Destino: Ásia

As escolas do Camboja

Por Fernando Carvalho da Silva
Escola em Battambang
Alegria das crianças numa escola em Battambang

Uma sala quase vazia. As paredes cheias de um angustiante nada. Apenas uma cama ferrugenta com correntes e algemas à cabeceira. No pavimento uma mancha cor de sangue. Será mesmo? Pessoas que entram e saem num silêncio profundo. No chão um simples xadrez de mosaicos laranja e branco.

Bem longe, uma sala cheia de crianças. Na parede um quadro de ardósia. As paredes cheias de posters, desenhos e alegria. Uma meia dúzia de filas de carteiras. É intervalo. Uns miúdos gritam, outros correm pelos corredores. Meninas, sentadas, conversam animadamente. No chão um simples xadrez de mosaicos laranja e branco.

Duas salas quase iguais. A primeira em Phnom Penh, na prisão de segurança S-21, uma escola onde as salas foram adaptadas para interrogatórios no tempo dos Khmer Vermelhos. Desde essa altura assim ficou, pois escola nunca mais poderá voltar a ser. Foi reconvertida no Museu Tuol Sleng para nos recordar o que nunca deve ser esquecido.

Museu do Genocídio Tuol Sleng
Museu do Genocídio Tuol Sleng, uma antiga escola em Phnom Penh

Não é comum, mesmo para quem o viveu, saber a duração exata de um regime político. Mas qualquer cambojano sabe que este perdurou por três anos, oito meses e vinte dias. Tempo suficiente para esvaziar as cidades, matar milhões à fome e massacrar outros milhares. Quando os Khmer Vermelhos foram expulsos do poder, um terço da população do país tinha padecido.

A outra sala fica também numa escola. Mas na pequena cidade de Battambang, onde aproveitei a minha estada para, dentro do possível, conhecer melhor a realidade do Camboja. Visitei templos, aldeias e também escolas. Graças a um condutor de tuk-tuk com um inglês admirável, escutei histórias de vida (desde a guerra do Vietname à atualidade) e testemunhei a dificuldade com que vive a maioria dos cambojanos. Mas ouvi, repetidamente, que o pior já passou, vi que o horrível passado foi aceite com uma serenidade budista, encontrei esperança e uma enorme vontade de mudança.

Escutei também, numa gruta usada pelos Khmer Vermelhos como campo de extermínio, os relatos de um sobrevivente desses tempos. Numa voz serena, este guia turístico, contava a um grupo as suas provações durante aqueles anos. A um canto, resguardado pelo escuro da gruta, fiz as contas. Tinha a minha idade.

Criança Camboja
Criança em Battambang, Camboja

Dias depois, já em Phnom Penh, eu e o Gonçalo, companheiro de viagem, fomos bem cedo visitar os Campos da Morte (o local usado como campo de extermínio na capital cambojana) e depois a prisão S-21. Nesta manhã pensava que ia mentalizado. Achei que mais forte que a gruta de Battambang seria difícil. Enganei-me.

No final da manhã, tentámos trocar algumas palavras sobre o que vimos, o que ouvimos (nos áudio guias) e o que sentimos. Balbuciámos umas palavras. Mas não consegui encaixar, se é que é possível encaixar, a dimensão do genocídio cambojano. Certos graus de magnitude vão além da minha compreensão. Apenas o final do dia, com vista para as animadas margens do Mekong, repôs alguma tranquilidade na minha mente.

Não esquecerei aquela manhã passada nos Campos da Morte e na S-21 e as horas passadas na escola em Battambang. Mas, acima de tudo, senti esta experiência como um vislumbre das duas faces da moeda que é a raça humana (talvez yin e yang seja mais apropriado). De como é possível um pequeno grupo de homens impor, em tão pouco tempo, uma mudança inimaginável numa sociedade. Um dia temos uma animada sala de aulas; no dia seguinte, no mesmo local, uma sala de tortura.

Veja também o post sobre viver em Phnom Penh.

Dicas para visitar os Campos da Morte e S-21

Como ir: um tuk-tuk para ir aos Campos da Morte e Prisão S-21 custa cerca de 15€. Os bilhetes são outro tanto com direito a áudio-guia nos Campos da Morte.

Onde dormir: hotéis recomendados em Phnom Penh.

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Fernando Carvalho da Silva

Sempre pronto para ir mas com saudade no coração. Cedo percebeu que viajar, mais do que monumentos ou paisagens, são pessoas e emoções. Tem na fotografia uma forma de se expressar e, quando não está a viajar, é um normal pai de família que se mantém em forma com natação e pastéis de nata.

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