Na estrada que nos levou aos templos de Angkor foi-nos revelado um Camboja desconhecido. Um país com a cor do massacre humano consegue provar-nos que sorrir está ao acesso de todos, até daqueles de quem a vida sempre lhes fugiu. Um terreno negro, devastado por incêndios recentes e corrupção antiga. O país com vontade de ser um país!
Ainda não tínhamos passado o portão para dar entrada no novo país, já a polícia fronteiriça fazia jus à sua fama de corruptos: “O visto são 1.000 baths (moeda tailandesa e que corresponde a quase 25 euros) por pessoa”, diz o guarda. “Não temos baths. Só dólares”, respondo. “São 25 dólares”, recebemos em resposta. “A quantia já desceu, ou é impressão minha?”, digo à Tanya e, virando-me para o guarda, pergunto-lhe: “Não são 20?”. “Sim, 20 dólares”, e um carimbo a dizer $20 é prensado em ambos os vistos. “Obrigado!”, respondemos em uníssono, com um sorriso de vencedores estampado no rosto.
Avançámos para o segundo nível. A primeira descida no país, um asfalto atabalhoado e uma nova direção na estrada, voltando ao lado direito, mas da qual não nos apercebemos nos primeiros quilómetros, tamanha era a quantidade de carros e motorizadas a vir na nossa direção. Os primeiros sorrisos apareciam e, dois minutos mais tarde, considerávamos já as crianças cambojanas as mais simpáticas até então. Os “Hellos” sucediam-se em quantidades que nunca antes havíamos ouvido e os pequenos petizes não se cansavam, pelo contrário, abriam a goela de extremo a extremo e brindavam-nos com alegria uma e outra vez.
O primeiro dia na estrada, porém, foi só mesmo isso, o primeiro dia. Nada a contar, a não ser a emoção de uma nova descoberta: um país muito pobre, com estradas em terra batida e areia empoeirada, onde a organização no trânsito é demasiado desorganizada, com lojas aquém das nossas expectativas e uma higiene de duvidar, mas com pessoas tão simpáticas que nos faziam sentir vergonha da tristeza que por vezes mostramos, quando pensamos no terror das vidas deste povo nos últimos 100 anos. O Camboja não é só o país mais bombardeado da história da humanidade, como sofreu também de um colonialismo tardio, de golpes políticos apoiados por países ocidentais, ditaduras militares e massacres à escala do nunca visto, com o próprio povo, no caso dos Khmers Vermelhos que, em pouco mais de três anos, conseguiram destruir a confiança, a cultura, a religião, a arte e a educação de um povo inteiro, além de lhes ter roubado mais de dois milhões de vidas.
Depois – porque há sempre um depois – vieram os anos incertos, a corrupção, a venda do tudo e do nada sim, porque no Camboja tudo se pode comprar, tudo se vende, desde que dinheiro exista , e o povo continua a sofrer, interiormente. Quando os sorrisos de orelha a orelha se abrem à nossa passagem, sabemos que os das crianças são muito recentes, sem dor, mas sabemos que os dos mais velhos, principalmente eles, já viram morrer muitos membros da família, com as piores torturas, os piores ódios, os piores assassinatos e continuam a ter a força dum sorriso. É impressionante, comovedor e memorável. Uma lição de vida, se me permitem o cliché.
Chegar a Anlong Veng, local à volta do qual os Khmers Vermelhos se refugiaram nos últimos anos, por estarem ali tão perto duma Tailândia que lhes dava asilo, foi tarefa árdua e de paisagem monótona. O país arde sem parar. Um incêndio ininterrupto queima o norte do país sem que ninguém faça algo para o impedir. As chamas destroem tudo à volta e as populações, alheias à destruição e ao problema alheio, cruzam os braços e embalam-se nas redes por debaixo das casas, à sombra, e acenam mais uns tantos “hellos”. Tudo é negro e temos a certeza que só quando chegar a Siem Reap sítio dos templos de Angkor fará o governo alguma coisa. Até lá, a lenha compra-se mais barata, os terrenos desvalorizam e a corrupção aumenta.
Nos dias que se seguiram, a acrescentar à continuação dos incêndios, somente as diversas paragens para bebericar mais qualquer coisa sim, porque quando se pedala com mais de 40°, é bem preciso nos traziam algo de diferente. Descobrimos novos sabores de batidos, sumos de cana-de-açúcar, granizados, bolinhas de arroz com ervas, banana frita, donuts de partir os dentes, pães açucarados e preços mais altos na comida e mais baixos e com mais qualidade nos hotéis, comparando com a Tailândia.
Quando o fluxo de carrinhas, tuk-tuks (motorizadas que na Tailândia podem levar até oito pessoas) e bicicletas com turistas começaram a surgir em demasia, tivemos a certeza que estávamos perto de Angkor. Ainda faltavam uns valentes quilómetros, mas já o turista-tudo-incluído se apressava nas suas férias para não perder pitada de nada. Nós pedalávamos em sentido contrário e, só no dia da primeira visita aos templos de Angkor, descobrimos que podíamos ter visitado muitos dos monumentos gratuitamente, pois não existe ninguém a controlar se a entrada for feita “pelas traseiras”.
Tínhamos encontro marcado com Seyha, o nosso warmshower (sítio na internet para alojamento de pessoas que viajam de bicicleta), mas ainda tivemos de esperar umas horas que ele chegasse, suados até ao tutano, enquanto metíamos alguns assuntos pendentes em dia. Apareceu, quatro horas mais tarde, com outro casal de bicicleta, franceses, e os dias seguintes foram, inevitavelmente, em volta de conversas sobre trajetos, dicas e como fazer mais por menos.
Sobre os templos de Angkor, por muito que as nossas palavras queiram expressar a beleza e imensidão de tal sítio, tornar-se-ia muito difícil fazê-lo. Que é Património protegido pela UNESCO, já todos sabem. Que é uma das 7 Maravilhas do Mundo, já toda a gente sabe. Que é um sítio obrigatório a visitar, já toda a gente sabe. O que fica então por dizer? Que, de bicicleta, é a melhor maneira de o fazer e que um bilhete de três dias, válido por uma semana inteira, é a melhor opção. Depois, é pedalar lentamente pelos trajetos marcados por entre a floresta de templos, tanques, mausoléus e ruínas, árvores que ganham espaço entre muros mais velhos que o tempo, que rasgam o chão e se acomodam aos telhados, mostrando o poder da natureza sobre a mão humana. É um contemplar de monumentos que se “riem”, torres que se erguem aos céus, budas deitados do tamanho dum inteiro templo, labirintos de pedras que o tempo fez cair, caras que se escondem por detrás de raízes que há muito moldaram a história de Angkor Wat.
Para nós ficou também a revelação de que o primeiro mapa dos templos foi feito no século XVI, pela mão dum português, claro está, e que, mais uma vez, assim como no caso da Austrália, os outros chegaram trezentos anos mais tarde mas ficaram com os louros. Em Portugal, como com o Camboja – triste história ou história triste?
De Siem Reap, a estrada parte quase reta até Phnom Penh, a capital. Tão reta que nos parecia, olhando o mapa, demasiado monótona. Decidimos então torná-la mais emocionante e em vez de “cortar a direito”, como se diz na gíria, cortámos à direita. Asneira das grandes.
À direita, jamais!
O projecto Eurásia é uma viagem de bicicleta entre Portugal e Macau, com passagem pela Europa, Médio Oriente e Ásia Central e 19 meses de duração. Ao longo de todo o percurso foram publicadas crónicas com periodicidade média quinzenal.
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