La Paz, a capital da Bolívia, situa-se a mais de 3.600 metros de altitude e cresce sem parar em direcção ao planalto andino que a espreita. O contraste entre os prédios modernos do centro e as casas inacabadas do resto da cidade é tremendo – e fica apenas a dois passos da grandiosa capital do império de Tiahuanaco.
Chegada a La Paz
Entrar na Bolívia vinda da Argentina é como mudar de planeta ou, pelo menos, de época: se a Sul encontramos cidades que só correm o risco de nos entediar por serem idênticas a qualquer outra na Europa, a Norte entramos num mundo de mulheres de saias rodadas e chapéu, dentes esverdeados pelas folhas de coca que constantemente mascam, autocarros destroçados que passam cuspindo fumo para cima de gente que come sentada nos passeios estreitados por tanta mercadoria artesanal.
Villazón é uma cidade-bazar, como todas as cidades fronteiriças, sobretudo quando há grandes diferenças de cotação entre as moedas nacionais. Demorei alguns dias a chegar a La Paz, emocionada com a mudança e extasiada com a paisagem. Encontrei Potosí pintada de branco por um nevão extemporâneo, e a bela cidade colonial de Sucre, capital constitucional do país, em luta pelo estatuto de capital “por inteiro”.
Entre Sucre e La Paz viajei de noite. Acordei em El Alto, a cidade que tem crescido nas bordas do precipício no fundo do qual cresce a capital côncava de um país de altitude: casas por acabar ocupam qualquer espaço livre, transbordam pelas vertentes arredondadas da montanha, pequenas edificações em tijolo que lembram brinquedos de crianças.
A primeira impressão é a de estarmos numa grande favela onde as casas nunca são pintadas mas estão cheias de vida, as ruas são de terra mas não faltam carros. Por força da repetição, o conjunto acaba por se tornar harmonioso e aceitável, contrastando de uma forma bizarra com os prédios que se levantam ao longo da avenida Prado e as vivendas da Zona Sur.
Em La Paz, as classes sociais dividem-se por altitude: quanto mais em baixo, mais oxigénio, menos frio e mais riqueza; as camadas sociais mais pobres vão-se acumulando nas encostas e em El Alto. Ruas asfaltadas, prédios, veículos privados, semáforos, avenidas, edifícios com vidros espelhados, supermercados internacionais, bares e discotecas tornam-se mais comuns à medida que descemos para a Zona Sur, a mais baixa.
São dois mundos que se acotovelam nesta bacia redonda vigiada por magníficos picos nevados: as cholas, mulheres vestidas à maneira tradicional, de pollera – a saia rodada, que aqui chega até aos pés – e chapéu de coco, descem as ladeiras até ao Prado e arredores, para trabalhar e vender os seus produtos, na rua ou no Mercado Municipal; trazem legumes, fruta, queijo fresco, empanadas, pão e coca – que não vendem tão à vista como em terras mais pequenas.
De aspecto robusto e pés e mãos delicados, não têm o sorriso fácil. A cor da pele é lindíssima: um tisnado que só se vê nas montanhas, um suave tom de mel que deixa passar o rosado das maçãs do rosto.
Com os habitantes da Zona Sur pode haver cruzamento, mas não mistura; são uma minoria branca, e herdaram dos espanhóis de outrora o desprezo pelos nativos, que se bamboleiam com orgulho e desconfiança dentro dos seus trajos típicos, mascam coca, fazem ofertas à Pachamama, consultam os xamanes que rondam à porta da Igreja de S. Francisco, e frequentam o mercado de mezinhas e bruxarias da rua Linares.
Tiahuanaco, berço da mais importante civilização pré-colombiana da Bolívia
Dois mundos, um país. A província de Santa Cruz, que produz grande parte da riqueza nacional, também partilha o desdém pelos índios de La Paz e do planalto andino, símbolos da tradição onde se quer mudança, desde sempre associados à ignorância e à pobreza – já que desde a chegada dos europeus nunca tiveram acesso a educação ou riqueza.
E no entanto, Tiahuanaco fica apenas a setenta quilómetros daqui, a quatro mil metros de altitude.
Capital e centro religioso de um império anterior ao inca, os seus vestígios arqueológicos revelam um conhecimento superior dos astros, um elevado grau de criatividade artística e um grande avanço tecnológico para uma cultura que se desenvolveu entre 1500 a.C. e 1200 d.C. Aqui floresceu a mais importante civilização pré-colombiana da Bolívia.
E apesar de ter sido usada como pedreira para construções posteriores ao longo dos séculos, Tiahuanaco ainda mostra a sua grandeza arquitectónica: as escavações continuam, revelando gigantescas estrelas de pedra lavrada, restos de uma pirâmide, o Arco do Sol, que se acredita ter funcionado como calendário agrícola, um templo subterrâneo onde se destacam cabeças de pedra com expressões distintas, um templo solar e inúmeras peças de cerâmica e metal.
Existem dois pequenos museus neste centro arqueológico, e ainda o Museu Tiahuanaco, em La Paz, que exibe os artefactos e peças de grande valor artístico que continuam a ser encontrados, testemunhos de um império que se estendeu da costa do Pacífico, no Sul do Peru, ao Norte da Argentina.
Para melhor apreciar estes requintados vestígios de uma civilização desaparecida, aconselha-se uma visita tranquila num dia soalheiro, usufruindo assim do chocante contraste com a grande favela da capital: a natureza “lá em cima”, no planalto andino, percorrido por pastores de lamas e ovelhas que aproveitam as ervas secas batidas pelo vento, brotando a custo numa terra acostumada ao gelo e à neve, é de uma beleza inóspita. O silêncio é total e o panorama infinito.
De regresso a La Paz, o único império visível é o espanhol. Na igreja de S. Francisco, nos palácios governamentais da Praça Murillo, na pequena rua Jaén, com casas pintadas de cores naif – e pouco mais. Do parque central, assente sobre um morro onde escorregas e balouços coloridos atraem algumas crianças, a vista abrange o belo-horrível da cidade, que ocupa completamente a gigantesca depressão que, diz a lenda, é uma pegada do deus Viracocha: as casinhas de tijolo parecem incrustadas na terra, forrando todos os morros, alinhadas em ladeiras e iluminadas pelo reflexo do sol na neve da Cordilheira Real. No centro levanta-se um ramalhete de prédios, alguns com vinte andares e vidros espelhados, um verdadeiro ouriço de cimento no centro da concavidade urbana.
Há qualquer coisa de irreal nesta cidade habitada por vendedoras de rua de tranças e olhar escuro, sentadas no seu repolho de saias garridas. Feiticeiras vendem fetos de lama e sapos secos com bolas douradas incrustadas nos olhos, e as igrejas têm gente a qualquer hora do dia. Centenas de jovens engraxadores trazem a cara coberta com passa-montanhas, como se fossem assaltar o banco mais próximo.
Um desfilar contínuo de transportes colectivos de tamanhos variados dá trabalho a meninos que não podem ter mais de dez anos, e que gritam pela janela o próximo destino. O trânsito é diabólico e quem tirar aqui a carta será grande especialista do uso da embraiagem, graças às rampas e encostas que compõem a cidade.
O cenário é caótico, as personagens singulares, e a história conheceu um novo episódio com a eleição do primeiro presidente ameríndio, Evo Morales. Muito se espera deste país, que já foi um dos mais ricos do mundo, e que agora é um dos mais pobres. A expectativa não é a de outra Tiahuanaco, mas a de que um dia a capital seja feita de casinhas terminadas e ruas asfaltadas.
A chuva, que muitas vezes faz desabar os morros e escorregar em rios de lama as habitações precárias das encostas, empurrou-me mais para Norte, para o Lago Titicaca, no Sul do Peru. Sempre ao longo da cordilheira dos Andes, a coluna vertebral da América do Sul, atravessei de novo o planalto que leva a Tiahuanaco, em direcção à origem da civilização que a destronou: o Vale Real dos Incas.
Folhas de coca e cocaína
Impossível falar da Bolívia sem que se pense na questão da coca. Adorada por alguns e demonizada por muitos, esta é uma planta utilizada pelas culturas andinas desde há milénios: há provas de que já era conhecida pelas culturas Tiahuanaco e Chavín, e utilizada de forma medicinal, ritual e religiosa.
Culturalmente corresponde a tomar um cafezinho ou um chá; é um acto social, em que se oferece as melhores folhas para mascar durante uma longa conversa – e mesmo a maneira de as oferecer e receber, soprando sobre elas em respeito pelos deuses e não as cuspindo no fim de as mastigar, revela a educação dos participantes no acto.
São queimadas como oferta à Pachamama (a Mãe-Terra), fazem parte dos rituais de adivinhação e têm efeitos medicinais que ajudam no alívio da fome e na resistência ao frio. Também pode ser tomada em infusão, como um chá – quase todos os restaurantes da Bolívia e Peru a oferecem – e o seu efeito vai do estimulante ao anestésico.
Apesar da igreja, nos tempos da ocupação espanhola, ter começado por condenar o seu uso, depressa voltou atrás ao verificar que um indígena trabalhava o dobro e comia metade se lhe fosse permitido usá-la.
Só no século XIX alguns investigadores, como Albert Nieman, descobriram como fabricar cocaína a partir deste arbusto medicinal.
A coca foi então retirada do seu contexto e uso natural, seguindo-se a sua utilização indiscriminada e a falta de controlo que levaram a que fosse declarada uma droga extremamente perigosa e, consequentemente, proibida.
Os camponeses andinos, esses limitam-se a sofrer as consequências. Mas para já a pressão dos Estados Unidos para que seja suprimido o seu cultivo ainda não conseguiu acabar por completo com certas tradições, como a oferta de coca à noiva, que devolve a mesma quantidade ao noivo para dizer que aceita casar.
E o primeiro cultivo depois do casamento é o de um pequeno campo de coca junto à casa…
Guia de viagens a La Paz
Este é um guia prático para viagens a La Paz, com informações sobre a melhor época para visitar, como chegar, pontos turísticos, os melhores hotéis e sugestões sobre o que fazer na capital da Bolívia.
Localização geográfica
A Bolívia situa-se no coração da América do Sul, sem acesso à costa, separada do Oceano Pacífico pelo Chile, e do Atlântico pelo Brasil. A sua população, maioritariamente andina (cerca de 60%) – sobretudo das etnias quíchua e aimará -, não atinge os oito milhões e vive sobretudo nos planaltos montanhosos que ocupam cerca de 20% do país, a cerca de 4.000 metros de altitude. La Paz tem uma população de quase três milhões de habitantes, incluindo El Alto e arredores, e é a capital mais alta do mundo.
Quando ir
A época de dezembro a março é a única desaconselhada, por ser a das chuvas. As noites são muito frias durante todo o ano, devido à elevada altitude.
Como chegar a La Paz
Não há ligações diretas entre Portugal e a Bolívia. As hipóteses mais baratas são provavelmente voar para o Rio de Janeiro com a TAP, por cerca de 800 €, e daí entrar por terra na Bolívia; ou voar do Rio a La Paz com a TAM, por cerca de 430 €. O aeroporto situa-se em El Alto, a 4.000 metros de altitude. Para visitar Tiahuanaco, o melhor é recorrer aos serviços das pequenas agências ou do hotel onde está alojado; compare os preços e a duração da visita.
Onde ficar
Todas as capitais oferecem grande diversidade de opções, e La Paz não é excepção. O centro do turismo independente é nos arredores da rua Sagárnaga, por trás da igreja de S. Francisco, a dois passos do Prado. É aí que encontramos muitos hotéis como o Hostal Maya, no número 339, que oferece duplos com casa de banho e pequeno-almoço por 80 Bolivianos (cerca de 9 €). Do outro lado da escala pode escolher o Hotel Gloria, na rua Potosí 909. Se quiser ficar uma noite em Coroico também tem escolha; um dos hotéis mais conhecidos é o Sol y Luna, que tem desde quartos a apartamentos. Um duplo custa entre 70 a 120 bolivianos (8 € a 13 €).
Restaurantes em La Paz
Na zona da rua Sagárnaga há muitos restaurantes e pequenos cafés com comida do Médio Oriente, italiana, chinesa, passando por pequenos-almoços biológicos – é só sair do hotel e escolher. Para comida com sabor boliviano, pode tentar o Club de la Prensa, na rua Campero 52 ou a Casa del Corregidor, na praça Murillo 1040. Durante a viagem de bicicleta, todas as agências providenciam sanduíches e água, bem como uma refeição à chegada. Mas há restaurantes de opção em Coroico.
Informações úteis
Não precisa de visto para entrar na Bolívia; ser-lhe-á dada uma autorização de permanência à chegada. O nível de vida é baixíssimo e 1 euro vale cerca de 11,50 Bolivianos. Em La Paz há ATMs distribuídos por toda a cidade; redobre os cuidados com a segurança nas zonas turísticas da Igreja de S. Francisco e Sagárnaga, ao fazer levantamentos. A comida tradicional baseia-se no milho e na batata, que existe em cerca de 400 variedades incríveis e saborosas, mas inclui também carne – como a de lama – e peixe de água doce. A língua é o castelhano mas há quem fale inglês. No terminal de autocarros há um quiosque do Turismo que dá boas informações e mapas da cidade.
Seguro de viagem
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