De repente, abriram-se as portas dos preparativos de uma noite de núpcias, surgiram convites para provar iguarias gastronómicas e até se abriram as portas do lar da jovem Bedriya, sozinha em casa. Não estivesse acompanhado por uma mulher, minha esposa aos olhos curdos, e nada disto teria acontecido.
Já por certo ouviram a ladainha do sexo fraco e vulnerável, do assédio masculino despudorado, dos perigos de uma mulher viajar sozinha e demais barbaridades. Caras viajantes: ignorem; finjam uma surdez momentânea, cantarolem para não ouvir, façam qualquer coisa mas não prestem atenção. Ao invés, preparem a mochila para o Médio Oriente, com túnicas e roupas frescas, e desfrutem da hospitalidade local como nenhum homem sozinho poderá fazer. Especialmente nos meios mais tradicionais, onde a um viajante masculino está vedada boa parte do contacto com o sexo oposto, ser mulher praticamente só traz vantagens. Acreditem ou não. Foi o que senti enquanto estive acompanhado por Gulè Celik.
Encontrava-me em Diyarbakir, o coração da “nação” curda que oficialmente não existe, o local onde o orgulho curdo mais se nota, o berço de protestos contra o domínio turco, foco recorrente de tensões políticas e militares. Para o viajante, no entanto, é um destino tão simpático, descontraído e agradável, e com gente tão amável, como em todo o sul da Anatólia. Chamem-lhe Turquia ou Curdistão, o povo lá está, curdo de identidade, hospitaleiro de coração. Haverá, talvez, mais pobreza, a avaliar pelo número de crianças que mendigam na velha cidade amuralhada. Mas Diyarbakir é tranquila, são raros os sinais evidentes de violência e, por enquanto, mantém-se à margem do turismo de massas – coisa sempre apreciada.
Gulè é uma mulher de origem curda, nascida há 29 anos, actualmente a trabalhar em Istambul. Estava de visita a Diyarbakir por causa da Feira do Livro. Conversámos em torno de um prato de pulmões de carneiro e outras iguarias teoricamente pouco apelativas mas saborosas, degustadas num restaurante de bairro no centro da velha Diyarbakir. Foi quando soube que Gulè era, de facto, natural de Mardin, onde não ia há mais de quinze anos. Mardin era o meu próximo destino, antes de penetrar no Iraque. Desafiei-a a acompanhar-me, ela aceitou. E isso mudou radicalmente a minha experiência de viagem nos últimos dias no Curdistão turco. Num ápice, aos olhos locais, passei de ameaça para a honra das famílias a marido inofensivo. De repente, estando acompanhado por uma mulher, a minha presença deixou de constituir problema. E assim fiz coisas que, sozinho e homem, teriam sido simplesmente impossíveis.
Manhã cedo, rumámos a Mardin. Um autocarro deixou-nos na parte alta da cidade, que, entre fiapos de nuvens brancas, olhava sobranceira para os desinteressantes prédios da nova Mardin que aos poucos vão tomando conta do vale desértico que circunda a colina. Mardin – a velha Mardin – é uma pequena cidade verdadeiramente encantadora. No topo, um castelo. Colina acima, casas ocre e ruas estreitas com vida, gente e burros como meio de transporte. E um bazar simples mas interessante, onde ainda se fazem selas para os burros como antigamente. Fomos caminhando.
Percorríamos as ruas labirínticas de Mardin quando ouvimos música e mulheres a cantar, naquilo que parecia ser uma festa de casamento. Os sons vinham do segundo ou terceiro piso de um pequeno prédio, a escadaria estava aberta, Gulè subiu para averiguar e pedir permissão para entrar. As mulheres aceitaram a nossa presença, deixaram-me participar na festa. Lá dentro, numa pequena sala de estar com uma televisão e um sofá com velhotas sentadas lado a lado, estava um colchão no chão com um lençol imaculadamente branco que uma mulher de meia idade ia cozendo ao colchão. Uma dezena de jovens mulheres cantava e dançava em círculos na sala, num ritual estranho mas festivo. Em menos de nada, estava no circulo. Eram os preparativos para a noite de núpcias de um futuro casal. Despedimo-nos, seguimos viagem.
Estávamos sentados num muro de pedra observando a paisagem para lá da cidade quando alguém nos chamou. Ao ver-nos a descansar, uma mulher de avental, dona de casa como quase todas, convidava-nos do alto do seu terraço para provarmos uma das especialidades da região que havia preparado – o dolma, folhas de videira, couves ou outros vegetais recheadas com arroz. Naturalmente, aceitámos. E por ali ficámos, na companhia da mulher, a sua filha adolescente e um outro petiz irrequieto, elas falando com Gulè, o miúdo brincando comigo.
Logo a seguir, caminhávamos por uma ruela quando vimos uma porta entreaberta. Gulè bateu à porta e, de dentro, surgiu uma belíssima mulher que estava, também ela, sozinha em casa. Chamava-se Bedriya, tinha 28 anos e era casada há quase dez. Convidou-nos a entrar, mostrou-me toda a casa. Era uma habitação simples, com o chão coberto por tapetes, quase sem móveis e sem camas como nas casas tradicionais do povo curdo. Ofereceu-nos chá. Foi buscar quatro álbuns de fotos de toda a família: os pais, o marido, os sogros, a irmã, o cunhado, os dois sobrinhos, nenhum filho. Bedriya confessou a Gulè que a sua maior alegria seria conseguir oferecer um descendente ao seu marido, caso contrário ele acabará por arranjar uma segunda esposa. Não ter filhos não é admissível.
Entre sorrisos e confissões, não sei quanto tempo ficámos com Bedriya – muito, seguramente – mas quando saímos o marido não tinha ainda regressado da sua labuta diária. Para Bedriya, eu não constituía perigo algum à sua honra – estava acompanhado por Gulè e isso era suficiente para não haver boatos maledicentes. Estivesse eu sem uma companhia feminina e nada disto teria acontecido. Não teria participado em danças de casamento, comido dolma e privado com Bedriya. Com assuntos de honra não se brinca.
O projecto Cairo - Teerão foi uma viagem terrestre pelo Médio Oriente, com a duração de três meses. Teve início no Cairo, capital do Egito, e término em Teerão, capital da República Islâmica do Irão. As crónicas foram originalmente publicadas no suplemento Fugas do jornal Público.
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Caríssimo Filipe,
Tenho a sorte de ter morado durante uns meses no sudeste da Turquia e de ter visitado (e regressado, posteriormente) a cidades como Diyarbakır e Mardin. Apreciei muito este seu texto, principalmente pois é-me sempre muito complicado tentar convencer turistas ocidentais de que, muito provavelmente, esta é uma das (senão “a”) parte(a) mais interessante(s) para visitar na Turquia – e tem a vantagem de não sofrer de hordas de turistas, como Istambul ou a Capadócia.
Devo confessar que, já tendo tido a sorte de viajar muito pela Turquia, a cidade antiga de Mardin é o meu local favorito para visitar no país, é pura e simplesmente magnífico e de cortar a respiração.
É um país incrível e que aconselho vivamente a visitar.
Um abraço!