Pagaiando mar adentro, percorro um dos mais belos cenários naturais com que me deparei até à data. Retrato de uma exigente expedição de caiaque por entre as brumas da Baía de Halong, muito próximo da capital Hanói, norte do Vietname.
Tinha decidido deixar o sul da China e rumar em direcção ao Vietname. Mudar de ares. Verifiquei que o comboio é a forma mais prática de fazer a ligação entre Guilin, na província chinesa de Guangxí, e Hanói, capital do Vietname, mas é também a mais dispendiosa. Procurei alternativas. Quatro autocarros, dois táxis, uma motorizada e incontáveis horas depois chegava a Hanói. Uma aventura.
Lá chegado, tinha por primeiríssimo objectivo conhecer a Baía de Halong, a três horas de distância de Hanói. E Halong pode até ser o que de mais turístico existe em todo o país. Razões para tal popularidade não escasseiam. A natureza encarregou-se de aí criar uma das mais fabulosas paisagens que já pude observar até à data. Percorrê-la é como visualizar um filme composto por sucessivos fotogramas de superior qualidade, com jogos de cores e tons só ao alcance de conceituados directores de fotografia da sétima arte. E muitos turistas têm o prazer de assistir a essa película. O que não é tão comum, no entanto, é fazê-lo de forma activa, como num filme interactivo em que é possível escolher os ângulos das câmaras e até o próprio guião. A bordo de um caiaque, por exemplo. Pagaiando, pagaiando mar adentro por entre centenas de proeminentes rochedos erguidos das águas em aprumada verticalidade. Até os braços quase cederem. Assim fiz.
Desloquei-me numa pequena barcaça, em direcção ao campo base da expedição, na madrugada de um dia relativamente enublado. Pudesse eu isolar os diferentes tons de cinzento dessa madrugada e obteria pouco menos do que uma infinidade deles. Sublime. Uma inteira paleta de cinzas, do quase preto ao quase branco, misturados pelo pincel de um invisível artífice. E o tempo, esse, perfeito. Nem chuva, nem demasiado calor. O ideal para uma intensa actividade física como a que nos esperava.
No campo base – apenas um conjunto de casinhas de madeira construídas numa minúscula praia totalmente isolada – os caiaques esperavam por quem os arrastasse para as águas calmas do Golfo de Tonkin. Eram caiaques duplos, talvez demasiado grandes para praticantes experimentados, mas ideais para principiantes como a maioria dos elementos do grupo. Dez no total, homens e mulheres dos vinte e seis aos sessenta e cinco, desejosos de pagaiar filme adentro, quais actores secundários numa película onde o Óscar seria atribuído, seguramente, ao criador de tamanha beldade. Caiaques à água!
Passámos uma manhã em relativa tranquilidade. O vento e a corrente a favor na maioria do trajecto ajudavam a fomentar essa sensação. A brisa na face, os músculos ainda frescos, a sensação de liberdade total apoderando-se do corpo ao embrenharmo-nos neste cenário esplendoroso, os sentidos despertos, deleitados, tornavam o momento extremamente aprazível. E a bruma matinal adicionava uma pitada de excitação e mistério ao enquadramento, como se nos dirigíssemos ao encontro de uma imaginária Avalon. Pagaiávamos pela baía circunscrevendo ilhas de rochas verticais, sobranceiras, com o objectivo de alcançarmos uma pequena praia onde haveríamos de almoçar. Um pequeno barco de pesca haveria de trazer peixe fresco e outras iguarias.
Os bravos sexagenários, um casal australiano de afável trato, começavam, no entanto, a enfrentar as primeiras dificuldades fruto de uma deficiente sincronização de movimentos. Foi, pois, com algum alívio que chegaram a essa praia minutos depois, já eu nadava naquelas águas maravilhosas. E eis que se aproximou um pequeno barco de pesca, o aguardado almoço vindo ao nosso encontro. Nadámos até à embarcação, subimos a bordo e aí almoçámos, embalados pela suave ondulação. Um simples peixe grelhado, tão fresco como se estivesse vivo minutos atrás, lulas deliciosas, arroz – pois claro! – e espinafres salteados com alho. Dificilmente me ocorreria algo melhor para início daquela tarde.
A árdua parte da jornada estava reservada para o final do dia quando, umas quantas ilhas e formações rochosas adiante, nos dirigimos para mar menos protegido, iniciando o regresso ao campo base. A ondulação mais poderosa e o vento frontal dificultavam sobremaneira o avanço do caiaque. E o último objectivo estava ainda a uma considerável distância. Dividia o duplo caiaque com Jeanne, canadiana de Calgary de corpo atlético e em notável forma física, apesar da silhueta esguia e feminina. Lutávamos em conjunto contra as ondas e o vento e a fadiga muscular, tentando fazer avançar o caiaque em direcção ao almejado campo base. Uma paragem aqui e ali, breve, apenas o tempo suficiente para os músculos relaxarem ou a corrente levar-nos-ia muitos metros para trás.
Chegámos à praia, extenuados. Arrastei o caiaque para a areia já quase sem sentir os braços. “Boa, parceiro”, gritava Jeanne com um sorriso cúmplice que denunciava a felicidade que ambos sentíamos naquele instante. Vivêramos um dia exigente mas inesquecível. E o cansaço, afinal, era o que menos importava. Sentados na areia, de cerveja na mão, olhando para o sol alaranjado que ia desaparecendo à nossa frente.
Veja também o post sobre viver em Halong.
Esta é a capa do livro «Alma de Viajante», que contém as crónicas de uma viagem com 14 meses de duração - a maioria das quais publicada no suplemento Fugas do jornal Público. É uma obra de 208 páginas em papel couché, que conta com um design gráfico elegante e atrativo, e uma seleção de belíssimas fotografias tiradas durante a volta ao mundo. O livro está esgotado nas livrarias, mas eu ofereço-o em formato ebook, gratuitamente, a todos os subscritores da newsletter.