Joanesburgo, incompreendida e surpreendente

Por Mateus Brandão
Centro de Joanesburgo, África do Sul
Vista do centro de Joanesburgo ©iStock.com

Quando, em março de 2012 deixei a Cidade do Cabo, depois de sete meses de viagem desde a Noruega, comprometi-me a voltar num prazo máximo de cinco anos. Tinham ficado coisas por fazer, lugares por visitar. Não viajara no Shosholoza, não subira sequer à Table Mountain naqueles oito dias na Cidade do Cabo, por pura preguiça de fim de viagem (devia haver um nome para isso, para essa inação perante a eminência do fim e o cansaço do longo caminho percorrido).

Aquele mês na África do Sul, passado entre Joanesburgo e a Cidade do Cabo, deixara em mim uma estranha sensação de curiosidade, estranheza, medo e fascínio que eu desejava melhor compreender. Quatro anos volvidos, aqui estava eu de volta a Joanesburgo, na África do Sul, desta vez para começar uma viagem de 80 dias pela África austral e, por isso, sem desculpas para não fazer tudo o que queria e devia fazer (ou ter feito).

De regresso a Joanesburgo

A julgar pelos cruzamentos das grandes avenidas, pouca coisa mudara em Joanesburgo: nestes cruzamentos junto aos “robot” – como por aqui chamam aos semáforos -, continuam os mesmos obstinados limpa-janelas, incómodos para a maioria dos condutores; os mesmos malabaristas do diablo, os mesmos vendedores de carregadores de isqueiro; os mesmos anunciantes de colete refletor e anúncio espetado num capacete fluorescente.

Os índices de criminalidade não parecem ter diminuído e, por isso, a profusão de vedações eletrificadas ou de arame farpado continuam a impressionar no topo dos muros, já de si altos, das moradias.

Praça Nélson Mandela, Joanesburgo
Praça Nélson Mandela, em Joanesburgo ©iStock.com

Apesar de tudo, sabia-me bem voltar a Joanesburgo. Bastou sair do aeroporto para me deliciar com o cheiro do ar – esse perfume de África na noite quente – soprado por uma leve brisa que sacudia mansamente a copa das árvores nesta que é, contra todas as expectativas, uma das cidades mais verdes do mundo.

O que torna a cidade de Joanesburgo tão interessante é o seu lado surpreendente e improvável – mesmo que dela não se faça grande ideia. É um facto que ter família por aqui ajuda. Eles ensinaram-me, mesmo sem se darem conta, a apreciar a cidade.

No entanto, tenho consciência de que poucos encontrarão razões de sobra para visitar Joanesburgo. Mesmo para quem reside na maior cidade sul-africana, Joanesburgo continua a ser apenas o epicentro financeiro; lugar de trabalho onde escasseiam as distrações e onde o fosso social e as memórias do apartheid são mais evidentes.

Joanesburgo está longe de ser uma típica cidade africana – não seria sequer de esperar – devendo as suas raízes às vagas de emigração desde o tempo dos primeiros garimpeiros do ouro – como o confirma uma das inscrições do Museu do Apartheid: “nenhum outro lugar na África do Sul contém tamanha variedade cultural. Foi esta robusta mistura de nacionalidades, raças, culturas e línguas que deu a Joanesburgo o seu caráter único.” Assim é – e, quanto mais não fosse, qualquer visita vale por isso mesmo.

Museu do Apartheid, em Joanesburgo
Museu do Apartheid, em Joanesburgo ©iStock.com

Ao contrário da maioria das grandes cidades, com o centro tendencialmente ocupado pelas elites e os subúrbios povoados pelas classes menos favorecidas, Joanesburgo downtown é pouco convidativa e bairros como Hillbrow – aparentemente dominado por emigrantes africanos – são mesmo de evitar.

Em contrapartida, os subúrbios são urbanizações fechadas de moradias guardadas por segurança privada, perfiladas ao longo de ruas calmas e ensombradas, longe do centro e das infames townships como o Soweto ou Alexandra. Têm um certo ar americanizado, como Melville – provavelmente um dos bairros mais interessantes da cidade.

Com uma vibrante rua de cafés, bares e restaurantes e um bom leque de guesthouses, Melville é sem dúvida o lugar ideal para ficar e sentir a cidade, preparar um braai (tradicional churrasco) ao final da tarde, em redor da piscina e ao som do canto dos ibis negros de bico de foice, admirando os ninhos de tecelão pendendo das acácias, especialmente depois de um dia de muito calor, como os que por agora se têm sentido.

Ainda a propósito de Hillbrow, é possível ter um vislumbre do bairro a partir do antigo forte do agora Constitution Hill. Não sei se parece assim tão assustador ou se é apenas por sugestão de tudo quanto fui ouvindo a seu respeito, mas o que é certo é que não arriscaria percorrer aquelas ruas de prédios altos repletos de parabólicas, lojas mal-arranjadas e montras coloridas com os logótipos de operadoras de telefone, e táxis coletivos num pérpetuo vai e vem.

Já quanto ao Constitution Hill, é de visita “obrigatória”. Este forte, construído durante a guerra dos bóeres, serviu como estabelecimento prisional para invasores britânicos e prisioneiros políticos durante o período do Apartheid. Nelson Mandela passou aqui um ano em cativeiro.

Recentemente, foi parcialmente reconvertido em Tribunal Constitucional, albergando no seu interior uma coleção de arte de mais de 200 obras de autores contemporâneos. Na visita ao que resta do presídio, é possível perceber como até ali a segregação racial imperava, cabendo aos “brancos” mais alimento, mais espaço, mais tudo…

Outro dos locais que aconselho a visitar em Joanesburgo é o Museu do Apartheid. Possui uma fantástica exposição que nos transporta no tempo através da história, não só desse negro período, mas desde o tempo dos primeiros garimpeiros e fundadores da cidade, que em pouco mais de cem anos passou de um amontoado de tendas a uma das mais vibrantes cidades do mundo.

Pode, por exemplo, ficar a conhecer a descendência do português que organizou a primeira festa de natal de Joanesburgo, ou perceber como se organizava uma sociedade baseada na segregação racial e como essa mesma sociedade lutou e sofreu para derrubar esse racismo imbecil.

Pode perceber o ridículo de um sistema que catalogava as pessoas pela cor da pele, atribuindo-lhes direitos e deveres diferentes, mas que contemplava a possibilidade dessas mesmas pessoas mudarem de cor. A segregação racial levou à criação de zonas residenciais apenas destinadas a negros, como Alexandra ou o Soweto, e em determinada altura a zonas semi-independentes onde a comunidade negra deveria viver, passando a necessitar de uma espécie de “livre-trânsito” em caso de convite ou trabalho, para entrar na “cidade dos brancos”. Um sistema que procurava impedir a miscigenação e a igualdade.

Soweto, a maior township de Joanesburgo

Desse período, permanecem ainda muitas das townships então construídas. O Soweto é a maior de todas, com uma população de mais de três milhões de pessoas, e qualquer visita a Joanesburgo ficará incompleta sem uma ida ao Soweto. Como se diz por ali: quando o Soweto espirra, toda a África do Sul constipa. É o coração da cidade, durante anos separado do seu corpo.

Visita ao Soweto, Joanesburgo
Visita ao Soweto, o maior bairro de lata de Joanesburgo

E a visita é tão mais importante, para que se perceba a injustiça da infâmia e da incúria a que o Soweto tem sido votado. Estou certo que uma grande percentagem da população branca de Joanesburgo nunca ali pôs os pés, com a desculpa do medo de uma suposta violência. Por outro lado, pode parecer voyeurismo a visita a um lugar como o Soweto, mas a verdade é que só assim se entende plenamente a cidade de Joanesburgo.

O Soweto não é um amontoado de casas de lata (ainda que as haja), é muito mais que isso. É o berço de gerações lutadoras e outras que procuram agora virar a página e caminhar no sentido das palavras de Madiba, no sentido de uma nação multicultural e igualitária. Em Joanesburgo percebe-se que há ainda muito caminho a percorrer, mas é precisamente aqui, lugar de tantas batalhas, que melhor se sente a vontade sul-africana de o percorrer.

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Mateus Brandão