Anos de guerra e violência sem fim à vista fazem com que a palavra “Iraque” acarrete uma certa dose de loucura e perigo que afasta do país a maioria dos potenciais viajantes. No Curdistão iraquiano, no entanto, a realidade cedo se encarrega de desmentir os preconceitos: é um lugar seguro e tranquilo, situação assim resumida por um habitante curdo de Dohuk: “Nos últimos dez anos, houve mais atentados em Londres que no Curdistão”.
Sentia um friozinho na barriga quando o autocarro em que seguia parou na pequena estação de camionagem às portas de Silopi, no sul da Anatólia. Um grupo de taxistas rapidamente nos rodeou, a mim e demais passageiros, oferecendo o transbordo até ao lado iraquiano da fronteira. Só nessa altura avistei T. J., nome de guerra de um turco musculado a trabalhar na base norte-americana de Kirkuk, território proibido mesmo para os viajantes mais destemidos. T. J. trabalha numa loja que confecciona fatos à medida dos soldados e regressava de férias com matéria-prima para o negócio, principalmente pesados rolos de tecido preto de boa qualidade que se haverão de transformar em ternos para os endinheirados militares. Falava bem inglês. Segui num táxi com ele e com um seu parceiro de negócios a caminho da fronteira com o Iraque.
A passagem na fronteira dificilmente poderia ter sido mais expedita. Do lado turco, revistaram cuidadosamente a mercadoria dos meus parceiros de viagem, mas não a minha bagagem; do lado iraquiano, dois oficiais bem-humorados chamaram-me para perguntas de circunstância – porquê o Curdistão?, quanto tempo vai ficar? – mas três minutos depois já se falava de futebol e não dos motivos da minha viagem. Na verdade, o passaporte estava já carimbado quando entrei no escritório envidraçado. Ofereceram-me chá e uma confortável cadeira. Um preferia o Brasil. Eu ia para Dohuk. O outro a Argentina. Eu viajava sozinho. O Messi parecia-lhes melhor que o Cristiano Ronaldo. Eu pus açúcar no chá. Em menos de nada, devolveram-me o passaporte com um aperto de mão. Bye. Estava oficialmente no Iraque.
Dohuk é uma cidade perfeitamente tranquila. Até porque a esmagadora maioria das pessoas no Curdistão iraquiano afirma gostar dos “americanos” e isso significa que somos todos – estrangeiros em geral – muito bem-vindos. Turisticamente, no entanto, Dohuk não é o mais impressionante dos destinos, mas tem um bazar coberto agradável, uma barragem com belas vistas sobre a cidade e gente incrivelmente amigável e com vestes atraentes. Por uma vez, o olhar reteve-se no trajar masculino. É composto por umas calças muito largas entre as pernas, um casaco aberto em V até meio do peito com uma camisa geralmente branca por baixo, e um fantástico lenço várias vezes enrolado na cintura fazendo de cinto. Os tons dominantes são pastéis, mormente castanhos, verdes-azeitona e cinzas. Para complementar, um tradicional shemagh enrolado na cabeça. Que coisa mais deliciosa!
Quando regressei ao hotel após uma primeira exploração de Dohuk, perguntei se havia qualquer outro viajante ali hospedado. Havia apenas um, Greg, um inglês de apenas 19 anos estagiário no The Independent e muito interessado em política internacional. Quando nos cruzámos no hall de entrada, Greg estava de saída para conhecer a “Cidade dos Sonhos”, um parque de diversões onde, nas noites de quinta e sexta-feira, batalhões de iraquianos se passeiam, namoriscam e divertem. É o local ideal para ver e ser visto em Dohuk. E era precisamente quinta-feira. Fomos juntos. No caminho, metemos conversa com dois adolescentes que afirmavam ir para uma “Disco”. Tentei perceber a que se referiam, mas limitavam-se a apontar para a frente com o braço em riste, dizendo que não era longe. Intrigados, acompanhámo-los.
A tal “Disco” ficava no complexo “Cidade dos Sonhos”. Entrámos. Era um vasto parque com áreas relvadas e algumas árvores, e atracções como uma montanha-russa, rodas gigantes, carrinhos de choque e espaço para crianças, para além de um edifício coberto com mesas de ténis de mesa, bilhar e jogos electrónicos. Prosseguimos pelo relvado na direcção da música que se escutava ao longe e só parámos em frente a uma grande roda horizontal, com bancos a toda a volta e espaço livre no centro.
Assim que começou a rodar, movendo-se de forma incerta como um touro mecânico, os homens mais afoitos foram para o meio do circulo, tentando a todo o custo equilibrar-se de pé perante os safanões da máquina endiabrada. A multidão delirava, os homens e mulheres nos bancos em volta lutavam para não se desequilibrarem, os jovens pareciam surfar no centro do círculo. Não houve acidentes. A música estava alta e ritmada. Havia muitas luzes a piscar em torno da roda. Ao fundo, por detrás da roda, havia um placard luminoso com uma imagem de Michael Jackson de sorriso plástico. À sua direita, um letreiro luminoso com letras coloridas anunciava: “Disco”.
Na manhã seguinte, outra agradável surpresa: montanhas com encostas verdejantes, turistas domésticos impecavelmente vestidos em peregrinação de fim-de-semana às “piscinas” de Sulav, e uma aldeia deliciosamente encavalitada no cimo de um monte achatado. Amadiyah – assim se chama o vilarejo para onde me dirigi – fica sensivelmente a 70 quilómetros de Dohuk. Visitei-a na companhia de um filho da terra, motorista de profissão. Conheci a sua casa e a maior parte dos familiares, tomámos vários copos do inevitável chá, mostrou-me Amadiyah e os arredores, passámos pela vizinha Kanya Mala, até terminarmos o dia num pequeno café de Sulav não fazendo outra coisa que observar famílias curdas em dia de descanso. Não, o Iraque não é apenas deserto, militares fardados e atentados terroristas. “Nos últimos dez anos, houve mais atentados em Londres que no Curdistão”, concluiu.
De regresso a Dohuk, arrumei a mochila e fui procurar transporte para Erbil, capital do Curdistão iraquiano, sabendo de antemão que o caminho mais perto e rápido entre Dohuk e Erbil passa nos arrabaldes de Mosul. Acontece que Mosul está fora do domínio curdo, pelo que é um local a evitar a todo o custo. Demasiado perigoso. Tinha que ter a certeza que o táxi partilhado não seguia por essa rota. Fui indagar. Perguntei e perguntei e perguntei. Sempre que pronunciava a palavra Mosul, os meus interlocutores levavam a mão à garganta, decapitando-se teatralmente. “Sei que não vou por aí”.
O projecto Cairo - Teerão foi uma viagem terrestre pelo Médio Oriente, com a duração de três meses. Teve início no Cairo, capital do Egito, e término em Teerão, capital da República Islâmica do Irão. As crónicas foram originalmente publicadas no suplemento Fugas do jornal Público.
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