Não há muitos exemplos de turismo sustentável no Médio Oriente. Em Dana, uma pequena aldeia moribunda após décadas de abandono, incentiva-se a recuperação das casas e o regresso dos seus habitantes, promovendo formas alternativas de escoar, com melhor rendimento, os produtos naturais. E procura-se tirar partido do advento do turismo. Aos poucos, Dana vai ressuscitando de uma prolongada letargia; mas falta conhecer o desfecho da história.
Uma aldeia montanhosa praticamente abandonada está a ser alvo de um projecto que visa a reabilitação das suas casas centenárias de pedra e lama. Pretende-se, com isso, o regresso dos seus habitantes. Há mais de três décadas que os de Dana se mudaram para a vizinha Qadisiyyeh, atraídos por melhores acessos ao resto do país, infra-estruturas básicas como electricidade ou saneamento, e serviços diversos como escola para os filhos.
Aos poucos, Qadisiyyeh foi crescendo e a primitiva Dana definhando, e o aparecimento da gigantesca fábrica de cimento francesa Rashdiyyeh, no início dos anos oitenta, foi apenas a estocada final no futuro da aldeia. Atraídos por bons salários, os homens desistiram de fazer diariamente a árdua e sinuosa caminhada entre Dana e a fábrica, e mudaram-se definitivamente para Qadisiyyeh, abandonando as casas de pedra e lama. Uma vez desprovidos da indispensável manutenção anual, os telhados das velhas casas sucumbiram às chuvas invernais. E Dana quase desapareceu do mapa.
Procura-se agora ressuscitar um lugar pouco mais que moribundo, com uma estratégia aparentemente ganhadora. Os poucos agricultores que resistiram continuam a produzir os produtos de sempre – azeitonas, figos, nozes – mas, em vez de os venderem por preços irrisórios nos mercados locais, a organização jordana The Royal Society for the Conservation of Nature compra a produção e contrata os aldeões para criarem produtos naturais de maior valor acrescentado – como sabonetes de azeite e compotas de qualidade – , que vende a jordanos e viajantes com maior poder de compra e consciência ecológica.
E aposta-se em força nas potencialidades turísticas da recém-criada reserva natural, administrada pela RSCN, onde se instalaram ecolodges com preços proibitivos. Os resultados vão aos poucos aparecendo. Já há quem venha a Dana para caminhar ao longo dos catorze quilómetros em Wadi Dana. São maioritariamente europeus, amantes da Natureza e de ambientes de montanha.
Há na aldeia três pequenos hotéis, uma mercearia de bairro com as prateleiras quase vazias, uma mesquita e meia dúzia de famílias que já regressaram. O resto são ruínas. Literalmente. O grosso dos naturais de Dana permanece na vizinha Qadisiyyeh, porque quase ninguém aceitou a exigência de regressar a Dana como contrapartida para receber apoios para a reabilitação das casas abandonadas. Nabil Nwafleh, do Dana Tower Hotel, teve de contratar quatro jovens filipinas para a sua pousada. Segundo ele, não há quem queira trabalhar na aldeia. Preferem viver em Qadisiyyeh e regressar à terra natal aos fins-de-semana. Foi precisamente a uma sexta-feira que cheguei a Dana.
Início da tarde. As encostas em redor da aldeia estavam pejadas de gente das redondezas em piqueniques familiares. Foi assim que um pequeno passeio se transformou numa maratona saltitando de toalha em toalha, de chá em chá, de pedaço de frango assado em pedaço de frango assado. Sempre que passava por uma família era convidado a sentar-me e a comer. Uma e outra e outra vez. A família de Ahmed foi com quem fiquei mais tempo.
Ahmed é natural do Iraque e camionista de profissão, facto que a sua protuberante barriga redonda não deixa margem para enganos. Vive próximo de Erbil, no Curdistão iraquiano, com uma das suas mulheres. A outra, de nacionalidade jordana, estava ao seu lado no piquenique. Pergunta-me se lhe arranjo uma terceira esposa, portuguesa; a mulher jordana desaprova. Insistem para que coma frango e batatas assadas, para que beba chá, cola e sumo de laranja, para que aceite os seus cigarros, para que os vá visitar “amanhã”.
Fui aceitando enquanto pude e por ali fiquei, entre risadas dos miúdos e copos de chá, até Ahmed fechar os olhos para uma sesta de fim-de-semana. Despedi-me e prossegui. Não teria andado mais de cinquenta metros quando, um pouco adiante, passei por um grupo de quatro jovens nos seus vinte e muitos anos. Protegidos do sol debaixo de uma árvore, fumavam shisha, assavam frango, recarregavam baterias para nova semana de trabalho. Insistiram para que me sentasse, e tudo começou de novo. Vindo do Egito, a desinteressada hospitalidade jordana surpreendeu-me.
Quando, depois de vários pedaços de frango, incontáveis rodadas de chá e umas baforadas de tabaco com sabor a maçã me fiz ao caminho e regressei ao minúsculo aglomerado de casas em ruína, pouco faltava para o sol se esconder por detrás das montanhas. Caminhei até à ponta oeste da aldeia para desfrutar da esplêndida vista sobre o vale de Dana. Nas minhas costas, iluminada pelas cores quentes do momento, uma família debruçava-se sobre um muro de pedra, observando o pôr-do-sol. Eram cinco mulheres, uma criança, um homem adulto. A tentação de fotografar era enorme. Sentei-me, dei voltas à cabeça, mas não resisti. Apontei a câmara e disparei. Uma única vez.
E foi então que aconteceu um daqueles momentos fotográficos que parecem, de alguma forma, congregar num instantâneo as relações sociais de um povo. A bonita adolescente olhou de frente a objectiva e esboçou um sorriso malandro. Uma jovem mãe abraçou o filho, não se escondendo nem se mostrando, num meio termo entre os deveres da tradição e a liberdade de olhar de frente um homem estranho. As duas mulheres mais velhas esconderam ostensivamente a face, aninhando-se de costas atrás do muro de pedra. E o único homem presente fez um gesto de desagrado, reclamando da minha atitude intrusiva. Pedi desculpa e fui-me sentar a observar o pôr-do-sol. As vozes que comecei a ouvir eram de um pequeno grupo de franceses de idade avançada que entretanto se haviam aproximado.
Sim, o turismo está a chegar a Dana. O seu incremento proporcionará uma fonte adicional de riqueza, mais oportunidades de emprego e talvez incentive mais gente a regressar às origens. Mas o futuro de Dana é ainda incerto. Antevejo todas as casas de pedra e lama reconstruídas ao “estilo tradicional”. Serão muitas pousadas, várias lojas, alguns restaurantes, um par de cibercafés, talvez um minimercado. As ruas serão pavimentadas e graciosamente iluminadas. A caminho de Petra ou Wadi Rum, os turistas afluirão em apreciável número às montanhas de Wadi Dana para desfrutar das magníficas paisagens. Talvez cheguem até os grandes autocarros de turismo. Antevejo como provável que Dana perca muita da sua alma primitiva. Mas a vida na aldeia será mais dócil. E quem sabe até Nabil encontre filhos da terra para trabalhar no seu hotel.
O projecto Cairo - Teerão foi uma viagem terrestre pelo Médio Oriente, com a duração de três meses. Teve início no Cairo, capital do Egito, e término em Teerão, capital da República Islâmica do Irão. As crónicas foram originalmente publicadas no suplemento Fugas do jornal Público.
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