Da ideia de que todos são anti-ocidentais e que são a origem do terrorismo, damos por nós a pedalar por um país onde nos sentimos tão seguros como em nenhum outro lugar. Damos por nós a partilhar uma refeição enquanto discutimos política e religião. Damos por nós pasmados pelo desenvolvimento, pela cultura, pela arquitetura. Damos por nós, enfim, a conhecer um país que se revela o oposto de tudo o que imaginávamos.
A ideia que fazemos do Irão é, geralmente, aquela que nos chega através dos diferentes meios de comunicação: terrorismo, anti-ocidente, pertencente ao “Eixo do Mal”, programa nuclear, mulheres cobertas da cabeça aos pés, apedrejamento, corte de mãos a quem rouba, enforcamentos públicos, religiosos radicais e mais uma série de males e maldades que nos afastam deste país rico em cultura, em história, fonte de conhecimento e, um dia, o centro de um dos maiores impérios do mundo.
A ideia que temos do Irão é a mesma que neste momento penso que alguns países possam ter de Portugal, depois de uma série de fotografias que vi, há pouco mais de um mês, num dos mais importantes sites de um jornal americano: pessoas a pedir nas ruas, outros vasculhando caixotes do lixo, mulheres sentadas nos passeios com crianças de colo com ranho a cair pelo nariz, filas para algumas instituições de caridade, entre outras – nós, portugueses, sabemos que não é bem assim. No entanto, o ano passado, aquando da nossa primeira viagem, em Berlim, a nossa anfitriã teve a lata de nos dizer que uma amiga esteve em Portugal na altura em que nasceu o Euro e que andava uma companhia de teatro de terra em terra a explicar às pessoas como funcionava a moeda, pois quase ninguém entendia. Rimos, claro. É este o poder dos media, criar o que não existe, mudar a nossa maneira de pensar. Também por isso, viajar é tão importante.
Se é verdade que existe um programa nuclear, como muitos países têm, não é verdade que os iranianos são terroristas, apesar de muitos no país dizerem que sim, que o Presidente é maluco e terrorista. Também não é verdade que são anti-ocidentais, muito pelo contrário. Se viajarmos no Irão, sentimo-nos mais seguros do que em qualquer outro local no mundo, somos recebidos de uma maneira tão genuína e amiga que até nós já nos esquecemos de assim receber. Os apedrejamentos que vimos na televisão faz agora um ano, foram no Iraque, numa pequena comunidade religiosa, e não no Irão, apesar das notícias dizerem que sim. Os cortes de mão por roubo estão na lei, sim, mas há também tanta coisa na lei de alguns países que nunca se cumpre. As mulheres cobertas da cabeça aos pés pode ser meia verdade. O chador é um pano geralmente preto que as cobre até aos pés, mas que não são obrigadas a usar. Se o usam, é por questões religiosas, porque as famílias são muito conservadoras, ou por simbolismo. Muitas mulheres que conhecemos e com quem conversámos usam o lenço na cabeça de forma muito discreta e porque a isso são obrigadas, mas detestam-no, e se pudessem, sim, tiravam-no. Porém, ao conversarmos, vemos mulheres inteligentes, cultas, que têm a noção do mundo, que sabem da atualidade, que se cuidam, que são bonitas e que, à primeira oportunidade, também piscam o olho a alguém se assim o desejarem.
O nosso trajeto no Irão levou-nos da fronteira com o Iraque a Mahabad, daí até Zanjan, depois até Teerão, de lá descemos a Shiraz para logo subirmos a Esfahan. Em Teerão novamente até Mashhad e daí à fronteira com o Turquemenistão. De todas as cidades já todos ouviram falar com certeza, mas o que faz uma viagem de bicicleta diferente das outras viagens é a passagem pelos “outros” sítios, as terras de ninguém, onde a história, por azar ou falta de oportunidade, não deixou qualquer marca, onde o turismo nunca chegou, onde passam autocarros e táxis nas suas rotas para as grandes pérolas da nação, mas onde vivem pessoas com os mesmos costumes de há séculos, com dialectos próprios, fazendo casas da mesma maneira, comendo a mesma coisa e recebendo quem vem de fora, como um viajante, de forma igual àqueles que um dia ali passaram com seda, chá, especiarias ou papel.
Nestes pequenos lugares, pensámos encontrar pessoas muito mais conservadoras e fechadas mas, também aí, embora o ritmo seja outro, elas mostravam a mesma revolta contra a política e, surpreendentemente, contra a religião. De todos os países pelos quais já passámos, este é o que menos praticantes vimos, aquele onde as pessoas nos dizem que sim, são muçulmanas: “Mas, e então? Somos todos iguais: muçulmanos, cristãos, budistas e outros! O que interessa se eu acredito neste profeta e outros noutro qualquer?” e as palavras saem assim, simples. As pessoas agradecem, rezam, invocam Ala, ou Deus, se traduzirmos a palavra, mas não faremos nós isso também? Perguntam que religião temos, e à nossa resposta respondem que não há qualquer problema em não termos qualquer uma, o que interessa é que somos boas pessoas e fazemos o bem, e isso emociona-nos. Noutros países, quase que éramos obrigados a ter uma religião, um partido, uma cor, um Deus e aqui acabamos por nos sentir mal porque, mesmo que soubéssemos com antecedência que era diferente daquilo que víamos na televisão e nos jornais, confesso que os preconceitos nunca desaparecem por completo e, depois de mês e pouco, a sensação de que estamos errados, completamente errados, é cruel para nós próprios.
Os últimos dias no Irão foram duros. Além de cada adeus nos custar, de amizades terem sido feitas – acreditamos – para toda a vida, o calor começava a apertar e pedalar por debaixo de temperaturas acima dos 40 graus não se tornou fácil. A pouca sombra a caminho do Turquemenistão preparava-nos já para a próxima etapa. A falta de água fresca, de povoações, de sítio para descansar, o vento forte pela frente, tudo alterava a nossa normal rotina. Apesar de tudo, saíamos do país com um imenso sorriso. A ideia de que uma revolução – outra revolução – estará para breve faz-nos acreditar que este é um país com pessoas capazes, cultas e com vontade de terem as liberdades de um qualquer país ocidental.
Voltaremos, com a certeza, em breve, para mais tempo, muito mais tempo. Para piqueniques, muitos piqueniques…
O projecto Eurásia é uma viagem de bicicleta entre Portugal e Macau, com passagem pela Europa, Médio Oriente e Ásia Central e 19 meses de duração. Ao longo de todo o percurso foram publicadas crónicas com periodicidade média quinzenal.
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