O melhor de qualquer viagem, são as pessoas. Para lá da vastidão dos desertos, do colorido dos mercados ou da quietude do oásis que se estende ao longo do Nilo, o Sudão vale essencialmente pela sua gente e pela forma como nos recebe. Paisagens e pessoas fantásticas, num país que é tudo o que as noticias não contam.
O ferry para o Sudão tem hora de partida marcada para o meio-dia, mas isso não passa de um pró-forma que todos sabem ser impossível cumprir. Na verdade, a travessia da única fronteira possível entre os dois países – a única fronteira terrestre está reservada a veículos de mercadorias, uma vez que os dois países continuam a esgrimir argumentos por causa dos direitos relacionados com o Nilo – é uma empreitada de um dia inteiro.
Quando no dia anterior compro o bilhete, fazem-me saber que pelas oito da manhã haverá um comboio que parte da estação de Assuão em direção ao porto e que, por mais cedo que possa parecer – tendo em vista que o ferry não deve partir antes das cinco da tarde -, é conveniente chegar cedo para encontrar um bom lugar. Seja como for, o preço de um táxi e a inexistência de autocarros não deixam grande alternativa a esta hipótese madrugadora.
Entro no comboio muito próximo da hora de partida e encontro Franz, um miúdo austríaco em viagem há mais de um ano, que segue o mesmo caminho e que mais tarde me confirma ser possível adquirir o visto para o Sudão no consulado de Assuão, por metade do preço, no mesmo dia e sem qualquer carta de recomendação da embaixada do requerente.
No porto, a agitação já é bastante. “Banqueiros de rua”, que oferecem um câmbio melhor que qualquer banco, confundem-se por entre a multidão de passageiros, bagagem e comerciantes grossistas. Uma massa de gente que aguarda autorização para entrar, carregando enormes quantidades de bagagem – como acontece com todos os barcos por estes lados -, como se levassem o mundo consigo, o que neste caso até se compreende tendo em conta o embargo americano ao país.
No ferry, para além dos compartimentos com cama de primeira classe, é possível viajar na agitada, suja e amontoada área interior, ou simplesmente procurar o melhor lugar no deck exterior, com vista para as estrelas e para o templo de Abu Simbel, por onde deveremos passar às primeiras horas da manhã.
Optamos pelo deck exterior. Alguns dos passageiros aproveitam as inúmeras caixas de fornos elétricos, trituradoras e televisões que levam consigo para demarcar uma área, como que uma muralha suficientemente espaçosa para se estenderem durante a noite.
Pouco passa do meio-dia. Pela quantidade de mercadoria ainda por carregar, a espera promete ser longa. Ao cabo de quatro horas deixo de perceber como é ainda possível caber mais alguma coisa neste barco que nem é muito grande, e o amontoado de sacos e caixas do lado de fora não parece ter fim.
O deck do ferry já se encontra repleto de gente e bagagem enquanto camiões de laranjas, eletrodomésticos, equipamento informático e todo o tipo de quinquilharia, em quantidades infindáveis, continuam a dar entrada no cais.
Como previsto, partimos rio acima por volta das cinco da tarde, já com o sol em aceno de despedida. Estranhamente, navegar em sentido contrário à corrente é aqui mais rápido do que a favor – fruto do vento -, e apesar de o avanço não ser notório, estar em movimento é a melhor das sensações.
Aparentemente, os muçulmanos não gostam de rezar sozinhos e, com o barco em marcha, filas de passageiros vão-se formando para a oração em conjunto, voltados a Meca, num sentido de comunidade notável. Minutos mais tarde, um dos passageiros que terá perdido a oração em conjunto – sem grande sentido de orientação – reza sozinho na direção errada e todos o alertam, indo ao seu encontro, para o virar no sentido correto.
A noite cai sobre o deck e as montanhas de areia a oriente parecem transformar-se em ondas gigantes e um manto de estrelas parece vir aconchegar este amontoado de gente que se vai ajeitando para passar a noite e me dá as boas-vindas ao Sudão com um sorriso no rosto.
Wadi Halfa, Sudão
A meio da manhã o barco aporta finalmente em Wadi Halfa. Ainda no interior do barco há procedimentos a realizar; o preenchimento de uma “permissão de viagem” para podermos transitar pelo país e um carimbo no passaporte que alerta para a necessidade de um registo junto das autoridades responsáveis, no prazo de 3 dias – algo que fazemos junto da polícia, assim que chegamos a Wadi Halfa.
Papelada resolvida e apesar de Franz querer tentar seguir à boleia, o adiantado da hora e a distância a percorrer levam-nos a optar por apanhar um táxi partilhado, até à povoação de Wawa, seguindo ao longo do Nilo, com o deserto à nossa esquerda e um oásis contínuo sobre o qual o sol se vai deitando, à direita.
Seguimos em direção a sul. Franz acha que será fácil conseguir andar à boleia por aqui, uma vez que as alternativas não são muitas e o número de pick-ups é suficientemente abundante, tornando-se a mais fácil e rápida forma de viajar pelo país. De qualquer das formas não há alternativa. Wawa é apenas uma minúscula povoação na estrada para Dongola, sem autocarros ou certezas de que algum aqui possa parar. Fazemo-nos à estrada e não tarda muito até conseguirmos a primeira boleia – mas até Karima serão precisas mais umas quantas. Para lá da facilidade com que o conseguimos uma boleia atrás da outra, o encontro com estas pessoas que nos pegam na estrada ou simplesmente partilham connosco a parte de trás destas carrinhas fazem de cada viagem uma recompensa. Numa dessas vezes, um grupo de raparigas sobe para a traseira da carrinha, sorrindo e conversando abertamente connosco, desmistificando a ideia de que a lei islâmica, aqui em vigor, castra as mulheres de qualquer interação social.
A caminho da Etiópia
De Merowe seguimos para Atbara, a meio caminho entre Kassala e Khartoum. Deixamos a cidade às primeiras horas da manhã e, uma vez mais, rapidamente conseguimos boleia. Somos deixados num cruzamento de estrada, num check-point policial, onde os próprios polícias se encarregam de nos conseguir um camião, depois de muito explicarmos que não queremos seguir de autocarro.
A estrada para Atbara é um mar de areia pontuado por dunas negras que mais parecem carcaças de dinossauros. Dunas penteadas por um vento manso que se enrosca de quando em vez, formando pequenos tornados e uma vastidão de nada varrida por alguém muito cuidadoso, de onde por vezes surgem pessoas sem que se perceba muito bem de onde.
Em Atbara, despeço-me do meu companheiro de viagem dos últimos dias. Franz quer seguir para Khartoum, mas a capital do país – com os seus edifícios modernos, hotéis ao estilo ocidental e o único sitio do país onde a lei islâmica não se aplica – parece-me demasiado distante do universo rural e tranquilo que tenho experimentado até agora, pelo que opto por seguir para Kassala, preservando esta imagem bucólica do país.
Apanho boleia num camião. O avanço é difícil nesta estrada em mau estado onde, pontualmente, vacas jazem em estado de decomposição depois de atiradas já mortas para a berma da estrada por camionistas que as transportam em condições pouco apreciáveis (especialmente sobrelotação).
No entanto, a paisagem é deslumbrante; o deserto estendido até às montanhas que vão surgindo no horizonte e uma linha de comboio que fazia a ligação ao mais importante porto do país (Port Sudan) mas que hoje é apenas uma miragem desses tempos.
À saída de Kassala, aldeias de casas minúsculas e circulares, cobertas por um telhado de colmo que mais parecem chapéus chineses, vão pontuando a paisagem.
Demoro mais do que contava até à fronteira com a Etiópia. São três da tarde e será preciso muita sorte para conseguir chegar ainda hoje a Gonder e todos os procedimentos fronteiriços atrasam ainda mais a minha saída desta estranha fronteira, onde filas intermináveis de camiões aguardam vez para cruzar a minúscula ponte que separa os dois países, e onde pessoas pouco fiáveis e lojas de aspeto duvidoso se aglomeram de forma caótica.
Só do lado Sudanês é preciso ir a três sítios diferentes antes do carimbo de saída. Na última destas “repartições”, Neli e Julie – um casal britânico do Yorkshire numa volta ao mundo overland a bordo de um Defender cumprem também os mesmos requisitos. Com o carimbo no passaporte e antes mesmo de me despedir deles, pergunto se porventura não têm um lugar vago no carro para me darem uma boleia: “Claro que sim”!
Finalizados todos os procedimentos fronteiriços em ambos os lados – o lado etíope é surpreendentemente sofisticado quando comparado com o do Sudão, com scanners de impressão digital e câmaras fotográficas para um processo rápido, eficiente e inteiramente digital (nas paredes pode ler-se: “no more paper”), bastando para isso que o gerador funcione – e estamos a caminho, não de Gonder mas de Gorgora, onde dizem haver um parque de campismo fantástico com um pé no Lago Tana e a preços convidativos.
A estrada que leva até lá é absolutamente fabulosa, ziguezagueando para cima e para baixo ao longo das montanhas do vale do Rift, intervalando com retas que se estendem ao longo de povoações inteiras e que me dizem em definitivo estar em África. Estradas cruzadas por macacos e caminho de inúmeras manadas de vacas. Esta é a completa imagem que tinha da Etiópia e de África.
O pôr-do-sol aproxima-se e é altura de decidir se continuamos ou acampamos em qualquer lado. Não encontramos qualquer sítio adequando para montar a tenda e, além disso, estamos desejosos por uma cerveja, depois de dias no Sudão onde encontrar uma é tarefa quase impossível, pelo que resolvemos continuar.
A noite cai e uma luz estranhamente enorme parece emergir. Uma lua tão cheia que parece querer rebentar surge subitamente por detrás de uma das montanhas, iluminando toda a estrada como um enorme candeeiro de rua.
O Defender de Neil tem mais de 300 mil quilómetros – o suficiente para mais de uma volta ao mundo! – e foi completamente modificado por ele ao longo dos últimos 2 anos para esta viagem. Contudo, tem um problema de sobreaquecimento e somos forçados a parar duas vezes antes de chegarmos ao parque.
Já é muito perto das onze da noite quando finalmente encontramos o parque. Duas cervejas depois e estamos recolhidos nas tendas, com todos os sons de uma África selvagem que tanto me preencheram o imaginário durante todo este tempo a embalar o sono.
De Cabo a Cabo tem por objetivo unir os pontos mais a norte da Europa e mais sul de África, numa viagem em busca das afinidades e multiplicidades dos povos, das suas culturas, crenças e esperanças, das suas singularidades e de como o homem é um ser “pacífico e cooperativo”, como dizia o professor Berger a Paul Theroux durante a sua «Viagem Por África». Com saída de Santa Maria da Feira, Portugal, no dia 28 de agosto de 2011, Mateus Brandão percorreu 20 países em 3 continentes durante 9 meses.
Seguro de viagem
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Ótima a matéria, obrigado pelo relato.
Estou planejando voar para Addis Abada e seguir por terra até o Cairo mas pelo que li, atravessar o Sudão é bem perigoso e acabou me desestimulando um pouco. O que você achou nessa sua experiência, é seguro ou realmente é bem perigoso? Obrigado!
Olá!
Parabéns pelo excelente trabalho!!
O Sudão deve ser fascinante :)
Considera possível um casal viajar pelo Sudão com uma criança de 6 anos? Ou as questões alimentares e possíveis contaminações são demasiado frequentes? Muito obrigada!