
Quase 2.000 km e mais de 50 horas de viagem entre Dar es Salaam e Kapiri Mposhi, atravessando o Vale do Rift, serpenteando montanhas, cruzando rios que correm no alto das suas pontes e percorrendo aldeias perdidas na imensidão da savana. Uma viagem de comboio pela linha que é o cordão umbilical da Zâmbia ao mar.
Depois de comprar bilhete para a Tazara, a companhia ferroviária que faz a ligação entre Dar es Salaam e Kapiri Mposhi, tenho a sensação que esta viagem, pela distância envolvida, é o princípio do fim. Mais de 2.000 km quase de uma só vez, e sempre de comboio, até às Cataratas Vitória. Pelo menos é isso que espero possa acontecer.
A estação Tazara, de Dar es Salaam, é um edifício grandioso, de linhas modernistas, bem ao estilo monumental da arquitetura comunista dos anos 70. Faltam ainda umas cinco horas para a partida quando chego à estação, mas já algumas pessoas aguardam no interior. Felizmente, há um restaurante acolhedor numa das alas do edifício, o que me deixa satisfeito.
Os restaurantes de estação sempre tiveram um encanto especial para mim. Dão outra dimensão ao edifício, ampliando o simples ato, por vezes enfadonho, de esperar pelo comboio e transportam-me quase sempre para um tempo em que os próprios horários de circulação dos comboios eram articulados com os períodos de refeição, para que os passageiros pudessem descer das suas carruagens e servir-se de um agradável repasto num desses restaurantes antes de prosseguir viagem.
Às quatro da tarde já estamos atrasados e não parece haver sinais de que possamos sequer tomar lugar no comboio, que há muito se encontra estacionado na estação, tendo já inclusive toda a carga, que horas antes se amontoava na plataforma, sido completamente carregada para o seu interior.
A espera prossegue. Todos os lugares da sala de espera se encontram ocupados e mais gente aguarda no chão. Há berços espalhados pela sala para deitar bebés e uma loja de conveniência que parece não ter mãos a medir com toda esta gente.
Por volta das seis da tarde o acesso ao comboio é finalmente autorizado. Todos tomam lugar mas a noite cai sem que a fila interminável de carruagens deixe a estação.
No meu compartimento de primeira classe viaja também Federico, um argentino a viajar pelo sul de África e que me acompanhará até Lusaka, reencontrando-me dias mais tarde já em Livingstone. Federico já correu mundo e invariavelmente as nossas conversas derivam para as histórias das experiências de viagem de cada um.
Dos altifalantes da estação, uma voz feminina pede desculpa pelo atraso alegando um problema técnico, o que não parece acalmar os ânimos de uma multidão disposta a pedir explicações dirigindo-se de forma intimidatória para o edifício da estação. A noite adianta-se e, mesmo sem qualquer sinal de partida, o jantar é servido no nosso compartimento; arroz, frango e um pouco de melancia por pouco mais de um euro e meio.
Finalmente, na Tazara Railway
São nove da noite. Já um grupo de ingleses se cansou de esperar e abandonou o comboio quando um esticão abrupto na carruagem anuncia finalmente a partida. Apesar de tudo, confesso a Charles, companheiro de ocasião que viaja da Austrália com a namorada Larissa, a minha felicidade por estar de volta aos carris e que tal atraso pouca importância tem.
Partimos com sensivelmente seis horas de atraso. Enquanto resta energia e gelo na arca das bebidas do bar, saboreamos os primeiros quilómetros na companhia de uma cerveja e dois dedos de conversa.
A manhã acorda tranquila sob um céu coberto de nuvens. O comboio ginga durante todo o caminho, parecendo por vezes que vai descarrilar, o que não permite o melhor dos sonos.
Um vale a perder de vista pontuado por árvores-da-salsicha com frutos pendentes que mais parecem candeeiros de sala de jantar ou outras de flor amarela irrompem pela janela. A cada paragem nas estações, homens e mulheres de bacias à cabeça vendem um pouco de tudo.
Depois de Mlimba, o comboio serpenteia ao longo do Vale do Rift numa sequência de túneis e pontes até Makambako, proporcionando vistas fabulosas sobre a paisagem e sobre as inúmeras carruagens que compõem o comboio.
Campos de girassol, embondeiros e palhotas espalhados ao longo da linha onde crianças pedem garrafas de plástico e mulheres de vestidos coloridos compõem o cenário. Depois de Makambako, o comboio desliza pelo interior do Vale do Rift, com montanhas verdejantes de ambos os lados e um vale que se estende para lá da vastidão. Estações perdidas no meio de campos de milho e bananeiras, e onde todos param para acenar à passagem do comboio.
A Tazara Railway é uma linha construída pelos chineses no início dos anos 70, proporcionando à Zâmbia (antiga Rodésia) um cordão umbilical que une o país ao mar. A importância desta ligação era de tal ordem significativa que apenas após alguns meses de circulação, a companhia viu-se obrigada a reparos nos carris e balastro devido ao peso excessivo da carga transportada nos vagões, que durante esse período foi danificando a linha. Hoje em dia, parece estar a ser construída uma nova ligação aos portos de Angola, fruto do maior crescimento económico deste vizinho.
Em Mbeya, novos problemas mecânicos fazem atrasar ainda mais a nossa saída. O jantar é novamente servido nos compartimentos com o comboio estacionado na gare. A noite avança e só às quatro da manhã e já com quase 15 horas de atraso acumulado o comboio deixa a estação.
A manhã do terceiro dia desperta com uma neblina envolvendo o vale. Na proximidade da fronteira, aldeias de tijolo de barro e telhados de zinco amontoam-se nas encostas de pequenos montes. O comboio prossegue com crianças que assomam e correm atrás do comboio gritando; Mzungo, Mzungo, ao ver-nos à janela.
O ritmo compassado do comboio embala as primeiras horas desta manhã, com o sol a entrar pela janela de onde compro cinco mangas por 500 Kwachas (o que não chega a 10 cêntimos), enquanto crianças de uniforme escolar contrastam com outras tantas que vão surgindo do meio do nada, nas suas roupas sujas de tanta brincadeira e felicidade.
É já noite dentro quando o comboio chega finalmente a Kapiri Mposhi. Foram mais de 50 horas de viagem num cenário deslumbrante onde só faltaram os animais do Parque Natural Mikumi (Tanzânia) – que teríamos cruzado durante o dia não fossem os atrasos.
De Lusaka a Livingstone
Em Lusaka, outro comboio levar-me-ia a Livingstone não fosse ninguém saber a que horas parte. Por volta das nove da noite (haviam-me recomendado comparecer duas horas antes da partida) questiono passageiros, seguranças e funcionários da estação e todos têm um palpite diferente quanto à hora de chegada do comboio. O horário marca 23 horas mas o leque de apostas varia entre as 22 e as cinco da manhã: “A semana passada passou aqui por volta das cinco e meia!”, diz-me um dos funcionários. Como se não bastasse, o tempo de viagem é três vezes superior ao do autocarro.
Perco a vontade de esperar e na manhã seguinte dirijo-me finalmente, e de autocarro, para as Cataratas Vitória, ultrapassando algures pelo caminho o comboio onde era suposto seguir, enquanto os meus companheiros de viagem se deliciam com a reposição da final da CAN, de onde a Zâmbia saiu vitoriosa uma semana antes.
De Cabo a Cabo tem por objetivo unir os pontos mais a norte da Europa e mais sul de África, numa viagem em busca das afinidades e multiplicidades dos povos, das suas culturas, crenças e esperanças, das suas singularidades e de como o homem é um ser “pacífico e cooperativo”, como dizia o professor Berger a Paul Theroux durante a sua «Viagem Por África». Com saída de Santa Maria da Feira, Portugal, no dia 28 de agosto de 2011, Mateus Brandão percorreu 20 países em 3 continentes durante 9 meses.
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