
Quando planeei o meu roteiro de viagem no Sri Lanka, uma das coisas que queria fazer no sul do país era fotografar os pescadores que se dependuram em estacas de madeira para pescar. É uma das imagens mais icónicas do Sri Lanka, ao ponto de servir de capa para guias de viagem dedicados ao antigo Ceilão.
Chegado a Galle, conversei com o simpático casal que me acolheu em sua casa, indagando sobre locais onde seria possível ver e fotografar os pescadores tradicionais do Sri Lanka sem nórdicos ou japoneses empoleirados, eles próprios, nas estacas dos pescadores.
Estava, pois, avisado do circo em que alguns locais outrora dedicados à pesca se tinham tornado, com os pescadores a pedirem dinheiro para se deixarem fotografar. O que eu não sabia é que isso era o normal nos dias de hoje. Pensei que haveria mais pescadores autênticos, mesmo na época alta do turismo. Enganei-me.
À procura dos (autênticos) pescadores do Sri Lanka
Os meus anfitriões – ele oriundo de Colombo, ela de Galle – aceitaram levar-me a locais onde, pensavam eles, seria possível ver e fotografar os pescadores a pescar em estacas. Saímos de Galle e fomos perscrutando a costa sul até avistarmos pescadores (a estrada segue junto à costa).
A primeira paragem foi na praia de Koggala. Um autocarro de turismo acabado de estacionar denunciou os momentos seguintes (na verdade, denunciou tudo o que eu veria nesse fim de tarde). Estacionámos o carro, atravessámos a rua para o início do areal, e fomos imediatamente abordados por um pescador a pedir dinheiro para poder fotografar. E não era pouco: “1.000 rupias para tirar todas as fotos que quiser” (mais de 5€). Obviamente, recusei. O pescador funcionava como uma espécie de porteiro, e só faltava barrar a passagem a quem não pagasse.
Nas estacas, dois ou três pescadores fingiam pescar, de cana em riste. O seu olhar não estava preocupado com a pescaria; antes, tentavam encontrar prevaricadores entre os que não pagaram para fotografar. O contra-luz estava perfeito, estava roído por dentro com a frustração, mas a minha máquina fotográfica manteve-se imóvel. É uma questão de princípios.
Eu fui andando pelo areal, sem fotografar, enquanto o pescador-porteiro me foi seguindo, desconfiado, para garantir que eu não fotografava. Ao invés, o grande grupo de turistas não foi incomodado – o pagamento estava naturalmente já acertado com o operador turístico.
O casal cingalês estava estupefacto; não sabia que os pescadores cobravam pelas fotos. “Vamos mais para a frente, há muitos pescadores”. Queriam crer que seria só ali, em Koggala; estavam certos que haveria lugares em que os pescadores sobre estacas do Sri Lanka estariam… a pescar.
Prosseguimos, parando em mais quatro locais onde vimos homens pendurados nas estacas, com canas de pesca na mão. Em todos eles, havia um pescador em terra que, assim que alguém se aproximava, pedia dinheiro para que lhe fosse permitido fotografar os dois ou três pescadores pendurados nas estacas (a fingir que estavam a pescar). E o preço era sempre o mesmo: 1.000 rupias.
Às tantas, já nem parávamos – bastava ver o pescador da estrada, tipo guarda, à espera de turistas, para perceber que os pescadores, provavelmente, nem a pescar estariam. Uma e outra vez. Até que, com o sol quase a pôr-se, desistimos.
Foi uma dor de alma.
Pagar ou não pagar para fotografar
Por muito que quisesse ter fotos dos pescadores, recuso-me a entrar neste jogo que subverte a lógica das coisas. É certo que era a época alta do turismo na costa sul do Sri Lanka; e que, provavelmente, os pescadores fazem mais dinheiro a deixar-se fotografar do que a pescar (e nem sempre podem pescar). É também evidente que toda a gente tem direito a ter uma vida melhor; e que, se o rendimento da atividade de “modelo fotográfico” é mais rentável do que a pesca propriamente dita, é difícil criticar os pescadores.
Mas, por outro lado, é constrangedor vê-los participar naquela farsa, fingindo pescar para gáudio dos turistas que porventura nem se apercebem que estão a ser enganados.
Para que fique claro: o que me parece discutível não é o facto de os pescadores quererem ganhar dinheiro com o turismo. É a falta de consciência que, a prazo, essa opção é uma má aposta (os turistas procuram autenticidade); isso e o facto de muitos turistas entrarem no jogo (talvez sem saberem, reconheço).
Na minha ótica, este é um exemplo típico do lado mau do turismo. Aquele que fomenta o fim das tradições, que deturpa, que contamina a alma dos lugares. E isso é muito triste. Além de que, a médio prazo, é um suicídio. Qualquer dia, deixando de haver verdadeiros pescadores em estacas; perdendo-se a identidade que torna aquele destino único e apetecível; perdendo o lugar a sua alma, o turista perderá interesse naquelas praias e procurará outros lugares, digamos, mais autênticos.
Por outro lado, alimentar o negócio das fotografias é contribuir para retirar os pescadores da sua atividade natural, a pesca. No fundo, é contribuir para o fim daquilo que se admira. E isso, acontecendo, repito, seria muito triste. Porque os pescadores sobre estacas do Sri Lanka são um património verdadeiramente único, que deveria ser preservado.
Se cada destino abdicar da sua alma, cultura e tradições; se abdicar, no fundo, daquilo que o torna único, o mundo transformar-se-á num McDonald’s gigante.
Por tudo isso, por muito que quisesse ter fotos dos pescadores do Sri Lanka – e era um dos grandes objetivos da passagem pelas praias do Sri Lanka -, recusei-me a entrar no jogo. Talvez tenha feito mal; talvez tenha perdido uma oportunidade de ouro, mas não me sentiria bem se tivesse sido conivente.
Note que esta foi a minha experiência. Talvez haja outros lugares na costa sul do Sri Lanka onde os pescadores se dediquem apenas à pesca e não atuem desta forma junto dos turistas; mas, naquela tarde, isto foi o que vi e senti. Veja também o que fazer em Galle.
Guia prático
Como chegar às praias
É muito difícil andar de praia em praia à procura dos pescadores sobre estacas usando transportes públicos. Recomendo, por isso, que alugue uma scooter ou pergunte na sua pousada por alguém que o possa levar de carro por um preço justo.
Onde ficar
Galle é uma boa base para ver os pescadores sobre estacas do Sri Lanka. Eu fiquei hospedado numa pequeníssima homestay chamada Leisure in Galle e recomendo a estadia para quem dispensa luxos ou quer poupar dinheiro nos hotéis.
De resto, não faltam excelentes pousadas e hotéis boutique dentro do forte de Galle – a localização é perfeita -, mas são mais caros do que noutras áreas de Galle. Se estiver disposto a pagar esse extra, o The Bungalow – Galle Fort, o Khalid’s Guest House e o Le Jardin du Fort são excelentes opções.
Um pouco mais afastado do centro de Galle, eis duas outras sugestões extraordinárias (não necessariamente baratas) para se alojar em Galle: Ginganga Lodge e Indika’s Residence. Para outras opções de alojamento, conheça os melhores hotéis de Galle no link abaixo.
Seguro de viagem
A IATI Seguros tem um excelente seguro de viagem, que cobre COVID-19, não tem limite de idade e permite seguros multiviagem (incluindo viagens de longa duração) para qualquer destino do mundo. Para mim, são atualmente os melhores e mais completos seguros de viagem do mercado. Eu recomendo o IATI Estrela, que é o seguro que costumo fazer nas minhas viagens.
De acordo com suas razões para não fotografar. Todo o encanto e sentido da foto se perde.
Tive uma experiência parecida no Peru, com frequência abordavam-me para eu pagar para lhes poder tirar fotografias, e sempre me recusei. Chegou ao ponto de quererem tirar fotografias comigo, dizendo que não queriam dinheiro, eu insisti que não queria, e quando estava a tirar fotos com amigos um dos locais juntou-se e depois tentou cobrar dinheiro. É a falta dessa autenticidade a que me recuso também, não me importo de pagar se for algo que é autêntico e parte do quotidiano deles, mas para pagar para tirar fotos falsas estilo postal, mais vale simplesmente dar esse dinheiro a troco de nada.
Em Angola recusámos pagar para tirar fotos com mumuilas. E gerou-se uma confusão à nossa volta.
Hoje aproveitando a boa internet dum terminal de autocarros via uns blogs de viagem chocada. Era sobre as Bahamas, e vê-se o guia alimentar as iguanas e os tubarões para os atrair até os turistas. Incomoda-me que bloggers filmem isto e achem normal esta exploração do animal que roça o mau trato. Até dizia o guia para tocar no tubarão que não há problema. Choca-me agências de turismo e hotéis já só divulgarem este tipo de imagens dos seus países.
Esperemos que melhores tempos venham.
Parabéns pelo texto Filipe. Acho muito importante alguém que tem a influência que tu tens no mundo das viagens ponha o dedo nesta “ferida”. A Sofia escreveu um texto há algum tempo atrás sobre esta mesma problemática que gostaria que lesses: https://viagensasolta.com/dos-birmaneses/
Até agora, são raros os destinos por onde temos passado que não tenham este tipo de encenações. Haverá alguém que não fique chocado ao perceber que os pescadores do lago Inle (Myanmar) afinal são apenas modelos fotográficos e que nem sequer pescam?
Eu tenho uma atracção fatal por fotografar pescadores, dos que saem da Praia Velha de Paço de Arcos (https://mocambiqueeporai.blogspot.com/2016/07/a-pesca-em-paco-de-arcos.html), aos que pescam na Macaneta ou em Vilanculos, em Moçambique (https://mocambiqueeporai.blogspot.com/2017/10/babbysitting-e-dias-de-descanso-em.html). Mas acho que do Sri Lanka também teria vindo sem fotos.
A sustentabilidade das atividades e modos de vida tradicionais efetivamente deveria ser uma preocupação nesses contextos onde essa alma ainda está presente mas infelizmente esses contextos estão habitualmente em regiões pobres, com recursos escassos, que escaparam à lógica McDonald’s mas que estão a braços com surtos de turismo “interessado” em autenticidade e genuinidade mas eles próprios integrados em lógicas que pouca preocupação têm para assegurar esses mesmos valores. São os sinais destes tempos. Efetivamente turismo sustentável nesses locais deveria significar poucas cargas, criação de valor nas regiões, formas contributivas de contribuir para a salvaguarda desses valores… entre outras medidas que se poderiam implementar. Mas o turismo na maior parte das vezes não se compadece com estas preocupações e depois temos essas situações que no fundo é cada um a tentar aproveitar a circunstância, o que da parte dos pescadores é a parte menos apontável, pois se com os parcos recursos que têm vêm toda a gente a tirar proveito de si, obviamente este é o caminho mais previsível. Se a sua atividade fosse rentável não cederiam a essa tentação. Compreensível.
Realmente, é uma situação triste… tradições que se perdem (sim, porque esta, mais tarde ou mais cedo vai acabar por morrer) por se aliarem ao negócio de modelo fotográfico.
Não, assim não funciona… acho que foi a melhor opção (recusar), pois eu também teria feito o mesmo. Aliás, já o fiz em situações semelhantes noutros lados.
Com as devidas proporções, “nós” também caminhamos para uma descaracterização dos nossos costumes…
Pastéis de bacalhau com queijo da serra? Pastéis de nata com chocolate?
Por favor, “não mexam” no que está bem…
É a inovação, minha cara.
Boas,
Fizeste muito bem. Gostamos de fotografar a realidade o tradicional não encenado.
Para isso criamos os cenários e contratamos os modelos.
Eu faria o mesmo.