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As noras de Hama (Do Cairo a Teerão #7)

Por Filipe Morato Gomes
Noras de madeira de Hama, Síria
Noras de madeira de Hama, Síria

De regresso à Síria depois de uma incursão no Líbano, assentei arraiais em Hama, hipnotizado pelo ronronar das gigantes noras de madeira que trazem fama à cidade. Visitei as ruínas de Apamea, a fortaleza de Qala’at ash-Shmenis e o afamado Crac des Chevaliers. E ainda conheci Maria e sua família na aldeia de Sarouj, onde antigas casas-colmeia resistem ao passar dos tempos.

Já muitos escreveram sobre o Qala’at al-Hosn, internacionalmente conhecido por Crac des Chevaliers. Para Paul Theroux, é o epítome do castelo de sonho das fantasias de infância. Para T.E. Laurence, é simplesmente o melhor castelo do mundo. A UNESCO diz que é o mais significativo exemplo da alteração de influências na arquitectura das fortificações no Próximo Oriente durante a época das Cruzadas, e um dos mais bem preservados castelos da altura. E, para todos os viajantes com quem me cruzei, é algo absolutamente imperdível numa viagem à Síria.

Para mim, não há dúvida que é uma estrutura magnífica merecedora até do desagradável encontro com os autocarros de turismo que diariamente lá afluem. Mas, talvez por ser oriundo de Portugal – onde não faltam prodigiosos castelos e fortalezas -, o Crac des Chevaliers pareceu-me “apenas” um castelo consideravelmente bem preservado, de muralhas imponentes, erigido com propósitos defensivos no topo de uma colina com amplas vistas em seu redor. Em suma, um bom castelo. Julgo precisar de mais para me impressionar. Ou talvez careça dos superlativos dotes literários de Theroux.

Crac des Chevaliers, Síria
Crac des Chevaliers, o mais famoso castelo da Síria

Beneficiando de uma estratégica localização geográfica, Hama constitui a base ideal para visitar o Crac des Chevaliers. E ainda as ruínas de Apamea, mais um ou outro edifício histórico como a pequena fortaleza de Qala’at ash-Shmenis ou o curioso Qars Ibn Wardin, e as velhas casas-colmeia da região. Segui para as ruínas de Apamea. Não têm seguramente o encanto do ilustre sítio arqueológico de Palmyra, mas são ainda assim impressionantes. Ao invés dos tons rosados de Palmyra, em Apamea sobressai o granito cinzento da interminável série de colunas decoradas com magníficos altos-relevos, parcialmente reconstruída por uma equipa de arqueólogos belga e que, à época, teria a impressionante extensão de dois quilómetros.

De regresso a Hama, era tempo de me deliciar com uma peculiaridade da urbe: as noras de Hama. São enormes e fazem um ronronar permanente, madeira com madeira, um barulho que é pouco menos que hipnotizante. Famílias inteiras ficam pasmadas a contemplar o movimento circular infinito – assim haja água no rio -, deleitadas com o som contínuo e incrivelmente viciante das noras. Certo dia, caminhando por uma estreitíssima viela da cidade velha que fica junto ao rio, comecei a ouvir um barulho e, acto instintivo, encostei-me à parede para deixar passar a motocicleta que deveria estar prestes a dobrar a esquina à minha frente. Naturalmente, não apareceu moto alguma. Assim que o cérebro se apercebeu da partida pregada pelas rodas gigantes, desatei à gargalhada. Era, simplesmente, o som de uma das noras de Hama, localizada bem perto do local onde conheci Maher Al-Madani.

Apamea, Síria
Ruínas de Apamea

Maher tem uma loja na parte velha da cidade. Vende lenços, atoalhados, roupa tradicional e algum artesanato decorativo. Há várias décadas que a sua família produz de forma artesanal a maioria dos produtos que expõe na calçada em frente à minúscula loja. Uma fotografia emoldurada na fachada com um seu ancestral trabalhando num tear ilustra o processo. Fui conhecer o atelier. O irmão de Maher estava no tear quando entrei no espaço escuro e atafulhado de rolos de fio e partes de teares velhos. Demonstrou-me a sua arte sem pressas (estava a fazer uma toalha de mesa), conversámos, acabámos por combinar sair à noite com alguns dos seus amigos, com destino a um complexo desportivo onde suámos atrás de uma bola de ténis de mesa. “Sair à noite” não pode ser muito mais do que isto.

No dia seguinte, após sentar-me uma vez mais nos toscos bancos de madeira do tasco Ali Baba e comer o melhor falafel de que tenho memória, rumei à aldeia de Sarouj. Perto de Hama, há várias aldeias onde ainda existem algumas estruturas rudimentares de forma circular, feitas de lama. Pelo seu aspecto, chamam-lhes casas-colmeia. A maior parte, no entanto, já não serve de habitação, antes como arrumos, guardando coisas como madeira para o Inverno ou artefactos agrícolas.

Sarouj, Síria
Casas-colmeia na aldeia de Sarouj, Síria

Um dos mais cénicos vilarejos é o de Sarouj. Cirandava pela terra batida da aldeia quando um miúdo acenou. Teria quatro ou cinco anos, a roupa suja de terra e estava acompanhado por uma tímida mulher adolescente que esboçou um sorriso ao ver-me, antes de desviar o olhar para a vassoura que trazia nas mãos. Retribuí o gesto e aproximei-me. Num ápice, apareceu outra miúda. Chamava-se Maria, tinha 12 anos de idade, era astuta, irrequieta, curiosa e divertida. Arriscou um hello, sorrimos, e começámos a pintar nuns cadernos com desenhos para colorir que trazia comigo. À minha esquerda ficava uma modesta casa de cimento onde a família morava; à direita, três casas-colmeia serviam de arrecadação; entre elas, tabuleiros de queijo a secar e um arame com um pano rosa-choque estendido.

Fui convidado a tomar chá num pequeno pátio em frente à casa e logo apareceu o patriarca da família, mais a mãe de Maria e três outras mulheres, e ainda um bebé de colo com o ranho a escorrer das narinas. De tudo o que o velho disse, percebi apenas que tinha trabalhado na Mongólia, algures a sul de Ulan Bator, há muitos anos. Não obstante, ali ficámos numa conversa estéril, falando sem que o outro percebesse patavina, entre múltiplos copos de chá e a admiração contida das mulheres. A família de Maria é gente humilde e notoriamente carenciada. Apesar disso, nunca pediram dinheiro. Estavam apenas felizes por ter consigo um convidado especial numa tarde que teria sido como tantas outras na aldeia de Sarouj. São momentos destes que fazem a vida de um viajante. Não trocaria uma tarde com Maria por um dia no Crac des Chevaliers.

O projecto Cairo - Teerão foi uma viagem terrestre pelo Médio Oriente, com a duração de três meses. Teve início no Cairo, capital do Egito, e término em Teerão, capital da República Islâmica do Irão. As crónicas foram originalmente publicadas no suplemento Fugas do jornal Público.

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Filipe Morato Gomes

Autor do blog de viagens Alma de Viajante e fundador da ABVP - Associação de Bloggers de Viagem Portugueses, já deu duas voltas ao mundo - uma das quais em família -, fez centenas de viagens independentes e tem, por tudo isso, muita experiência de viagem acumulada. Gosta de pessoas, vinho tinto e açaí.

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