Caso esteja a planear uma visita à região da Guarda, atente numa experiência de turismo inclusivo e social em que os guias turísticos dos passeios são pessoas com deficiência mental. Acontece na aldeia da Cabreira, concelho de Almeida, Guarda, pela mão da ASTA – a Associação Socio Terapêutica de Almeida.
O projeto chama-se Contigo, Há Descoberta e pretende “transformar deficiências em eficiências”, proporcionando trabalho remunerado aos “companheiros” – nome carinhoso dado às pessoas com deficiência que a ASTA acolhe na sua família. Ao abrigo desta e de outras iniciativas, os companheiros aprendem competências e tornam-se úteis, porque a ASTA “não é uma redoma” e “toda a gente tem capacidade de fazer coisas”. É maravilhoso!
E o melhor é que as atividades de turismo inclusivo estão integradas nas respostas sociais dadas pela associação, refletidas num conceito a que denominam de “cinco S”: Silêncio, Saberes, Sabores, Simplicidade e Sustentabilidade.
Curioso? É sobre esse projeto de turismo social e inclusivo que hoje escrevo. Vamos a isso.
Estava eu em reportagem para o projeto Rostos da Aldeia quando tive oportunidade de fazer um dos passeios pelos chamados “Trilhos da Pastora”. São, nas palavras da ASTA, “caminhadas na aldeia da Cabreira do Côa, acompanhada da lenda que deu nome à nossa aldeia, e noções de foraging (recoleção de plantas silvestres comestíveis, no conceito ‘Da natureza à mesa’)”.
Há, no total, quatro opções distintas de caminhadas em redor da aldeia da Cabreira, em plena área protegida da Serra da Malcata. A saber:
- Um percurso chamado “Ao longo da Ribeira das Cabras”, circular e com 3 km de extensão grau de dificuldade baixo.
- O trilho “Descoberta dos moinhos antigos”, percurso linear de 1,5 km igualmente bastante fácil.
- A “Descoberta da cabana da Pastora”, um passeio circular de 2,5 km de extensão mais difícil por conta dos desníveis.
- E, por último, a chamada “Exploração até a Ponte Romana”, um trilho circular de 4 km e dificuldade média.
Eu fiz uma mistura de várias partes, para conhecer os pontos mais emblemáticos, incluindo a incontornável Ribeira das Cabras e seus moinhos em ruína (quem sabe se um dia não serão recuperados pela própria ASTA!).
“Conta-se que, há muito tempo, num pequeno vale abrigado por grandes pedras arredondadas, a que chamamos barrocos, vivia uma pequena comunidade de gente simples, afável e corajosa. Eram agricultoras que cultivavam tudo o que era preciso para sustentar. Cereais, legumes também tinham animais que davam leite carne pelas e lã. E também tinham o estrume para fertilizar as terras”.
As palavras são do recatado companheiro António Bordalo que, incentivado por Anémone Leton, a coordenadora do projeto de turismo inclusivo Contigo, Há Descoberta, começa a partilhar a lenda da menina pastora a quem chamavam Cabreira.
A certa altura, a simpática e enérgica Milene, na pele de guia turística, continua. “Havia uma menina que era adorada por todos: a pastora Cabreira. Todos os dias de manhã, a pastora Cabreira subia ao barroco mais alto para saudar o novo dia. Era acompanhada dos balidos e chocalhos das suas cabras”.
A história vai avançando ao longo do percurso, que deixa a aldeia e segue em direção à Ribeira das Cabras. Quando chegámos a um cruzamento, Milene coloca-se junto a umas alminhas e explica: “Aqui há as alminhas. E as noras foram postas nos cruzamentos por agricultores para terem melhor produção e abençoarem as terras. É um património português muito comum na região da Serra da Estrela. Temos várias espalhadas nos cruzamentos”.
António toma a palavra para falar das noras da Ribeira das Cabras. “As noras são o antigo sistema da rega das hortas. Quem acionava a roda da nora era o boi ou o burro. E ela fazia com que os copos de ferro descessem, enchiam-se de água e depois eram despejados no regadio”.
Com a Ribeira das Cabras a embelezar a paisagem, Milene retoma a lenda da pastora Cabreira. “Ao fim do dia, a pastora Cabreira vinha banhar-se na ribeira e dar de beber às suas cabras. Porque tinha uma choupana perto da ribeira e uma relação especial com a natureza. E, ao fim do dia, o sol escondia-se atrás da ladeira e deixava alguns raios de brilhos dourados no cabelo da menina pastora. E à noite brilhava com a luz da amiga lua”.
A excitação vai tomando conta da irrequieta Milene, que se vira para o companheiro António e desafia: “preparado para a parte mais importante da história? Vamos lá! Vamos lá, António!”
António não se faz rogado: “Um dia o sol nasceu e só lá estavam as cabras em cima do barroco. As pessoas subiram ao barroco mais alto e chamaram: Cabreira, cabreirinha, onde estás tu agora? E aí não ouviram nada. Só ouviram os ecos do vento. E ficaram muito tristes. Por muito, muito tempo andaram à procura, mas não a encontraram. Até que um dia decidiram voltar ao barroco mais alto e voltaram a chamar: Cabreira, Cabreirinha, onde estás tu agora? E aí, ouviram algo de novo”.
Aproxima-se o climax da história, e os guias fazem o seu papel na perfeição. E, quando alguma memória teima em não aparecer, basta Anémone fazer um gesto ou relembrar uma palavra que tudo volta aos seus eixos. Milene não se contém: “E o que é que ela respondeu? Diz lá, Tó!”.
“Eu estou aqui e sempre estarei. Enquanto os pássaros chilrearem, as abelhas zumbirem, as crianças brincarem e toda a gente chamar por mim, eu estarei aqui”, partilha António. Ou seja, conclui Anémone, “ela está em toda a Natureza. E nós temos para a chamar uma canção”.
Embalado pela canção que os companheiros cantaram ali mesmo, junto à Ribeira das Cabras, num dia com um sol de inverno maravilhoso, estava praticamente terminado o passeio. Foi uma experiência de turismo inclusivo e social maravilhosa, cujo impacto Anémone sumariza: “Além da autoestima, o que Contigo, Há Descoberta também aporta aos companheiros é o sentido de responsabilidade. Ou seja, ter noção que isto é uma profissão, um trabalho a sério, com horários a cumprir. E essa noção de profissionalização e sentido de responsabilidade é muito importante. Mais do que tudo, dá-lhes autoconfiança”.
Terminado o passeio, tenho por certo terem sido dois dos guias mais empenhados que já conheci por esse mundo fora. Com a sua simplicidade desarmante, deram tudo para que a visita fosse positiva. É claro que têm dificuldades, mas a forma como tudo fazem para as superar é extraordinária. Palmas para a ASTA!
Era então tempo de regressar à aldeia da Cabreira.
Turismo inclusivo: os pacotes turísticos da ASTA
Atualmente, a oferta turística do projeto Contigo, Há Descoberta abarca já diversas atividades, incluindo visitas guiadas nas aldeias históricas de Almeida e Castelo Mendo; a descoberta da quinta pedagógica dos Três Sois, com workshops de padaria e confeção de queijo fresco com o leite das cabras da associação; e, por fim, os referidos percursos pedestres pelos Trilhos da Pastora.
Em concreto, as atividades são agrupadas em experiências de um, dois ou cinco dias. A saber:
- Um dia Contigo. Programa de turismo inclusivo que inclui um dia de atividades (dois workshops nas oficinas de artesanato ou um workshop e um percurso pedestre ou visita guiada numa aldeia histórica, e dinâmicas sócio-terapêuticas) e o almoço na Cozinha São Francisco. Custa 55€ por pessoa, sendo que as crianças entre cinco e 11 anos pagam metade.
- Programa Um fim-de-semana Contigo. Proposta de turismo inclusivo que inclui dois dias de atividades, os almoços na Cozinha São Francisco e uma noite em alojamento local com pequeno-almoço. Custa 145€, sendo que as crianças entre cinco e 11 anos pagam metade.
- Uma semana sazonal do Contigo, Há Descoberta. Proposta semelhante mas prolongada no tempo e “inserida nos ritmos diários da ASTA”. São cinco dias de atividades, com todos os almoços na Cozinha São Francisco e quatro noites em alojamento local com pequeno-almoço. Custa 400€ por pessoa.
Note que não é possível reservar apenas o passeio, como atividade isolada.
Workshops da ASTA
Caso opte pelos programas acima referidos, saiba que os workshops disponíveis são os seguintes:
- Workshop “Com as mãos criamos” (trabalho do barro), na oficina de olaria.
- Workshop de transformação da lã das ovelhas locais, no espaço Três Ofícios e na oficina da lã.
- Workshop de criação de velas com a cera das abelhas (no espaço Três Ofícios, mas apenas no inverno).
- Iniciação às práticas tradicionais de tecelagem.
- Fazer queijo fresco e cozer pão no forno da aldeia.
- Banho de Floresta: atividade de relaxamento para despertar os sentidos, com objetivo de conexão com a natureza.
- Batismo de Stand Up Paddle (SUP), entre os meses de abril e setembro, em parceria com um monitor da Malcata Eco Experience.
Vídeo sobre a aldeia da Cabreira
Para conhecer um pouco melhor o trabalho da ASTA , veja também o vídeo documental do Rostos da Aldeia sobre a aldeia de Cabreira.
Guia prático
Como organizar os passeios do “Contigo, há Descoberta”
Para saber mais informações, pode naturalmente visitar o site da ASTA. Para reservar os pacotes de turismo inclusivo do programa Contigo, Há Descoberta, recomendo que use o telefone (271 581 562) ou e-mail (info@assterapeutica.com). A associação tem sede no Alto da Fonte Salgueira, a poucos quilómetros da aldeia de Cabreira do Côa.
Convém saber que nos dias úteis não existe número mínimo de participantes, mas durante os fins-de-semana, “por razões de logística interna”, a ASTA recebe apenas grupos (10-15 pessoas).
Como chegar a Cabreira
Apesra dos acessos serem bastante bons (a aldeia fica muito perto da saída da autoestrada), a única forma de chegar à aldeia da Cabreira é em viatura particular. De Lisboa são sensivelmente 370km, sendo o melhor trajeto pela A1 e A23. Conte com quase 4 horas de viagem. Já do Porto, são quase 230km até Cabreira, sendo que o melhor trajeto é pela A1 e A25. Conte com 2h45 de viagem.
Se precisar de alugar um carro, veja as opções disponíveis na Discovercars.
Onde ficar em Almeida
Caso queira visitar a aldeia da Cabreira, o mais provável é não encontrar alojamento disponível. A não ser, claro, que marque um dos pacotes turísticos acima referidos que contemplam alojamento.
Assim, considere dormir na aldeias histórica de Castelo Mendo ou na vila de Almeida, a sede de concelho. Optando por Almeida, deixo aqui duas sugestões muito distintas: a guesthouse Solar de São João e o Alojamento Local Casa do Ti Messias. Ficam ambas no centro de Almeida. Mais perto de Cabreira fica Castelo Mendo, sendo a Casa de Sampaio é uma boa opção de hospedagem no coração da aldeia.
Para outras opções de hospedagem no concelho de Almeida, pesquise no link abaixo.
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