reflectem o céu, escavados na rocha das montanhas, baías de um azul luminoso, rodeadas por uma vegetação bravia – na Córsega não há lugar para a banalidade ou a sofisticação. Tudo é forte e marcante, do clima à paisagem. Indolente e indomável, a ilha conquista-nos com o seu coração selvagem.
Os primeiros corsos
Os mais importantes vestígios pré-históricos da ilha ficam a norte e a sul de Sartène: Filitosa, no primeiro caso, Palaggiu e Ca Uria, no segundo..
Os primeiros testemunhos da ocupação humana surgiram junto a Bonifácio, e datam de cerca de 7.000 a.C.: trata-se do esqueleto de uma mulher, que ficou conhecida por “Dama de Bonifácio”. A civilização megalítica desenvolveu-se entre 3.500 a.C. e 1.000 a.C., legando os mais interessantes – e visíveis – vestígios do Neolítico e Idade do Bronze. Inserem-se neste caso os locais acima citados, que proporcionam uma agradável e muito atmosférica visita à pré-história da ilha.
Em Filitosa encontra-se um importante testemunho destas épocas, num local protegido e acompanhado de um pequeno museu, que exibe alguns dos achados mais importantes da zona.
Para além das torres, monumentos circulares, e de castelli, aldeias fortificadas, o sítio possui algumas das mais perfeitas estátuas-menires da ilha; trata-se de menires com rosto ou com armas gravadas, que revelam já importantes técnicas artísticas.
A sua forma fálica tem despertado as mais variadas hipóteses: símbolos religiosos da fertilização da terra? Chefes-guerreiros da época? Para o visitante, a dúvida é bem menor que a impressão causada pelo tamanho e quantidade destes monumentos megalíticos.
Em Ca Uria, para além do alinhamento de uma vintena de menires, o dólmen de Fontanaccia é considerado o mais perfeito e bem conservado da ilha. Em Palaggiu, encontra-se espalhada pelo maquis a maior concentração de menires do mediterrâneo, com 258 exemplares, uns de pé e outros caídos no chão, escondidos por uma vegetação selvagem. O caminho por entre as pedras é uma mistura de descoberta e comunhão com a natureza corsa, atravessando um maquis de arbustos ásperos e perfumados, onde abundam fossadelas de javali, e algumas zonas de bosque sombrio.
Por aqui passaram fenícios, etruscos, gregos e romanos, mouros e sarracenos. Génova e Pisa antecederam a França nas influências mais recentes, e juntaram-se à longa lista de contribuições para o carácter fortemente mediterrânico da ilha.
Guia de viagens à Córsega
Este é um guia prático para viagens à Córsega, em França, com informações sobre a melhor época para visitar, como chegar e sugestões de actividades na ilha francesa.
Quando ir
Todo o ano: há neve no interior durante o Inverno, e durante o Verão o calor é intenso e sabe bem recorrer à montanha ou à praia para refrescar. O pior da estação quente são os ventos fortes e desagradáveis que por vezes sopram, e a saturação turística.
Como chegar à Córsega
O ideal é partir de carro e atravessar de ferry, por exemplo, de Marselha, Toulon ou mesmo Nice, chegando a Bastia, île-Rousse, Calvi ou Ajaccio, e usufruindo da nossa própria viatura na ilha. A viagem pode ser calmamente feita em três dias, e os preços dos ferries dependem dos lugares de partida e chegada, assim como da época em que se viaja – sendo o Verão, obviamente, a mais cara. Geralmente há promoções para viagens de família (4 pessoas) que rondam os 70-80 euros. Se preferir voar, poderá fazê-lo via Marselha ou Paris.
Onde ficar
O único problema poderá ser a escolha: há um número infinito de parques de campismo, pensões, quartos de aluguer, apartamentos e hotéis de variadas estrelas. Alguns exemplos de três estrelas: em Ajaccio, o Hotel Albion, no nº 15 da Cours General Leclerc; em Bastia, o Hotel Pietracap; em Bonifácio, o Hotel Caravelle, no Quai Comparetti.
Gastronomia
São famosos os enchidos de javali, mas nada chega à excelência do brocciu, aquele queijo de ovelha ou cabra de perfume explosivo (vd. “Astérix na Córsega”), ou às magníficas castanhas, que invadiram a gastronomia, da cerveja (a original Pietra) aos crepes; o mel silvestre e o azeite também são excelentes, ou não estivéssemos em pleno Mediterrâneo. O vinho mais famoso é o Patrimonio. Pode experimentar estes dois bons restaurantes tradicionais corsos (mas há muitos mais): A Tana, em Ajaccio, na rua Conv. Chiappe, e o Sous la Tonnelle, em Porto Vecchio, na rua Abbatucci.
Seguro de viagem
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