Depois de um delicioso imprevisto e de uma atribulada viagem de barco, cheguei a Wadi Rum, onde o turismo está a transformar a vida de quase todos os beduínos. Mais dinheiro, melhores condições de vida, habitações mais confortáveis. Mas há quem permaneça apegado ao modo de vida tradicional, vivendo nas eternas tendas rectangulares beduínas, mesmo às portas da aldeia de Rum. Como o velho Ali, tio de Mehedi, um jovem beduíno da nova geração. Contrastes de uma aldeia em mutação.
“Volte amanhã”. Foram estas as exactas palavras proferidas por um homem mal-encarado do outro lado do guichet. Eram onze e trinta da manhã. Pretendia comprar um bilhete para o ferryboat que liga diariamente Nuweiba, no Egipto, a Aqaba, na Jordânia. “Volte amanhã”. Sem mais. O ferry estava cheio.
Sem alternativas credíveis (entrar em Israel não era opção para evitar problemas futuros com a entrada em alguns países árabes), resignei-me a ficar em Nuweiba. Um taxista mencionou que uma tal de Tarabin era “muito bonita”. E assim acabei por me instalar num bungalow primitivo da praia Tarabin, quase uma dezena de quilómetros a norte do porto marítimo de Nuweiba, sem outra expectativa que não a de esperar pelo dia seguinte. Foi a melhor coisa que podia ter acontecido.
Tarabin é uma daquelas aldeias à beira-mar com apenas três ou quatro ruas de terra batida, quase deserta, com pousadinhas simples mas acolhedoras junto à praia, as convenientes redes mosquiteiras, almofadas no chão e velas a servir de iluminação nocturna. Há uma fileira de montanhas pelas costas, que entala Nuweiba contra a faixa litoral e dramatiza o cenário. Do outro lado do golfo de Aqaba fica a Arábia Saudita, visível a olho nu. Os menus dos poucos restaurantes abertos incluem peixe fresco, as pessoas são de uma amabilidade extrema, os camelos passeiam no areal em frente ao Soft Beach Hotel. E, apesar de me terem dito que Tarabin fora invadida por grupos de foliões israelitas poucos dias atrás, gozando da proximidade de Eilat para atravessarem a fronteira e gozarem as suas férias, no dia em que cheguei a praia Tarabin estava literalmente despovoada, sossegada, encantadora. Imagino que a muito popular Dahab tenha sido assim há 15 ou 20 anos. Enquanto mergulhava nas águas tépidas do golfo, com o sol prestes a esconder-se atrás das montanhas, só me ocorria pensar na sorte do imprevisto: Ainda bem que o ferry estava cheio.
Manhã cedo, nova tentativa para entrar na Jordânia. Comprei bilhete, entrei no porto, completei os trâmites alfandegários, esperei. Estava oficialmente fora do Egipto, em lado nenhum. Eram 10:00. Sentei-me à espera. O horário normal do ferryboat ronda as 15:00. Na bilheteira, tinham-me garantido que iria sair ao meio-dia. No banco à minha frente um homem jordano dormia. Ao seu lado, outro esperava de olhar vazio. Um polícia diz que às 11:00 vamos para o barco; ao meio-dia passa para as 13:00. Um puto entra a apregoar copos de chá. Os homens à minha esquerda comem enormes pedaços de frango e pão. As mulheres estão todas ao fundo. Uma jovem japonesa desespera. Um homem bate com a palma da mão na coxa, repetidamente. Às 14:00 já há muita gente a dormir no chão. Uma bela jordana de camisola vermelha e hijab preto passa à minha frente. O puto do chá entra outra vez. Polícias passeiam-se de walkie-talkies que não se calam. 17:00. Sabe-se agora que o mar está revoltoso e que o ferry não chegou sequer a Nuweiba. Um polícia barrigudo manda toda a gente parar de fumar, apontando para um símbolo na parede que ninguém viu. Às 18:30 o corpo já não tem posição. O polícia gordo empurra uns jordanos para longe da porta, ninguém pode mesmo sair. Um italiano diz que se sente “um prisioneiro”. Nada há a fazer senão esperar. A Jordânia continuava longe, e Mehedi à minha espera.
Mehedi é um jovem beduíno de Wadi Rum. Tem a pele escura, olhos cor de amêndoa numa figura esguia e elegante, sempre vestido de preto. Ao contrário do seu velho tio Ali, que prefere continuar a viver numa rectangular tenda beduína feita com lã de ovelha e pêlo de camelo nos arrabaldes da aldeia de Rum, Mehedi começou desde cedo a trabalhar com o turismo. Divide a sua vida entre o escritório na aldeia onde responde a emails e o “acampamento beduíno” onde recebe turistas de todo o mundo. Nos tempos que correm, a maior parte dos jovens beduínos trabalha na indústria do turismo – são cameleiros, guias para trekkings ou passeios de jeep no deserto de Wadi Rum. Já passava da meia-noite quando nos cumprimentámos pela primeira vez, junto à entrada de Rum.
O acampamento de Mehedi fica no extremo sul da zona protegida de Wadi Rum. É um espaço simples, com tendas pequenas, colchões no chão, simpatia, muito chá, comida saborosa, dunas e montanhas em redor. Um “hotel com um milhão de estrelas”, como gosta de dizer. De manhã, as nuvens brincavam com as tonalidades das areias, não deixando os raios de sol uniformizarem a paisagem. A envolvência era espectacular, exceptuando porventura demasiados rodados de jeeps nas areias de Wadi Rum. As montanhas, o chamado “deserto branco”, os arcos formados por rochas e milhões de anos de erosão, um ou outro rebanho de cabras e respectivos pastores, alguns camelos. E um silêncio fascinante. Aqui e ali, havia tendas beduínas pontilhando a paisagem, pertença daqueles que ainda preferem a tradição à modernidade e não trocam o chão de areia pela televisão na aldeia. Como o velho Ali, tio de Mehedi.
Quando entrei na sua tenda, a convite do sobrinho, recebeu-me com um forte aperto de mão, um tímido sorriso e muito chá a acompanhar duas latas de atum e pão beduíno. As mulheres desapareceram para a zona privada da tenda, separada da área comum por mantas coloridas dependuradas a toda a largura da tenda, e não mais se mostraram. Nada havia para além de umas cobertas e almofadas no chão, dispostas em “U” em torno de uma fogueira em brasas, onde se ferveu água para o chá. O resto era ar, simpatia e hospitalidade genuína. A família de Ali poderia viver numa das muitas casas da aldeia, mas é naquele rectângulo preto e branco, sem conforto, água ou electricidade que o velho beduíno se sente bem. Pudesse Ali escolher e talvez os barcos nem trouxessem turistas de Nuweiba.
O projecto Cairo - Teerão foi uma viagem terrestre pelo Médio Oriente, com a duração de três meses. Teve início no Cairo, capital do Egito, e término em Teerão, capital da República Islâmica do Irão. As crónicas foram originalmente publicadas no suplemento Fugas do jornal Público.
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