Na República Islâmica em que o Irão se tornou, o negro de vultos quase anónimos toma conta das ruas, dos mercados, dos savaris, até da terra batida entre as casas trogloditas de Kandovan e das aldeias montanhosas do norte do Irão. Um país cheio de vida e cor escurecido por decreto, foi o que vi nos primeiros dias em solo iraniano.
As ruas perderam cor. As mulheres passam por mim embrulhadas em chadores totalmente pretos, longos mantos negros que escondem quase tudo e as tornam vultos quase anónimos, quase nada, quase ninguém. Chegara ao Irão. Ou melhor, à República Islâmica em que o Irão se tornou. Um país de poetas e artistas, um povo alegre e sábio, hospitaleiro como poucos, gente com vidas coloridas cobertas de noite.
Apeei-me em Tabriz ao início da tarde, vindo de uma paragem em Orumiyeh, vindo do Iraque, vindo de longe. Dei uma volta pelo bazar para fugir ao calor e fui falar com Nasser Khan, personalidade multilingue que dirige com mestria o posto de turismo de Tabriz. Pretendia dicas sobre o norte do país, zona de montanhas e castelos, nómadas e plantações de chá. Pouco depois, entrou Vanessa, uma brasileira morena de ar doce com o seu namorado alto e louro de origem belga. Estavam a meio da uma viagem à volta do mundo com duração prevista de um ano. Ou “até que o dinheiro se acabe”. Nessa tarde, pretendiam visitar Kandovan. A acompanhá-los, uma iraniana nos seus trinta e poucos anos, professora universitária em Tabriz, muito crítica do regime vigente e, como tal, “perseguida” por ter opiniões contracorrente. Antes de entrarmos no táxi, segredou-me num inglês perfeito: ”não digas a ninguém que sou iraniana”. Logo a seguir, tirou a bateria do telemóvel “para não ser localizada”. Seguimos viagem.
De Kandovan dizem ser a Capadócia iraniana, versão miniatura. Exagero, talvez, até porque lhe falta a envolvente deslumbrante da incomparável maravilha turca. Mas a verdade é que a povoação é deliciosamente desengonçada, com casas trogloditas incrivelmente fotogénicas e, muitas delas, ainda hoje habitadas. Na base do vilarejo existem lojinhas de souvenirs instaladas em edifícios feitos de materiais comuns, mas encosta acima tudo o que se vê são enormes formigueiros de térmitas feitos casas escavados na rocha. O cenário é invulgar e encantador. Voltámos a Tabriz, jantámos juntos, a bateria regressou ao telemóvel.
Desloquei-me até uma larga avenida no extremo leste da cidade. É o local informal de onde partem os savaris para Ahar e Kaleybar. Os savaris são táxis partilhados mais práticos e rápidos que os autocarros e muito mais baratos que os táxis privados. Levam quatro passageiros e só partem quando a lotação estiver completa. É o meio de transporte por excelência no norte do Irão, mas de Tabriz quase não havia quem seguisse a rota para Kaleybar, uma pequena aldeia montanhosa colocada no mapa pela proximidade de um castelo chamado Babak. Eu era o primeiro, não havia ninguém à espera. Quase duas horas depois, apareceu o quarto passageiro e lá partimos.
Kaleybar é um lugar pequeno. Tem um hotel e uma quase pousada sem luxos nem glória. Nada mais. O recepcionista do hotel garantiu-me que estava full, que não tinha quartos, apesar de não se ver qualquer turista nas redondezas. Hospedei-me na quase pousada e fui caminhar. Pouco depois já conhecia o padeiro, o puto da mercearia, os taxistas da aldeia, o adolescente do coffeenet, o tio do puto da mercearia que tinha um restaurante “já ali” e até um grupo de homens que velava a morte de um familiar. Estavam todos vestidos de preto e sentados numa mesa de madeira colocada no passeio – qual esplanada improvisada -, e havia fotocópias com uma fotografia do rosto do falecido à porta. Notei que tinha bigode e um olhar indiferente, como se tivesse tirado a foto para aquela ocasião.
Os familiares instaram-me a sentar, ofereceram-me chá, conversámos com ajuda de um phrasebook em farsi. Falei-lhes do meu interesse em conhecer o Castelo Babak e, apesar do funeral decorrer daí a um par de horas, pouco depois estávamos num carro com destino ao início do trilho que leva ao castelo. A estrada era espectacular, serpenteando montanha acima e com vistas magníficas sobre o vale onde Kaleybar cresceu. Lá em cima, seguíamos a pé rumo ao castelo quando um telefonema avisava do início das cerimónias fúnebres. Voltámos à aldeia, apressados. Despedi-me, fui comprar uma meloa e partilhei-a ali mesmo com o dono da mercearia. Em menos de nada, estava a ouvir lamentos sobre a política actual do Irão, a dificuldade em arranjar emprego, a inutilidade de estudar face a esse cenário, a vontade de sair do país – todos os jovens sonham em sair do Irão.
Prossegui viagem numa estrada muito cénica até Ardabil, de onde seguiria para a pitoresca Masuleh. Até Ahar, avistei acampamentos de famílias nómadas, com tendas rectangulares brancas e grandes rebanhos de ovelhas. A partir de Meshgin Shahr, os cumes brancos do imponente monte Sabalan fizeram-se convidados para o cenário. Pela janela de savaris e autocarros passaram Ardabil, Astana e o litoral do Mar Cáspio, até que o autocarro virou para Fumam e um último savari deixou-me às portas de Masuleh.
É uma aldeia peculiar, Masuleh. Está construída numa encosta tão íngreme que os topos de umas casas servem de pátio para as habitações imediatamente acima. Predominam as cores da terra, com ruelas e escadarias com declives acentuados, um pequeno bazar com mercearias, lojas de artesanato, algumas casas de chá e restaurantes que pouco mais servem que kebabs, numa envolvência montanhosa. Instalei-me numa casa privada alugada ao dia junto à mesquita da aldeia. Entre a casa e a mesquita havia um pátio, lápides horizontais colocadas com cimento no pavimento, e fotos e nomes de conterrâneos falecidos.
O pátio – e as lápides – era ponto de passagem. À noite havia velas à minha porta. Estava literalmente a viver no cemitério. Refugiei-me do calor na sombra de uma casa de chá e pouco depois estava à conversa com um activista que já esteve preso dezenas de vezes por afrontar o regime. Mohammed – chamemos-lhe assim – foi expulso da universidade, não pode voltar a estudar e não arranja emprego porque ninguém se atreve a empregá-lo. Mas não quer sair do país como exilado político, apenas anseia pelo dia da mudança: “Não queremos uma revolução, queremos um referendo”. Que torne as ruas do Irão mais coloridas.
O projecto Cairo - Teerão foi uma viagem terrestre pelo Médio Oriente, com a duração de três meses. Teve início no Cairo, capital do Egito, e término em Teerão, capital da República Islâmica do Irão. As crónicas foram originalmente publicadas no suplemento Fugas do jornal Público.
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