Fotografar pessoas: por que me é cada vez mais difícil fazê-lo

Por Filipe Morato Gomes
Fotografar pessoas: crianças nas Filipinas
Foto de uma criança numa escola de El Nido, Filipinas (2012)

Tenho uma confissão a fazer: cada vez tenho menos à-vontade a fotografar pessoas. Imagino que com a experiência fosse suposto fazer retratos cada vez mais naturalmente; mas a verdade é que, ultimamente, me sinto um intruso de máquina fotográfica na mão. Cada vez mais. E, como detesto essa sensação, acabo por evitar fotografar pessoas.

E isto dito por alguém que adora pessoas. Ou talvez por isso mesmo.

Costumo dizer que as pessoas que encontro fazem as viagens. Atribuo-lhes um papel determinante sobre a impressão com que fico de um lugar. Como o povo iraniano, por exemplo, que acredito estar entre os mais hospitaleiros do mundo e tornam qualquer viagem ao seu país um imenso prazer. Viajantes mais experientes dizem o mesmo dos sudaneses e paquistaneses, mas ainda não tive esse privilégio.

O curioso é que, olhando para as minhas fotografias de viagens mais antigas, encontro múltiplas fotos de pessoas tiradas de muito perto, inclusive com uma grande angular (ou seja, mesmo perto). Das montanhas de Myanmar às aldeias de Sichuan, das roças de São Tomé às povoações da ilha de Olkhon, na Sibéria, passando pelas mulheres Himba e por inúmeras famílias mongóis, fotografar pessoas nunca pareceu ser um problema para mim.

Fotografar pessoas: Sibéria
Uma mulher no jardim de sua casa na ilha de Olkhon, Sibéria (2004)

Nessa época, entre fotografias tiradas de relance até outras com permissão expressa, ou ainda momentos em que interagia com alguém – de uma minoria étnica, por exemplo – antes de tirar uma foto ao seu rosto, não faltam exemplos em que fotografar pessoas era para mim algo relativamente fácil.

Mas esses tempos aparentemente acabaram.

Nas últimas viagens, tenho-me sentido cada vez mais desconfortável com a ideia de ser um caçador de imagens sem escrúpulos, um ladrão de momentos das pessoas com quem me cruzo nas deambulações pelo mundo. Sinto-me mal.

Vejo imagens belíssimas na minha cabeça… e não fotografo. Nem sequer experimento pedir permissão, porque só isso já me parece intrusivo. Como se me estivesse a meter onde não sou chamado, a invadir o espaço alheio, a ser desagradável ou inconveniente, a agir como um predador. Cumprimento as pessoas e sigo viagem. Sem remorsos, mas triste pela fotografia perdida.

Fotografar crianças: Uganda
Fotografar crianças em viagem tem sido cada vez mais difícil; aqui, um miúdo numa escola no Uganda (2013)

Vem isto a propósito da minha recente viagem a Zanzibar. Em inúmeras situações vi “fotos na cabeça” que não tentei tirar. Velhos de olhar profundo encostados em paredes coloridas, que dariam retratos com alma. Mulheres embrulhadas em roupas incrivelmente coloridas. E crianças, muitas crianças. Mas, por incrível que pareça, quase sempre a máquina ficou parada.

É óbvio que continuo a fotografar pessoas. Muitas vezes como parte de um ambiente, para humanizar as cenas. Mas aquela fotografia mais intimista, olhos nos olhos, tem sido muito difícil para mim. Não quer dizer que esporadicamente não o faça, mas tenho cada vez mais pruridos em fazê-lo. Não me sinto confortável. Por vezes, imagino um filho meu no lugar daquela criança a quem me preparava para apontar a máquina e perco a vontade de fotografar.

Talvez me esteja a tornar num viajante mais consciente. Talvez esteja saturado com os efeitos perversos do excesso de turismo. Talvez esteja apenas a ficar velho, maduro, cansado de ser blogger de viagens nos dias de hoje… ou o que seja. Ou então apenas comodista. Independentemente dos rótulos, facto é que não consigo fotografar pessoas com a naturalidade de antigamente.

Escrevo isto não para chegar a qualquer conclusão, mas apenas para partilhar esta sensação com todos vocês. Acredito que fotografar pessoas é das atividades fotográficas mais nobres e complexas – não tanto pelos aspetos técnicos, mas pela responsabilidade que o ato acarreta perante o outro.

Talvez volte a conseguir fotografar pessoas num futuro próximo. Assim eu arranje uma forma de fazer com que esteja confortável; e não sinta que estou a invadir o espaço alheio.

Até lá, vai havendo menos retratos nos posts do Alma de Viajante.

Dicas para fotografar pessoas

Seja respeitoso na hora de fotografar

No texto Turismo sustentável: boas práticas de um viajante consciente escrevi o seguinte:

“Se há imagem que me choca é ver um grupo de meia dúzia de turistas de máquinas fotográficas apontadas à cara de uma criança, sem qualquer interação, sem qualquer respeito pelo menor, como quem “rouba” um momento sem dar nada em troca. E o mesmo se aplica à generalidade dos seres humanos, mas especialmente comum não só com as crianças mas também com tribos ou minorias étnicas visualmente apelativas”.

É isso. Em suma, sempre que possível, peça autorização. E, como é evidente, pedir autorização para fotografar pessoas implica aceitar a sua decisão. Ou seja, se alguém pede para não ser fotografado, respeite essa vontade. Como em tudo na vida, tenha bom-senso.

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Filipe Morato Gomes

Autor do blog de viagens Alma de Viajante e fundador da ABVP - Associação de Bloggers de Viagem Portugueses, já deu duas voltas ao mundo - uma das quais em família -, fez centenas de viagens independentes e tem, por tudo isso, muita experiência de viagem acumulada. Gosta de pessoas, vinho tinto e açaí.

15 comentários em “Fotografar pessoas: por que me é cada vez mais difícil fazê-lo”

  1. Excelente texto Felipe.

    Também sinto um certo constrangimento ao fotografar pessoas. Me parece que invadimos um mundo para o qual não fomos convidados.

    Abraços!

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  2. Eu aí sou um pouco suspeito porque não sou grande fã de retratos, seja de tirar ou mesmo de ver. Logo essa fotografia de olhos nos olhos, que na Ásia é tão viciante nas primeiras viagens, começa a ser oca e sem conteúdo, porque representa uma intimidade que não existe. Raramente faço retratos, e quando o faço é uma situação onde faz mesmo sentido.

    Acho que um retrato é uma foto bonita mas que nem sempre conta uma história e que lhe falta conteúdo, pedir a alguém para lhe tirar o retrato soa-me muito estranho e não tenho apetência para os coleccionar como troféu, Com o tempo fui tendendo a preferir captar um pouco mais do ambiente em volta para contar o resto da história: a rua, a oficina, a cozinha, etc, e para isso mesmo quando não há uma autorização explícita de quem está a ser fotografado tem sempre de haver a aceitação da pessoa para se estar ali.

    E para mim o lado ético acho que também tem a ver com isto (e com tantas outras coisas em viagem), eu tento sempre mostrar as pessoas sem rodeios mas de uma forma digna, e com retratos tenho a tal sensação do alguém que está numa feira ou zoo, e em muitas fotos de viagem que vejo até se nota o desconforto das pessoas…

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  3. Partilho desse sentimento. Para mim as viagens são uma experiência transformadora, um momento de aprendizagem e crescimento, em que todos os sentidos estão a funcionar a 100%.

    Se, por um lado, a máquina é um fator externo de distração e devaneio, pelo outro tem a vantagem de justificar algumas aproximações que de outra forma poderiam ser mal entendidas.

    Lembro-me por exemplo, no Sri Lanka, de ter entrado por uns campos agrícolas para me aproximar de uma rapariga com uma criança ao colo que caminhava por um trilho no meio dos arrozais. Levantei a câmara na minha mão direita, apontei para a máquina, e para ela, dando a entender que a gostava de fotografar. Fez um sorriso do tamanho do mundo, colocou a criança numa posição em que também pudesse ser vista, e orgulhosamente fez a sua pose, sem nunca desfazer o sorriso. Por causa disso, acabei também por conhecer a família, que estava a trabalhar nos campos… e gesto puxa gesto, estava a ajudá-los na labuta e posteriormente a almoçar na companhia de todos.

    Se não tivesse a máquina, penso que nunca estaria em posição de ter feito aquela aproximação.

    Para muitas pessoas, a fotografia é uma espécie de homenagem, uma forma de demonstrarmos o nosso interesse e por isso um motivo de orgulho. Naturalmente não é assim para todos os casos, e no caso da fotografia, infelizmente, muita gente só está lá para colecionar os momentos e não para os viver.

    Seja como for, sinto que vivo mais o momento e aprendo mais quando estou sem a máquina. São compromissos difíceis de gerir. Entre um e outro, hoje em dia prefiro fazer retratos contextuais… em que fotografo a pessoa no seu ambiente, de forma perfeitamente natural, sem me focar demasiado na pessoa em si.

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  4. Totalmente de acordo!

    Ultimamente sinto uma invasão e quase exploração o que se faz às pessoas, que me faz pensar sempre 2 ou 3 vezes se devo tirar uma fotografia a uma expressão, a um sorriso ou a alguém que me marcou. E, normalmente, acabo por não tirar.

    Penso que a última vez que tive essa liberdade foi numa viagem à Tailândia já há alguns anos, em Kachanaburi, onde percebi que as pessoas gostavam muito que lhes tirassem fotografias e até pousavam. Desde então, não me sinto confortável de o fazer e aflige-me ver as pessoas a invadirem vidas como se fossem coisas.

    Muitas vezes dou por mim a pensar no que essas pessoas acham sobre isto… ninguém lhes pergunta nada, simplesmente disparam…

    Eu até já chego a pensar 2 ou 3 vezes se peço autorização… às vezes sinto que não tenho esse direito. Se quero muito tirar uma fotografia procuro um enquadramento específico, ao longe, ou qualquer coisa que me ofereça o mesmo sentimento sem que levianamente invada a vida de alguém.

    No fundo partilho na íntegra do sentimento que passou no texto!

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  5. A propósito de tirar fotos a pessoas… estive no Gana há cerca de um ano, por uma semana, em trabalho. Neste país não se deve olhar olhos nos olhos, considerado como insulto/provocação e quanto às fotos nem pensar! Para além disso, é considerado crime fotografar edifícios públicos.

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  6. Eu não me sinto constrangida ao fotografar momentos e pessoas, vejo como uma lembrança, uma sensação que a câmera capta. Contudo, somente considero correto se houver autorização, pois ninguém tem o direito de invadir um momento do indivíduo sem que o outro permita.

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  7. Compreendo-te bem, Filipe! Na minha última viagem, à Guiné-Bissau, que chegaste a acompanhar no FB, nos últimos dias deixei de fotografar pessoas por não me sentir confortável e, que bom, senti-me aliviado e muito mais livre para fruir o momento presente! Parabéns, o teu texto é muito pertinente e oportuno!
    Abraço!

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  8. Olá Filipe, compreendo a sua dúvida e acho que o raciocínio que faz tem todo o sentido. Principalmente se pensarmos que ao fotografar alguém (excluo as fotos de família e entre amigos) poderemos estar a violar o seu desejo de privacidade. Poderemos aliás pensar ao contrário. Gostaria eu que me fotografassem? Acho que não.
    De qualquer forma, este é tema que me deixa confortável. Desde sempre detestei fotografar pessoas. Embora aprecie fotos destas, pois por vezes parece que até captam a alma do fotografado. Mas… será que era desejo dele que essa expressão fosse pública?
    Interessante debate, sem dúvida…
    Abraço

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  9. Gostarei eu que alguém estranho me fotografe?… certamente que não.
    Pessoalmente nunca faço da pessoa o sujeito da imagem… mas sim no conjunto da imagem e sempre com a necessidade de não a identificar.
    Quanto mais velho sou mais aplico esta regra.
    Cumprimentos,
    Vitor Ginja

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  10. “…Mas aquela fotografia mais intimista, olhos nos olhos, tem sido muito difícil para mim”.
    O seu texto está excelente. É isso mesmo. Não sou capaz! Não sou capaz de roubar!
    Acabo de chegar do Laos e quantas fotografias de monges budistas ficaram lá.
    Cumprimentos
    Rui Cabo

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  11. Não tenho feito viagens por diversos motivos, mas consigo chegar aos sítios através dos teus belíssimos textos e das grandes fotografias. Consegues levar-me com imaginação e sonhar, que estou no local, a viver o momento. Viajar em sonho através da “Alma de Viajante”.
    Para mim ver os rostos, é eu dar um bom dia e um sorriso para aquelas pessoas, são momentos com “Alma”.
    Partilho da opinião que só será correto se houver autorização, e sempre com o devido respeito.
    “Um Homem é pouca coisa. Um vento passa e com ele o Homem passa também. A erva murcha no chão e o Homem depressa seca com a erva. Mas o trabalho dele, somando a outro trabalho muda a face a Terra.” Agustina Bessa Luís, “A Terra Muda”.

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  12. Há muitos, muitos anos, quando ainda não se colocava tão “fortemente” a questão da privacidade … eu fotografei, na Alemanha, uma senhora, argelina, num contexto de mercado municipal. A senhora, e muito bem [passados 30 anos hoje reconheço que não o devia ter feito], chamou-me com toda a raiva “IDIOT”… Foi tal a raiva que nunca mais me esqueci! (não sou fotógrafa profissional) Apenas estava de férias… Há 30 anos!
    Foi só para partilhar convosco. :)

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  13. Olá, Filipe

    São estes textos que fazem [muita] falta na maioria dos Blogues de Viagem. Artigos que reflictam sobre a nossa pegada enquanto viajantes num mundo em constante mutação e global.
    E não há nada mais belo do que trocar umas palavras com os locais e, depois com calma, pedir um registo fotográfico com alma de viajante.

    Bem Hajas!

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  14. Que pena Filipe, as fotos que ficaram apenas na memória – em seu Cartão SD (pessoal), essas são as mais marcantes… pois se te chamaram a atenção era por que marcavam o momento!
    Costumo dizer que as fotos contam uma história, onde nem as palavras poderiam traduzir. Tem cenas que nos fazem viajar, pois quando a teleobjetiva humana focaliza te leva pra outro lugar. Pessoas contam histórias e fatos de um lugar. E nos foi tirado essa liberdade. De registrar, apenas como momentos especiais de crianças sorrindo, carinhas sujas, dançando na chuva… Coisas pequenas, mas espontâneas. É lindo seu trabalho… Quero ver mais… Achei hoje, procurando fotos da Islândia. Mas a responsabilidade me chama, mas voltarei aqui… Lindo. Parabéns!

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  15. Belo texto Filipe. Sinto o mesmo. Quantos rostos e cenas que só estão registados na minha mente. Isso é muito nobre, parabéns. Obrigado pela contribuição e legado. Muito sucesso na sua jornada. Beijinhos.

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