Baalbek é mais conhecida por ser um quartel-general do Hezbolah do que pelas magníficas ruínas classificadas pela UNESCO. E de Bcharré pouco se ouve falar, apesar de ter uma estância de esqui – uma raridade por estas bandas – e os últimos cedros do Líbano num revigorante ambiente de montanha em torno do vale Qadisha, que percorri à boleia.
Há imagens que ficam na memória. Um descapotável vermelho com jovens libanesas de classe alta, bem vestidas e maquilhadas passa numa rua de Haret Hreik, uma zona no sul de Beirute bombardeada por Israel durante a campanha contra militantes do Hezbolah. Para lá do carro apenas se vêem escombros de prédios destruídos pelo fogo israelita, que uma das beldades fotografa com o telemóvel. Vivem seguramente noutra zona de Beirute, mais endinheirada, menos problemática. O contraste entre o luxo e os escombros de guerra retratados no instantâneo valeu ao fotógrafo Spencer Platt o prémio máximo do World Press Photo em 2006. Entrei no Líbano com essa imagem na cabeça, directo para um bastião do Hezbolah: Baalbek.
Não há dúvida que Baalbek é mais famosa pelas notícias negativas em torno do “partido de Deus” do que pelas magníficas ruínas às portas das quais a cidade se desenvolveu. É na região do vale Bekaa, onde Baalbek se espraia, que o coração do Hezbolah palpita com mais intensidade. Ainda o minibus mal tinha parado no baldio que serve de estacionamento junto às ruínas e já a cor amarela da t-shirt nas mãos do vendedor ambulante não deixava margem para dúvidas. Dependuradas em postes de iluminação ao longo das ruas e avenidas havia bandeiras amarelas esvoaçando e posters com as caras de dirigentes do partido. Há gente à civil que, de quando em vez, interroga os raros viajantes independentes sobre o conteúdo das suas fotografias. E muitos militares armados. Estava mesmo na toca do Hezbolah.
O território é teoricamente hostil. Talvez por isso, muita gente não se atreva a pisar o solo de Baalbek. Fazem mal. Não que a cidade seja deslumbrante ou memorável, mas porque as ruínas, protegidas pela UNESCO desde 1984, são magníficas, com o Templo de Baco no topo da lista de lugares onde é um deleite ficar sentado a observar o jogo de luz e sombras, num regresso ao glorioso passado do Império Romano. E porque, na prática, politica à parte, as pessoas são das mais amigáveis que encontrei no Líbano. Uma vez exploradas as ruínas, era tempo de arranjar forma de rumar à preciosa Bcharré. E a viagem não podia ter corrido de melhor forma.
Há dias assim, felizes. Em Baalbek, garantiram-me que não havia transportes públicos para Bcharré. E era verdade. Apenas até uma aldeia imediatamente antes da cadeia montanhosa que leva ao vale Qadisha. Cientes disso, os taxistas pediam 50 dólares para fazer o trajecto Baalbek – Bcharré. Demasiado, pensei. Entrei num táxi partilhado até à dita aldeia – a partir daí, algo se haveria de arranjar. Assim que cheguei, comprei bananas e pão e sentei-me na berma da estrada a comer, relaxado. Estava bem disposto e, talvez por não mostrar o mínimo sinal de desconforto, os taxistas da aldeia rapidamente deixaram de me fazer propostas.
As pessoas olhavam com surpresa para as mochilas estendidas na berma da estrada. Comecei a indagar, mas, por mais que perguntasse, não havia carro algum que tivesse Bcharré como destino. Um homem numa pickup afirmou que ia até meio caminho, uma vez terminados alguns afazeres: “Se ainda estiveres aqui quando terminar, levo-te até lá”. Não era o ideal, mas ficaria bem mais perto de Bcharré. Foi o melhor que consegui na primeira meia hora. Continuei a tentar. O trânsito era escasso. Os carros que passavam na rua principal teimavam em não seguir para Bcharré, até que uma carrinha de 13 lugares, com sete militares a bordo e o motorista, parou ao meu sinal: “Bcharré?” “Yes, come”. Bingo!
A viagem foi feita em ambiente de galhofa, com piadas típicas de ambientes masculinos como o militar. Um deles, casado com uma norte-americana, falava excelente inglês. Era uma espécie de bobo da corte, gracejando com os companheiros, sempre divertido e provocatório. Lá fora, pomares com macieiras pintalgavam a encosta de verde; dizem que ali se produzem as mais saborosas maçãs do Médio Oriente.
À medida que a altitude aumentava, a paisagem foi-se tornando mais inóspita, o ar mais frio, e a neve começou a aparecer nas zonas protegidas dos raios de sol. Quando chegámos ao topo da montanha, a estrada tinha quase três metros de neve de cada lado. Mal começámos a ziguezaguear encosta abaixo, vislumbrei Bcharré e o vale Qadisha, lindo, verdejante e sorridente, com uma estância de Inverno e um pequeno conjunto de cedros a anteceder o burgo. São os últimos cedros do Líbano.
As montanhas do Líbano albergaram, em tempos, imensas florestas de cedros. A árvore é até símbolo nacional, com presença destacada na bandeira libanesa. Mas a sua madeira terá sido utilizada de forma massiva e desregrada, levando ao quase desaparecimento da espécie em território libanês. Hoje em dia, resta pouco mais que aquela área minúscula nos arrabaldes de Bcharré, a tal ponto que a UNESCO classificou a área como Património Mundial. Pouco depois dos cedros, chegava finalmente a Bcharré.
Bcharré é um lugar encantado. Uma vila pequena, simples, sem maiores atracções que algumas igrejas e mosteiros mas extraordinariamente sossegada e bem localizada, e terreno fértil para caminhadas ao longo do vale Qadisha.
A tarde ia já a meio quando, caminhando fora da vila, ouvi música alta e vi ao longe alguma agitação num restaurante de beira de estrada. Aproximei-me, sentei-me, pedi chá. E fiquei a observar. Eram jovens estudantes em viagem de fim de ano. Bebiam cerveja, fumavam e dançavam sem intimidade entre os sexos opostos. Os professores ofereceram-me comida. Tornei-me modelo fotográfico por alguns instantes, até que a festa acabou e todos entraram no autocarro escolar. Segui caminho.
Adiante, a estrada descia em curvas e contracurvas até ao mosteiro Mar Lichaa, local de peregrinação encravado nas rochas bem no fundo do vale. O sol já se preparava para desaparecer atrás da escarpa quando regressei a Bcharré. Cansado, tentei a sorte e estiquei o dedo ao ouvir o barulho de uma carrinha de carga, que parou imediatamente. O condutor sorriu, apontando para a parte traseira da viatura. Tinha os bancos ocupados, mas junto à carga de batatas, tomate e grandes sacos brancos não faltava espaço. Naquele momento, regressando a Bcharré sentado num saco de farinha, à boleia com um amistoso agricultor envolto em neve, montanhas e muita paz, a fotografia de Platt parecia uma realidade distante e impossível.
O projecto Cairo - Teerão foi uma viagem terrestre pelo Médio Oriente, com a duração de três meses. Teve início no Cairo, capital do Egito, e término em Teerão, capital da República Islâmica do Irão. As crónicas foram originalmente publicadas no suplemento Fugas do jornal Público.
Seguro de viagem
A IATI Seguros tem um excelente seguro de viagem, que cobre COVID-19, não tem limite de idade e permite seguros multiviagem (incluindo viagens de longa duração) para qualquer destino do mundo. Para mim, são atualmente os melhores e mais completos seguros de viagem do mercado. Eu recomendo o IATI Estrela, que é o seguro que costumo fazer nas minhas viagens.