Ao contrário do que muitos imaginam, Katmandu, a capital do Nepal, apesar da proximidade dos Himalaias, raramente vê neve no seu solo. Em contrapartida, o vale de Katmandu possui das maiores riquezas monumentais que se possa imaginar, contando com três antigas capitais recheadas de monumentos protegidos pela UNESCO, que fazem o viajante recuar no tempo.
O Vale de Katmandu
O vale é uma espécie de tigela arredondada com vinte quilómetros por vinte e cinco, onde a altitude de mil e trezentos metros e o abrigo proporcionado pelos montes em volta, que não vão além dos dois mil e oitocentos, proporcionam um clima agradável, sem calores ou frios realmente extremos. Uma jóia verde entre os picos inóspitos que o rodeiam. A área sempre foi fértil, produzindo com fartura o alimento mais importante da Ásia, o arroz, mas também outros cereais, assim como frutas e legumes variados.
Desde sempre que o vale é um cruzamento de povos e raças das montanhas e da planície, uma vez que o Tibete fica a Norte e as planícies da Índia a Sul.
A etnia considerada como originária da zona e responsável por uma arquitectura tradicional única é a newar, que teve a sua idade de ouro no século XVII, quando os reis Malla e as suas cidades-Estado floresciam em palácios e templos, numa competição bem mais saudável do que as ocasionais guerras entre si.
Ainda hoje há alguma competição entre Katmandu, a capital do reino do Nepal, Patan, a vizinha do outro lado do Rio Bagmati e Bhaktapur, a mais isolada das três. Os problemas do vale, no entanto, neste momento são outros.
O visitante que chega ao reino do Nepal tem de aterrar no aeroporto internacional de Katmandu e, desde logo, na viagem até ao centro, pode constatar o caos urbano de uma cidade paupérrima: as casas nascem em qualquer lado e parecem nunca ser terminadas, a população é notoriamente abundante e tem vindo a aumentar, arrastando um igual crescimento de veículos motorizados de espécies várias – e alguns só podem ser mesmo catalogados nos “vários”, tal é a originalidade do produto.
Em muitos lugares os rios estão transformados em lixeiras, e não faltam resíduos amontoados aqui e ali pelas ruas, à espera da recolha. O belo vale está nitidamente ameaçado por todos os tipos de poluição e, das últimas vezes que visitei as suas cidades, muitos polícias (e alguns turistas japoneses) já usavam máscaras protectoras a cobrir o nariz e a boca.
Mas a verdade é que nada consegue esconder o esplendor da arquitectura, o charme dos pátios, nada se compara à descoberta de mais uma pequena estátua coberta de pó escarlate e oferendas de arroz, escondida num dos cantinhos das ruas.
Katmandu, a capital nepalesa
Todos os caminhos vão dar a Durbar Square, a Praça do Palácio em tradução directa, onde fica um dos antigos palácios do rei. O contraste entre as partes mais recentes da cidade e a zona antiga são gritantes: ruas poeirentas de tráfico ruidoso e um intenso cheiro a gasolina no ar, montras de electrodomésticos, painéis publicitários, monstruosidades de cimento, a ocasional vaca a ocupar um passeio, são a imagem da “modernidade”.
A área da praça Durbar e arredores, os raros lugares onde os carros não chegam, parece outro mundo. Os cheiros a madeira e incenso queimado, o som dos sinos tocados pelos crentes nas suas ofertas, o revoar das pombas junto à entrada do Palácio Real são cheiros e sons tão antigos como o Templo Kasthamandap, a “casa de madeira”, que já existia neste lugar no século XII e acabou por dar o nome a Katmandu.
Na casa da Kumari, a menina-deusa, as janelas estão abertas, mas só as pombas e os grupos de turistas se agitam no pequeno pátio. Na praça há sempre turistas, vendedores ambulantes que ocupam parte da área, e alguns riquexós perto de uma grande estátua de Garuda, o homem-pássaro que aparece associado ao deus Vixnu.
Este é o único país de religião oficial hindu em todo o mundo, mas não faltam lugares de culto para os budistas, como a enorme stupa (construção em forma de sino, com uma forte simbologia, que marca um lugar sagrado) de Bodnath ou de Swayambunath, mais pequena mas não menos impressionante, empoleirada numa colina e rodeada de árvores e macacos atrevidos.
Das coisas mais fascinantes a fazer é deambular sem mapa, seguindo vagamente o caminho de Durbar ao “ghetto” turístico de Thamel, onde os turistas comem croissants ao pequeno-almoço, pizza ao almoço e rosbife ao jantar, e terminam o serão num pub irlandês ou numa discoteca.
Depois de ver o mundo passar do alto de um dos templos da praça, deixamos para trás vendedores de flautas e falsos ascetas hindus vestidos a rigor, que posam para as fotografias a troco de (bastante) dinheiro, para percorrer um pouco da cidade.
A arquitectura newar, presente em todo o vale, aparece aqui em toda a força: os castanhos e laranjas quentes dos templos, as varandas e janelas de madeira finamente esculpida, os telhados esverdeados de bronze que se armam em abas sucessivas, sempre mais altos do que as paredes que os suportam, tudo tem um estilo inconfundivelmente nepalês.
O gosto dos newar pela vida comunitária é evidente nos grandes pátios que vamos descobrindo, partilhados por várias famílias, com os seus pequenos templos ou altares privativos. Aqui e ali surge um mercadinho de rua, uma estatueta do deus Ganesh, crianças sorridentes de uniforme escolar, mais uma pequena stupa embrulhada em cabos eléctricos. Não falta nada nas montras das lojas e, no entanto, nada nos diz que estamos numa capital.
Patan ou Lalitpur, a cidade da beleza
O esforço para a transformar na mais bela das cidades, entre os séculos XVI e XVIII, é mais do que evidente: separada de Katmandu apenas pelo Rio Bagmati, Patan possui a maior concentração de monumentos do vale. Para além disso, apesar da mistura de budismo e hinduísmo que é comum no Nepal, Patan é realmente a mais budista de todas, com quatro stupas a marcar o que já foram os seus quatro cantos, antes da cidade transbordar até Katmandu.
O Palácio Real está aqui rodeado por um número de templos que parece ilimitado e os seus telhados metálicos em estilo de pagode quase se sobrepõem, e abrigam milhares de imagens de todos os tamanhos, esculpidas em pedra ou em madeira e pintadas com cores garridas, formando a maior exposição do mundo de arquitectura e escultura nepalesa. Para além disso, a sua Praça do Palácio é a mais antiga das três cidades, embora tenha sido muito danificada durante a conquista do vale (vd. Sangue na Neve).
O templo mais antigo parece ser o Jaganarayan, guardado por dois leões e com as estruturas dos telhados cravejadas de criaturinhas nas posições sexuais mais exóticas, numa demonstração clara de que quem inventou o Kama Sutra foi mesmo um crente hindu.
A naturalidade é tudo e, longe de serem consideradas pornográficas, as figurinhas são encaradas com divertimento e pintadas com cores que só existem na Disneylândia. Como em todos os lugares do país, as crianças brincam por ali, adolescentes conversam encostados às bicicletas, a confusão costumeira de tráfego e gente vai escurecendo as paredes e a figura do rei Yoganarendra Malla, empoleirado ali ao pé sobre uma coluna e protegido por uma cobra sobre a qual se equilibra um pássaro.
Diz a lenda que enquanto o pássaro ali se mantiver, é possível que o rei regresse ao palácio – se calhar, nesse dia os elefantes de pedra do templo também vão beber água ao rio…
A não perder são o Templo Dourado, um reluzente e elegante mosteiro budista, e os muito hindus Rato Machhendranath e o seu irmão mais alto, o Minanath, ambos requintadamente pintados, o último numa recatada e espaçosa praça quase esquecida pelos turistas.
Turistas. Em grupos apressados mas também mochileiros solitários, prontos a descobrir os recantos da cidade enquanto descansam entre dois trekkings nos Himalaias.
Com a proximidade de Katmandu, poucos ficam em Patan, preferindo alugar uma bicicleta ou apanhar um daqueles inclassificáveis e fumarentos transportes públicos, onde somos obrigados a falar com os sempre amáveis nepaleses. Um rapazola passou por mim cheio de pressa mas, ao ver-me de máquina fotográfica em punho, fez um grande sorriso e apontou-me a porta de um templo e desapareceu na sua pressa.
Apesar de já ter tido a minha dose diária de templos, pátios, mosteiros, pagodes e palácios reais, não resisti à curiosidade e meti a cabeça na porta. Dava para um pátio com leões, elefantes, pavões, garudas, sinos, bandeiras e cabras, se é que não esqueci nada. Naturezas mortas, evidentemente, mas tão gaiatos e numa tal profusão que mais parecia o recreio dos príncipes num qualquer palácio real.
Bhaktapur ou Badgaon, a cidade dos devotos
O seu antigo nome empresta-lhe uma aura religiosa que hoje não se reconhece. Se bem me lembro, ao entrar na Durbar Square de Bhaktapur senti-me na menos real das cidades, mas também na mais limpa e bem tratada de todas – desde os anos setenta que um projecto de desenvolvimento internacional levou a cabo o restauro dos monumentos, a pavimentação das ruas e a construção de uma rede esgotos, com resultados bem visíveis.
Grande parte da cidade está fechada ao trânsito e as ruas por onde passamos, sem a costumeira confusão de peões, bicicletas e riquexós, parecem as de um enorme museu ao ar livre. Mas percorrendo a única grande rua da cidade, entre a praça Durbar e a praça dos oleiros, se esquecermos a linha quase contínua de lojas para turistas e espreitarmos para as ruelas laterais vemos que, afinal, a cidade está tudo menos morta ou desabitada: há quem moa cereais na rua ou os ponha a secar em cestos redondos, quem converse com o vizinho ou saia de casa com dois cântaros nas mãos, para ir buscar água à fonte mais próxima; e em Bhaktapur são especialmente bonitos e abundantes estes hitis, as condutas de água que terminam em fontes, onde é frequente ver mulheres a dar banho aos filhos ou a lavar o cabelo.
Na própria praça dos oleiros, os artistas aproveitam a sombra dos alpendres para fazerem os seus púcaros de argila sobre rodas de madeira, como vêm fazendo desde há séculos, juntando pacientemente mais um pote aos milhares que jazem pelo chão, cobrindo quase toda a praça, à excepção de uns carreiros para os peões.
A nível monumental, a antiga Badgaon, capital do vale entre os séculos XIV e XVI, possui algumas jóias a não perder, mas sobretudo tem uma atmosfera quase medieval aparentemente inalterada. A sua praça Durbar é maior que a de Katmandu e mais espaçosa que a de Patan, isto apesar das boas relações do rei Ranjit Malla com o primeiro conquistador do vale e fundador do país, Phritvi Narayan Shah (vd. Sangue na Neve), que a poupou da destruição, ao contrário do que tinha feito às outras duas.
O grande demolidor aqui acabou por ser o terramoto de 1934, que devastou grande parte dos edifícios mais antigos.
Restaurados ou não, ainda podemos ver alguma estatuária interessante, como os leões que guardam o portal de acesso a Durbar e ao Palácio Real, ou as magníficas imagens dos ameaçadores Bhairab e Durga, um com doze e outro com dezoito braços, cada um com a sua arma de guerra.
Bhaktapur possui também o templo mais alto do vale e um dos melhores exemplos da arquitectura tradicional nepalesa, o Nyatapola, com cinco andares e trinta metros de altura, onde cada lanço de escada é flanqueado por guardiões de pedra: há gigantes, elefantes, leões, deuses, e cada figura é dez vezes mais poderosa do que a que lhe fica abaixo – o que não impressiona minimamente as crianças que por ali brincam cheias de alegria, montando-as como nos carrosséis.
Sangue na neve de Katmandu
“Blood against the snow” é o título do livro escrito pelo jornalista inglês Jonathan Gregson, no qual o autor tenta contar o que realmente se passou durante o massacre da família real nepalesa, em Junho de 2001. Mais do que isso, ficamos a conhecer a história deste país, aparentemente tão calmo e pouco falado, mas onde afinal os massacres e as mudanças violentas de governo e de dinastia não foram coisas raras. O poder andou dividido entre as lutas dos Rana e a dinastia dos Shah, e desde o século XVIII que esta última família passava a coroa real de pai para filho.
A história do país como nação unificada e independente começa em Gorkha, uma pequena aldeia cujo rajá decidiu que gostaria de unir sob o seu poder os três principados mais importantes que dividiam o vale de Katmandu entre si, e cujas capitais eram Bhaktapur, Katmandu e Patan. Os reis Malla dominavam todo o vale desde há mais de cinco séculos, guerreando-se de vez em quando, e a área que dominavam era conhecida por Nepal.
Em 1768, o rajá – agora rei – Prithvi Narayan Shah, tinha conseguido conquistar o vale e os contrafortes dos Himalaias que o rodeiam, dando início ao moderno Reino do Nepal. Uma curiosidade: os britânicos, que vieram em socorro dos reis Malla, ficaram muito impressionados com os soldados do rei Prithvi Narayan, e ainda mais ficaram durante a posterior guerra anglo-nepalesa, entre 1814 e 1816, de tal modo que ainda hoje contratam homens das tribos guerreiras das montanhas para o seu exército, o chamado regimento Gorkha.
O seguimento da história dá-nos conta de uma sucessão de reis usurpados, dois massacres, regências conduzidas por mães ou tios, golpes de estado e, o mais estranho, a transmissão do cargo de primeiro-ministro de pais para filhos dentro da família Rana.
Este poder paralelo, maior do que o dos monarcas, foi mantido através da educação dos jovens príncipes, que viviam como prisioneiros no palácio real, usufruindo de todos os prazeres e facilidades de modo a encorajar-lhes uma vida fútil e sem qualquer interesse ou conhecimentos sobre a política do reino. A tal ponto que, em 1950, o rei Tribhuvan e a sua família fugiram para a embaixada da Índia e pediram asilo político! Só assim o poder real voltou de novo às mãos dos Shah, até aos dias de hoje.
Desde 1972 que o país foi governado pelo filho de Mahendra, o rei Birendra, até este ter sido assassinado no massacre de 2001. Apesar de moderado nas suas posições, o rei teve de enfrentar violentas manifestações em 1990, que resultaram em centenas de civis mortos e feridos, e a guerrilha maoísta ganhou terreno ao ponto de formar um governo alternativo algures no território.
A insegurança política reinava – e reina – quando o príncipe herdeiro, Dipendra, depois de um jantar com grande parte da família, se retirou para aparecer de novo armado até aos dentes e disparando em todas as direcções, matando dez pessoas – incluindo o pai, a mãe, dois irmãos e a si próprio. É triste dizê-lo, mas a família real foi vítima de si própria. Os Shah parecem ter entrado no século XXI sem a mínima noção da realidade actual, mantendo à força um governo autocrático que só uma população desgraçadamente iletrada e miserável (99% dos nepaleses vivem abaixo da linha da pobreza) consegue suportar.
O exemplo mais acabado é a resistência oposta ao casamento do príncipe Dipendra com Devyani Rana, apesar da sua linhagem nobre. Juntando esta frustração ao abuso de álcool e à facilidade de acesso às mais modernas armas – o príncipe herdeiro é por tradição o chefe do exército nepalês – era uma questão de tempo até alguma coisa séria acontecer.
O Partido Comunista Maoísta, excluído do Parlamento nas eleições de 1996, aproveitou este período de luto para os nepaleses, que gostavam tanto do rei Birendra como detestam o novo rei Gyanendra e o novo príncipe herdeiro Paras, para intensificar a sua luta, que atingiu novo auge.
Depois de escaramuças e bombas ocasionais, que já tinham originado mais de oito mil mortos durante os últimos anos, foi a vez de alargarem o território aos Himalaias nepaleses, que atraem alpinistas e montanheiros de todo o mundo, representando uma das mais importantes das escassas fontes de receitas do país. Grupos maoístas – e não só – dedicaram-se à extorsão dos turistas, obrigando-os a pagar por vezes milhares de rupias para prosseguir caminho.
Neste momento a impunidade é tal que chegam mesmo a passar recibo, para que outro grupo não possa fazer nova exigência mais adiante. Não há nenhum registo de ataques físicos, mas a pressão verbal e psicológica não deixa ninguém arriscar. E os nepaleses abrigam-nos nas suas casas e alimentam-nos, a bem ou a mal, enquanto estes se dedicam a estas tarefas “revolucionárias”.
A extensão dominada pelos maoístas foi aumentando até que conseguiram cercar a capital, sequestrando Katmandu para exigir o fim da monarquia e um regime de partido único. Retiraram ao fim de uma semana com a promessa de voltar dentro de pouco tempo. E com a perspectiva futura de ter o príncipe Paras no trono, que já tem no seu rol de malfeitorias dois atropelamentos mortais seguidos de fuga, é natural que o povo nepalês, tendo que escolher entre um regime de partido único e um rei a quem por tradição nem sequer é permitido investigar por crimes, optem pelo primeiro.
Guia de viagens a Katmandu
Este é um guia prático para viagens a Katmandu, no Nepal, com informações sobre a melhor época para visitar, como chegar, pontos turísticos, os melhores hotéis e sugestões de actividades na região.
Quando ir
Qualquer altura do ano é boa para visitar o vale de Katmandu: mais frio no Inverno e mais chuvoso no Verão, mais quente e húmido na Primavera, mais seco no Outono.
Como chegar
Não há voos directos de Portugal para Katmandu. Terá que voar via uma capital europeia. Também pode optar por uma viagem organizada. Empresas como a Nomad comercializam viagens ativas a Katmandu.
Hotéis e restaurantes em Katmandu
Em Katmandu, toda a gente fica em Thamel, onde há hotéis e pensões para todas as bolsas. Pessoalmente, não gosto. Prefiro a Annapurna Guest House, em Freak Street, com um bom restaurante por baixo e mais um punhado espalhado pela rua.
Informações práticas
É necessário comprar um visto à chegada ao Nepal – um mês custa 30 dólares americanos, e tem mesmo de se pagar em dólares. Para trocar, é melhor levar Euros: um Euro vale mais de 110 rupias nepalesas. Para entrar nas praças Durbar paga-se 200 rupias; se pretender circular à vontade, leve uma fotografia e peça um cartão de circulação numa das guaritas que controlam as entradas – assim só paga uma vez.
Seguro de viagem
A IATI Seguros tem um excelente seguro de viagem, que cobre COVID-19, não tem limite de idade e permite seguros multiviagem (incluindo viagens de longa duração) para qualquer destino do mundo. Para mim, são atualmente os melhores e mais completos seguros de viagem do mercado. Eu recomendo o IATI Estrela, que é o seguro que costumo fazer nas minhas viagens.