Todas as noites, centenas de turistas e peregrinos sobem ao Monte Sinai para, amontoados no seu cume, rezarem ou assistirem ao nascer de um novo dia. Eu achei a imagem aterradora e, em vez disso, empreendi um longo trekking pelas montanhas em redor da aldeia de Santa Catarina acompanhado por um guia beduíno. Subi mais alto, dormi em ecolodges e “jardins” beduínos, percorri trilhos de burros e camelos e acabei de pernas esgotadas. O primeiro grande momento desta viagem.
Mohamed Saad nasceu no Cairo há apenas 22 anos. Cursou sobre relações e comércio internacionais e, uma vez terminados os estudos, tinha ofertas de emprego na capital. Seria bem pago, iniciaria uma carreira promissora na área das importações e exportações, seguiria o percurso aprovado pela família. Até que uma viagem escolar à península de Sinai mudou o rumo da sua vida: “Assim que passei por Santa Catarina, soube que era aqui que queria ficar”. E assim fez.
Quando cheguei à pequena aldeia de Santa Catarina, após uma longa jornada de autocarro desde o Cairo, Mohamed estava à minha espera. A escuridão tinha já tomado conta dos céus e havia pouca gente nas ruas mal iluminadas. As mercearias ainda estavam abertas e só havia homens nas ruas. Sem tempo a perder, seguimos para um recém-inaugurado ecologde perdido entre a aridez das montanhas em Wadi Bebel, bem afastado do bulício em torno do bíblico Monte Sinai, cujo topo atrai viajantes e peregrinos de todo o mundo.
Segundo a tradição, teria sido ali que Moisés recebeu as Tábuas da Lei com os Dez Mandamentos, princípios basilares do judaísmo e do cristianismo. É, por isso, uma enorme atracção turística e religiosa. Todas as noites, centenas de pessoas empreendem a árdua subida até ao cume com o objectivo de assistirem ao nascer do sol envoltos numa paisagem deslumbrante, dispararem os seus flashes e – ao que consta – aplaudirem o astro-rei. Outros seguem em peregrinação a tão sagrado local, para rezarem ou pagarem promessas antes de visitarem, pela manhã, o imponente Mosteiro de Santa Catarina, edificação ortodoxa construída no sopé do Monte Sinai e protegida pela UNESCO.
Ora, a ideia de centenas de pessoas amontoadas no cume de uma montanha aguardando o nascer do dia pareceu-me aterradora, pelo que optei por passar as noites em “jardins” e ecolodges geridos por beduínos, longe das multidões, num longo trekking que propositadamente evitou o Monte Sinai. Faraj bebia um delicioso chá de habag – hortelã – quando cheguei de jeep ao ecolodge.
Faraj é um beduíno gebeliya. Tem 38 anos, mas aparenta mais sete ou oito (talvez seja da pele enrugada e tingida de negro pelo sol inclemente da península de Sinai, talvez pela vida árdua nas montanhas). A sua casa fica a “dois dias de camelo” de Santa Catarina. Quando o encontrei pela primeira vez, envergava um belo shmagh azul claro, o lenço com que os beduínos tapam a cabeça, que nunca tirou. Seria o meu guia durante o trekking por trilhos íngremes e tortuosos dos vales e montanhas sem segredos – para ele – da região de Sinai.
O primeiro dia foi duro. Seguimos pelo Wadi Arbain até ao “jardim” de Ramadan, com várias casinhas muito simples construídas ao estilo tradicional beduíno, com pedra e lama no lugar do moderno cimento. Ramadan era robusto, talvez nos seus quarenta e muitos, e tinha uma família numerosa. O “jardim” estava bem cuidado. Havia oliveiras, algumas árvores de fruto e até uma plantação de legumes perfeitamente alinhados e profusamente regados, polvilhando de verde escuro a paisagem amarelada de Wadi Arbain. Faraj sugeriu que descansasse. Foi quando olhei para cima e percebi porquê: estava no sopé de Shagg Musa e, logo atrás, já se vislumbrava o Monte Santa Catarina, a mais alta montanha do Egito.
Com o coração em ritmo acelerado, empreendemos a subida, lentamente, por um trilho que ziguezagueava encosta acima, íngreme e pedregoso. Não havia sombras. O jovem Mohamed estava vermelho do esforço e suava em bica. Eu sentia as pernas e os joelhos a cada passada. Faraj fumava como se nada fosse. À medida que a altitude ia aumentando, a paisagem tornava-se cada vez mais avassaladora. Tudo muito árido, vales prisioneiros de montanhas a perder de vista, um deserto de gente, pouca vida. Mas deslumbrante. Quando por fim chegámos ao topo de Shaag Musa, a pequena capela branca no cume do Monte Santa Catarina tornou-se visível. Foi então que começámos a descer por um riacho sem água, rumo ao ecolodge Zaiweteen, construído em torno de um tradicional “jardim” beduíno habitado por um simpático velho Gebeliya.
À noite, em volta de uma fogueira, Faraj e outros beduínos decidiram fazer pão. Amassaram farinha e água, espalmaram pedaços da massa sobre um testo circular colocado directamente sobre o lume e, um a um, deliciosos pães finos de forma redonda iam ficando prontos para as próximas refeições, quase sempre compostas por pão, tomate, pepino, queijo, enlatados de atum e o obrigatório chá de habag.
O dia mais extenuante tinha ficado para trás mas, ainda assim, iríamos precisar de todas as energias para subir ao inacabado palácio otomano de Abbas Pasha, uma edificação construída num promontório a partir do qual se avista a aldeia de Santa Catarina e todas as montanhas em redor. Cruzámo-nos com um imenso grupo de cameleiros e suas cargas, descemos Wadi Tinya, passámos vários “jardins” com plantações diversas e pelas “piscinas” de Kharazat el Shaq, até que chegámos ao ecolodge do Dr. Ahmed, homem sapiente que utiliza o seu agradável espaço para partilhar com a comunidade local de beduínos ensinamentos sobre o valor medicinal das plantas locais.
Na tarde do último dia de trekking, quase sempre em terreno descendente, passámos por uma dessas comunidades beduínas, Sheikh Awad. No seu parco inglês, Faraj explicou que muitas aldeias ainda se regem por leis próprias, com todas as contendas a serem resolvidas dentro da comunidade. A pena máxima para um beduíno é a expulsão da tribo, mas raramente isso acontece – um beduíno expulso torna-se um ser “perdido no deserto”.
De volta à aldeia, visitei o Mosteiro de Santa Catarina pela manhã. Encontrava-se de portas fechadas, mas deixaram-me entrar por misericórdia durante breves minutos, apenas o suficiente para absorver a ambiência. Para lá das grossas paredes de granito vermelho, velhas senhoras em bicos de pés tentavam arrancar galhos secos de uma planta espinhosa junto a uma fonte sagrada. A maior parte das pessoas era idosa e muitas trajavam de negro. Não havia muito espaço para circular nas estreitas passagens do mosteiro.
Lá fora, um grupo de peregrinos nigerianos descia as encostas do Monte Sinai depois de uma noite passada ao relento. Alguns turistas regressavam com sacos-cama e roupas quentes com que suportaram o frio no cume: muitos jovens mochileiros, alguns excursionistas reformados seguramente europeus, grupos de egípcios de todas as idades. Um par de cameleiros aguardava já a nova fornada diária de visitantes incapazes de subirem sem auxílio. No meio de alguns autocarros de turismo, olhei o Monte Santa Catarina ao longe, sobranceiro, e vi-me de novo no alto de Shagg Musa, praticamente sozinho e imensamente feliz. Sacudi os músculos das pernas e entrei numa carripana rumo ao litoral. Já o carro tinha arrancado quando vi Mohamed acenar pela última vez.
O projecto Cairo - Teerão foi uma viagem terrestre pelo Médio Oriente, com a duração de três meses. Teve início no Cairo, capital do Egito, e término em Teerão, capital da República Islâmica do Irão. As crónicas foram originalmente publicadas no suplemento Fugas do jornal Público.
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