A fronteira da Bolívia com o Peru fica nas margens de um dos lagos míticos do planeta, o Titicaca, que já fez parte do mais importante império andino de sempre: o Império Inca, que teve o seu centro no riquíssimo Vale Sagrado.
Na rota dos incas: do Titicaca ao Vale Sagrado
A chuva só acalmou quando deixei a Bolívia. Depois da tempestade que perseguiu o barco desde a bela ilha da Lua, no Lago Titicaca, e das torrentes que escorriam pelas ruas da cidade de Copacabana, apanhei um autocarro igualmente molhado até à fronteira com o Peru, ali tão perto, e contornei o lago em direcção a Puno. O recorte escarpado das margens bolivianas vai dando lugar aos terraços planos do lado peruano; só não consegui ver a mancha safira das águas, transformada, pela cor das nuvens, numa sombra cinzenta.
Em Puno, uma catedral do século XVI marca o centro da cidade, onde se concentram comércio e bancos. Se juntarmos à catedral o Arco de Deústua, que honra os mortos em batalhas pela independência, está feita a ronda dos monumentos mais importantes. Mas nas proximidades do arco há algo muito mais interessante: um miradouro que nos dá uma visão de 360 graus sobre Puno.
Ao fundo fica o Titicaca, plácido e liso, o lago navegável mais alto do mundo. Estamos a três mil oitocentos e cinquenta e cinco metros de altitude, e por trás das colinas que servem de cabeceira à cidade os montes mais altos estão pintados de neve fresca. O casario estende-se das margens às encostas, num encadeado de casinhas simples ao “estilo La Paz” – por terminar e com o aspecto infantil de um jogo Lego.
Fiquei uns dias à espera de bom tempo, viajando entre Puno, a velha necrópole de Sillustani e as ilhas dos Uros – mas esperavam-me os incas e o seu Vale Sagrado. Parti então rumo a Cuzco, onde teve início o mais importante império andino. A paisagem revela uma agricultura intensa. Os campos estão divididos em rectângulos e são trabalhados com arados de tracção animal, conduzidos por homens e mulheres – elas vestidas com as mesmas roupas tradicionais do outro lado da fronteira: chapéu, pollera (saia rodada) e uma trouxa garrida às costas, de onde tanto desponta a cabeça de um bebé como as compras do dia ou o farnel.
Cuzco, o berço do Império Inca
Um pequeno passeio por Cuzco mostra que os colonizadores espanhóis não se pouparam a esforços para obliterarem por completo uma cultura que consideravam inferior; mas ei-la que surge do chão, em pedras talhadas e encaixadas como puzzles, servindo de plataforma para a construção de casas, igrejas, conventos.
Inclinadas para dentro, como bases de pirâmide que um arquitecto, num acesso de loucura, desistiu de terminar, para montar outra coisa qualquer em cima. Este era o centro do império que, do século XII ao XVI dominou uma vasta região, e daqui saíram os exércitos do Inca Pachacuti à conquista de novos territórios, que acabaram por chegar onde é hoje o Equador e a Colômbia, para Sul até ao Norte do Chile e da Argentina.
Mestres da arquitectura e da engenharia, resolveram os pendentes íngremes das montanhas com socalcos de dois ou três metros de largura, aos quais juntaram um sistema hidráulico elaborado, fazendo assentar o império na produção agrícola e pecuária. A língua imposta foi o quíchua e um sistema de vias de comunicação permitia o controlo do território e a distribuição de bens.
Por não terem desenvolvido um sistema de escrita, resta-nos hoje percorrer as magníficas obras de arquitectura e engenharia que sobreviveram à colonização espanhola. A mais conhecida é a cidade perdida de Machu Picchu, durante séculos escondida pela selva e descoberta apenas em 1911. Faz parte agora de um punhado de lugares no mundo que não vale a pena tentar descrever em poucas frases, ou visualizar noutras tantas fotos, pela sua tremenda força como entidade estética e histórica, pelo poder hipnótico que possui.
Apenas dois conselhos: apanhar o autocarro que sai de Aguas Calientes às sete da manhã, para ter uns momentos quase “a sós” com o lugar, e fazer a tremenda subida do Wayna Picchu, único sítio de onde se compreende todo o desenho da cidade, que só assim fica a nossos pés.
Entre Ollantaytambo e Písaq – o Vale Sagrado dos Incas
No caminho ferroviário para Machu Picchu fica a pequena aldeia de Ollantaytambo, cheia de personagens vestidos a rigor com os trajes típicos da região e muitas das casas ainda com fachadas e portas trapezoidais de construções incas mais antigas. É um verdadeiro museu vivo, já que a juntar a isso a aldeia é encimada por terraços e pelas ruínas de um grande templo construído no flanco de uma montanha.
Fica próxima da cidade de Urubamba, que também não está longe de outras duas maravilhas, essas menos conhecidas: as salinas de Maras, perto da aldeia com o mesmo nome. São milhares de pequenos tanques escavados e em uso desde há milhares de anos, que transformam o pequeno desfiladeiro onde se situam numa espécie de colmeia coberta de neve.
Uma dúzia de quilómetros mais adiante, em Moray, outra surpresa inca entalada nos montes: três anfiteatros feitos de círculos regulares que, diz-se ainda sem provas definitivas, que seriam viveiros de plantas onde se estudava o seu desenvolvimento e a influência das diferenças de altitude, humidade, temperatura, etc., resultantes da sua disposição diferenciada nos socalcos.
O grande império tinha também centros religiosos importantes, como o Templo de Viracocha em Raqshi, onde se situam uma série de construções enigmáticas e diferentes de outras da mesma época cultural, que incluem casas circulares com telhados de colmo e um enorme muro de quinze metros de altura rodeado por colunas redondas, que estaria coberto de pinturas. Para além disso um complexo de fontes, tanques e um lago onde vêm beber alpacas, lamas e ovelhas dão ao local o aspecto bucólico de aldeia perdida nos Andes – e é isso mesmo que é Raqshi, onde o turismo chegou recentemente.
Písaq é conhecida como “aldeia artesanal”, mas o seu grande mercado parece vender exactamente o mesmo dos outros. Muito mais interessantes são as ruínas da “velha Písaq”, que se estendem por quilómetros e abrangem a maior necrópole pré-hispânica do continente, uma fortaleza, templos, torres de vigia e uma gigantesca área de socalcos.
A capacidade de construir cidades autónomas em lugares tão inacessíveis fez-me lembrar, tal como fez em Machu Picchu, que há quem diga que os incas tinham poderes sobrenaturais, entre os quais a capacidade de voar; de facto, esta parece uma questão legítima sempre que enfrentamos as escadas a pique e de degraus desproporcionados que, por vezes, são o único acesso a estes lugares antes habitados. Do cimo, a vista sobre o Vale Sagrado e o “rio sagrado”, ou Wilcamayu, é absolutamente extraordinária, verde e fértil a perder de vista.
Para despedida, nada melhor que um passeio a pé, que o tempo premiou com sol até ao final – altura em que as nuvens desabaram sobre os espantosos muros de Sacsayhuaman, a dois passos de Cuzco. O autocarro que vai para Písaq deixa-nos em Tambo Machay, também conhecido por “banhos do Inca”, já que se tratava de um santuário dedicado à água, onde fontes imponentes ainda jorram com gosto; a cem metros fica Puca Pukará, antigo posto administrativo e defensivo do império.
E os sete quilómetros que nos separam de Cuzco permitem esticar as pernas ao longo da estrada, com vista sobre montes e manadas de lamas que pastam nos campos, até chegarmos a um pequeno bosque e, mais adiante, ao santuário de Qenqo, um lugar original: em vez das típicas construções de blocos encaixados como um puzzle, este lugar dedicado ao culto da Terra é um labirinto de canais e corredores escavados na rocha. Terminamos o percurso no ciclópico complexo de Sacsayhuaman, ao qual os Incas chamavam Casa do Sol, e onde ainda hoje celebram uma das suas mais importantes festas religiosas, o Inti Raymi.
E depois de quinze dias entre alguns dos vestígios históricos mais interessantes – e belos – do mundo, o risco no mapa indicava nova entrada na Bolívia, desta vez para um mergulho na natureza, atravessando os Andes entre dois salares (lagos salgados): o de Uyuni, na Bolívia, e o de Atacama, no Chile.
Guia prático
Este é um guia prático para viagens ao Vale Sagrado dos Incas – incluindo Cuzco e Machu Picchu -, Peru, com informações sobre a melhor época para visitar, como chegar, pontos turísticos, os melhores hotéis e sugestões de actividades na região.
Geografia
O Peru faz fronteira com o Chile, o Brasil, a Colômbia, o Equador e a Bolívia, dividindo o Titicaca com este último país. A nível mundial, é um dos territórios com maior diversidade étnica. O Titicaca tem uma área de 8.372 quilómetros quadrados, uma profundidade máxima de 285 metros e mais de 40 ilhas. A pesca, a criação de gado e a produção de cobre são os recursos económicos mais importantes; a industrialização é mais visível na costa.
O Vale Sagrado dos Incas situa-se entre Ollantaytambo e Písaq e não é apenas um vale, mas uma região; a sua altitude média varia entre os 2.800 e os 2.900 metros de altitude e é composta por vários vales, desfiladeiros e rios afluentes do Vilcanota ou Wilcamayu, o “rio sagrado”. Este sempre foi, para os incas, um dos principais pontos de produção de riqueza, e ainda hoje é aqui que se produz o melhor milho do país. Cuzco fica a 32 quilómetros.
Quando ir
A época de Dezembro a Março, embora seja a do Verão, é também a das chuvas.
Como chegar a Cuzco
Pode voar de de Lisboa para Lima, a capital do Peru, ou para São Paulo com a TAP, por cerca de 600 euros, e daí voar para Lima com a TAM, por cerca de 450 euros; não há ligações directas entre Portugal e o Peru. De Lima pode escolher entre avião, autocarro ou comboio para chegar a Cuzco, ponto de partida para visitar o Vale Sagrado. Até Puno são mais de 300 quilómetros e pode escolher entre autocarro e comboio.
Para visitar o Vale existem transportes públicos a partir de Cuzco, que permitem organizar viagens de meio ou de um dia, e até combinar com trajectos a pé. Também pode ir de comboio até Ollantaytambo (20 a 45 euros, ida) ou à estação de Aguas Calientes (40 a 60 euros, ida), de onde saem cada meia hora autocarros para Machu Picchu. Durante o Inverno (o nosso Verão), reservar os transportes “turísticos” com toda a antecedência que puder. No centro de Cuzco grande parte das agências de turismo oferece soluções de visita a todos estes locais – compare preços.
Onde ficar em Puno e Cuzco
Em Puno, podemos aconselhar às bolsas mais recheadas o Sonesta Posada del Inca, com preços para duplos a partir de 65 euros (dependendo da época). Fica nas margens do lago, a 5 quilómetros da praça central, e tem uma estação de comboios que lhe dá acesso, para além de embarcadouro privado. Para os mais modestos, o Hostal los Pinos, na Rua Tarapacá, 182 pode ser uma boa opção: um duplo fica por cerca de 15 euros com pequeno-almoço. Cuzco é o maior centro turístico do país, não faltando por isso os mais variados tipos de hotéis e pensões – os hotéis de Cuzco são, aliás, regra geral, de grande qualidade.
Para as bolsas mais recheadas podemos aconselhar, por exemplo, o Hotel Marqueses, na Rua Garcilaso 256, numa casa colonial do século XVI recuperada em 2004, e que também dirige um projecto para ajudar crianças da rua. Os preços para quartos duplos com pequeno-almoço rondam os 55 € e valem o dobro. Para os que se contentam com muito menos, há algumas pequenas pensões na zona de S. Blás, como a Hospedaje el Artesano de S. Blás ou a Inka, ambas a 10 minutos acima da Plaza de S. Blás, na Rua Suytucato, onde um duplo fica por cerca de 6 €.
Gastronomia
Em Puno há pizzarias, restaurantes chineses baratos, vegetarianos (por exemplo o Govinda, na Rua Deústua), e a maior parte concentram-se na Rua Lima. Aí mesmo encontramos a padaria Una, com excelentes pães e doces, e o restaurante IncAbar, cuja cozinha é bastante variada.
Em Cuzco existem todas as escolhas possíveis, das pizzarias ao japonês. Os meus favoritos são o restaurante mexicano da Cuesta de S. Blás, e o Ayllu, na Plaza de Armas, com uma magnífica vista sobre a praça e a catedral. Existe também um membro da cadeia Govinda (vegetariano e barato), que cobre todo o Peru, na Rua Garcilaso.
Prove a causa, um prato típico peruano à base de puré de batata, ovo e legumes, e abasteça-se de fruta e queijo para visitar as ruínas no Mercado Municipal, junto à estação de caminhos-de-ferro. E não esquecer os doces da Casa da Coca, junto à Plaza S. Blás, que já ganhou um prémio num concurso de slow food.
Informações úteis
Não é necessário visto para entrar no Peru; uma autorização de estadia é concedida à entrada. Há ATMs junto de quase todos os bancos, pelo que é desnecessário (e perigoso) andar com muito dinheiro. A moeda é o Nuevo Sole e 1 Euro vale cerca de 4 Soles. O nível de vida é muito mais baixo do que em Portugal, mas na área do turismo há muito quem tenha os olhos postos no mercado norte-americano, o que faz com que os preços estejam desfasados da realidade. Em Cuzco, a oferta de serviços como lavandarias, livrarias, supermercados, artesanato, massagens, etc. é muito abundante.
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