
Calor abrasador. Badgirs para ventilar. Um oásis com pouca água e tâmaras deliciosas, mais casas de lama e pedra com lama e palha. Batentes para homens e mulheres numa sociedade dividida por género. Narizes elegantemente afunilados em Teerão. Desencontros. Últimas paragens da minha viagem pelo Médio Oriente.
Maziyar Ale Davood parece um homem de Neandertal. Pelo menos foi essa a impressão com que fiquei ao olhar para uma foto sua no site da Ateshooni, uma velha casa familiar transformada em guesthouse no oásis de Garmeh. A sua expressão tem o seu quê de magnética, algures entre o hippie e o tresloucado, o artista e o vagabundo. Queria conhecê-lo, a si e ao projecto turístico que colocou Garmeh na rota dos viajantes independentes.
Um vagaroso autocarro chegou a Khur após quase oito horas de viagem e uma tempestade de areia que, a espaços, parecia colocar um cortinado de tule entre a janela e a paisagem. Ao verem-me descer, os taxistas sabiam de antemão que ia para casa de Maziyar, porque instalar-se na Ateshooni é o que fazem os poucos viajantes que passam por Khur. Até porque não há alternativas. Ou melhor, porque a casa e o seu proprietário são o motivo da viagem – só depois vem o oásis. Negociei um táxi, percorri os trinta e tal quilómetros rumo a Garmeh, cheguei de noite. Na Ateshooni, esperava-me um jantar fora de horas e a simpatia do pai de Maziyar. Do filho, artista plástico, músico, homem de mil ofícios e muita criatividade, nem sinal. Tinha ido à capital Teerão. O encontro ficava adiado.
Dizem que a aldeia de Garmeh é habitada há pelo menos quatro mil anos. As casas, todas as casas, são construídas de tijolos e lama, com uma camada de lama e palha no exterior. Assim se controlam as temperaturas extremas do deserto. Tudo é cor da terra, harmonioso como há séculos. As palmeiras do oásis são a excepção na paleta de cores. O minarete da mesquita parece fora do contexto. Há tâmaras, muitas tâmaras. E paz, silêncio, céu estrelado, hospitalidade iraniana no seu melhor. Pena nos meses de Verão fazer um calor infernal. Era o caso. Fugi do oásis, parei em Yazd, mas a temperatura não baixou.
Yazd é o maior centro urbano da região. Entre as onze da manhã e as seis da tarde, era quase impossível não vegetar debaixo de um ar condicionado a todo o vapor. Assim houvesse electricidade. As ruas de Yazd permanecem fechadas, as lojas vazias, ninguém se atreve. Só ao anoitecer o ar fica menos sufocante e os termómetros baixam, condescendentes, dos quarenta graus. É o período do dia em que Yazd mostra, ainda que timidamente, a sua face de princesa do deserto. Linda mas recatada. Muito conservadora. Para se ir descobrindo. Aos poucos. O centro histórico povoado de casas de cor de terra, feitas de terra, com cheiro a terra, gente da terra, poucos forasteiros.
Um labirinto de ruelas com os omnipresentes badgirs no topo das casas, sistemas de refrigeração ancestrais inventados para tornar Yazd minimamente habitável. Batentes distintos para homens e mulheres, numa sociedade onde seria inadmissível uma mulher abrir a porta a um visitante masculino. Um bazar curioso, com tâmaras, melancias, meloas, chás diversos, muitos sumos. O refrescante Museu da Água, onde se pode conhecer o engenhoso sistema de canais que trazia água das montanhas até à cidade. E as “Torres do Silêncio”, utilizadas nos ritos fúnebres dos seguidores de Zaratrusta, onde os corpos sem vida eram deixados ao ar livre para se decomporem naturalmente e assim evitar a poluição do solo e do ar. Tudo rodeado por uma enorme planície desértica e uma linha montanhosa avistada do alto das “Torres”.
Última paragem: Teerão
Pouco depois de chegar a Teerão, fui até ao chamado Ghandi Shopping Center, na Avenida Ghandi. É um local sociável, com vários cafés e restaurantes em torno de um pátio ao ar livre frequentado por iranianos jovens e liberais. Conversam, flirtam, bebem chá. Numa mesa do Axon Coffee Shop, um desses cafés, estava Nasir, uma jovem com quem haveria de fazer caminhadas nas montanhas em redor de Teerão, um escape ideal para a poluição sufocante da capital. Nasir estava com um grupo de amigos acabados de regressar de uma viagem ao Azerbaijão. Trocavam fotos, partilhavam memórias recentes.
Eram do norte rico da cidade, facto evidente pela elegância das roupas, pela maquilhagem perfeita das mulheres, pelos véus colocados tão atrás que deixavam boa parte do cabelo à mostra, pelo simples facto de estarem ali, um local onde uma limonada custa quatro euros e meio. Teerão divide-se, aliás, como um degradé social: tanto mais pobre e popular quanto mais para sul, mais abonada e elegante à medida que se caminha para a parte alta da cidade, a norte, em direcção às montanhas. E isso nota-se nas pessoas, nas viaturas, nos cafés e restaurantes, nos prédios de habitação, em mulheres como Fai. Era uma jovem coquete que em toda a sua vida tinha ido apenas uma vez ao popular bazar de Teerão, no sul. Como sugestão de almoço levou-me ao Gilac, um fantástico restaurante com gastronomia gourmet, um chef atencioso, porções equilibradas, apresentação requintada e preços a condizer. E tinha um nariz perfeito.
Com os longos cabelos cobertos por véus e os seios, as pernas, a cintura e o rabo tapados por túnicas assexuadas, as belíssimas mulheres iranianas investem – e muito – em tornar vistosas as únicas partes do corpo realmente expostas ao mundo: a cara e as mãos. Maquilhagem exagerada é habitual. Unhas bem cuidadas também. E proliferam narizes retocados por mãos de artistas que fazem de Teerão uma das capitais mundiais das cirurgias plásticas. A toda a hora se vêem mulheres caminhando com adesivos colocados ao longo da cana do nariz, sinal pós-operatório de uma cirurgia à protuberância facial. Ninguém se resguarda em casa após uma cirurgia plástica; pelo contrário, expõem-se mais do que nunca, por vaidade, pelo estatuto social que os adesivos representam, pelos quatro ou cinco mil dólares que custa o aperfeiçoamento estético nos melhores especialistas de Teerão.
Pela minha parte, compreendo que muito se invista na auto-estima. Mas continuo mais atraído pela simplicidade e rudeza dos habitantes de lugares pequenos. Bem vistas as coisas, com a viagem pelo Médio Oriente a chegar ao fim, talvez até tenha sido bom que Maziyar Ale Davood não estivesse em Garmeh. Já tenho pretexto para voltar.
O projecto Cairo - Teerão foi uma viagem terrestre pelo Médio Oriente, com a duração de três meses. Teve início no Cairo, capital do Egito, e término em Teerão, capital da República Islâmica do Irão. As crónicas foram originalmente publicadas no suplemento Fugas do jornal Público.
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