Tenho frequentemente pensado em viajar no Quirguistão e nos seus vizinhos da Ásia Central mas, por um motivo ou por outro, ainda não me foi possível concretizar esse projeto de viagem antigo. Foi, por isso, com grande entusiasmo que desafiei os meus amigos Eduardo Madeira (texto) e Tiago Costa (fotos), da agência Nomad.pt, a partilharem no Alma de Viajante um pouco da sua recente viagem às montanhas Tien Shan, no Quirguistão. Eis o seu testemunho.
Uma aventura nas Tien Shan
A ideia de atravessar a mais extensa cadeia montanhosa da Ásia Central surgiu um ano antes.
O apelo pela evasão conduz-me muitas vezes a latitudes distantes, lugares com o potencial de desafiar os meus limites. Já perdi a conta às horas passadas a estudar mapas, às dezenas de cadernos rabiscados com notas de possíveis itinerários, às infinitas conversas a fantasiar com aventuras capazes de rivalizar com as histórias dos repórteres da National Geographic.
Foi numa dessas conversas cruzadas que os meus olhos se fixaram na fronteira entre o Quirguistão e a província chinesa de Xinjiang.
Numa primeira investigação, descobri que nesta região se erguem as majestosas Tien Shan – conhecidas entre os locais como Montanhas Celestiais ou Montanhas dos Deuses – uma imensa cordilheira composta por inúmeros cumes acima dos seis mil metros, glaciares capazes de alimentar lagos de vários quilómetros, florestas alpinas trespassadas por rios ferozes e “habitadas” por pastores nómadas, que conservam tradições e costumes ancestrais.
Seguiram-se vários meses de literatura sobre a região; pesquisas intensivas no Google Earth; jantares com mapas sobre a mesa a debater possíveis rotas.
Karakol
Porta de entrada para a maioria das caminhadas na região, Karakol é uma cidade com poucos motivos de interesse à partida. A maioria dos viajantes que aqui chega não se demora.
De facto, turisticamente Karakol tem poucos motivos de interesse. Exceção à Catedral Ortodoxa – construída no século XIX pelos primeiros russos que ocuparam a região – e ao mercado semanal de gado, que todos os domingos ocupa o zona oeste da quarta maior cidade do Quirguistão.
No entanto, a capital do distrito de Issyk-kul revela-se aos viajantes sem pressa. A simplicidade do quotidiano; os decadentes prédios soviéticos; os parques da cidade que ao final da tarde se enchem de jovens universitários; os restaurantes quirguizes que se confundem com os estabelecimentos chineses e russos; as estátuas do antigo regime e os grandes edifícios estatais. Karakol é cinzenta, mas é um espelho fidedigno de um país que procura no passado respostas para um futuro mais colorido.
Leia também: Quirguízia: a alta-montanha para todos.
Os Alpes da Ásia
Partimos de Karakol numa manhã de chuva. As nuvens negras cobriam por completo os céus escondendo os cumes nevados das Tien Shan. A previsão meteorológica não era animadora e a frustração começou a invadir o nosso espírito. Afinal, sonhávamos com aquelas montanhas há vários meses e a ideia de percorrê-las debaixo de uma tempestade tremenda parecia cada vez mais real. “Não se preocupem, nas montanhas o tempo muda muito depressa. Agora chove, mais logo faz sol”, explicava-nos um taxista na tentativa de nos alegrar.
Após duas horas de carro, chegávamos finalmente ao início do trilho. Aguardavam-nos oito dias de mochila às costas pelas montanhas Tien Shan. O plano era simples: ligar o vale de Kyzylsul – uma região remota a oeste de Karakol – ao emblemático Lago Ala-kul.
Debaixo de um céu ameaçador partimos, pé ante pé, vale acima. Rapidamente o terreno árido deu lugar à verdejante floresta. Intacto, sem vestígios de humanidade, o vale de Kyzylsul é um verdadeiro santuário alpino, onde pinheiros gigantescos e rios ferozes enchem a paisagem por completo. Ao longe, as majestosas montanhas cobertas de neve davam um ar da sua graça, à medida que as nuvens se dissipavam. “Parecem os Alpes há 100 anos ou, talvez, 300”, alguém sugeriu.
A chuva miúda teimava em não parar e decidimos montar acampamento na margem de um grande rio, junto a uma antiga estação meteorológica. Na outra margem, um enorme yurt de pastores quirguizes destacava-se na paisagem.
A manhã seguinte despertou solarenga e as Tien Shan revelaram-se em todo o seu esplendor pela primeira vez. Parecia que o presságio do taxista, no dia anterior, estava correcto.
Curiosos, decidimos “bater à porta” do yurt dos pastores nómadas – os guardiões das montanhas – que acampavam na outra margem do rio.
Pastores nómadas das Tien Shan
Económica e culturalmente dependentes dos seus animais, os pastores quirguizes continuam a levar uma vida nómada. No inverno habitam as aldeolas do sopé da montanha. No verão – com as suas famílias, animais e pertences – sobem os vales em busca de pastos frescos para o gado.
Com uma estrutura social assente na família, a tradição nómada tem vários séculos de história. As crianças começam desde cedo a lidar com os animais e a ajudar nas tarefas diárias do acampamento. É comum ver miúdos a cavalgar em enormes cavalos ou a aprender a arte do pastoreio com os seus pais. Uma arte que passa de geração em geração e que, apesar dos avanços civilizacionais, continua a perdurar no tempo.
Tal como nesta manhã, várias vezes abrigámo-nos da chuva nos seus yurts – enormes tendas construídas em madeira e cobertas de feltro de lã de ovelha – onde sempre fomos bem acolhidos. Partilhámos pão e borrego à refeição, aquecemo-nos junto das “tulga” (uma espécie de salamandra presente no interior de todos os yurts), rimo-nos, ou melhor, riram-se, das nossas caras ao provarmos o azedo “kumiz” (leite de égua fermentado).
Em pleno século XXI, assistir a esta migração de gentes e bestas é uma experiência única e memorável. A oportunidade de conviver de perto com a comunidade nómada quirguiz fez desta travessia uma viagem ainda mais rica.
Acampamento no teto das Tien Shan
Seguimos caminho, sempre com agulhas apontadas a leste. Com o passo lento, próprio de quem se deslumbra a cada curva, deixámos o vale Kyzylsul em direção ao Teleti, um dos passos mais altos da nossa travessia.
Nos dias seguintes a meteorologia manteve-se instável. Ora caminhávamos debaixo de aguaceiros fortes, ora secávamos os nossos corpos (e roupas) no caloroso sol do meio-dia. Ora acelerávamos o passo até encontrar um yurt para nos abrigar, ora sentávamo-nos a contemplar o cenário idílico das Tien Shan.
Ao cabo de cinco dias, atingimos a derradeira subida. Mochila às costas, escalámos a montanha até ao Teleti, um passo de montanha acima dos 3.500 metros de altitude. Sorte ou benção dos Deuses da Montanha, aquela tarde seria uma das mais limpas de toda a viagem. Daquele miradouro privilegiado, fantasiávamos com ascensões aos picos mais altos da região.
Nessa noite pernoitámos ali, no teto das Tien Shan, parámos e contemplámos a noite. As conversas à volta do fogo eram interrompidas pelo suave crepitar da fogueira ou pelas pausas para aquecer água para o chá. A noite passou sem darmos por ela.
Leia também: Quirguistão, ao encontro dos cowboys da Ásia Central.
Lago Ala-kul
Todos os dias a beleza daquelas paisagens surpreendia-nos. Acampámos em colos com vistas arrebatadoras, caminhámos sobre neve, atravessámos florestas sem vislumbrar vivalma. Dormimos sob céus cintilantes, deleitámo-nos a observar glaciares milenares e contemplámos picos acima dos seis mil metros.
Cansados, com muitos quilómetros acumulados, aproximávamo-nos da nossa meta: o Lago Ala-kul. Literalmente traduzido, Ala-kul significa lago colorido.
Apesar de, nos últimos dias, termos atravessado paisagens retiradas de uma qualquer National Geographic dos anos 70, nada nos podia preparar para aquele momento.
O sol tímido escondia-se vagarosamente atrás das montanhas nevadas. Com o avançar dos minutos as tonalidades alaranjadas preenchiam por completo o grande lago azul – Ala-kul – que começava a espelhar o céu agora estrelado. Após mais de uma semana a calcorrear a cordilheira das Tien Shan, aqueles largos minutos soavam ao culminar de uma aventura épica. Sentados numa enorme rocha de xisto, aquecidos por uma chávena de chá fumegante, contemplámos o momento em silêncio. A nossa travessia chegava ao fim e as Tien Shan brindavam-nos com um pôr-do-sol majestoso.
Mais fotos do trekking nas Tien Shan
Guia prático
Como chegar a Karakol
Apesar de pequeno, Karakol tem um aeroporto com voos nacionais semanais a partir de Bishkek, a capital do Quirguistão; e desde Almaty, no Cazaquistão. Ainda assim, a melhor opção é viajar nas típicas carrinhas Marshrutkas; uma viagem de cinco horas onde poderá observar o Lago Issyk-kul – o segundo maior lago alpino do mundo.
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Onde ficar em Karakol
Em Karakol existem alguns hotéis, alojamentos locais e hostels recomendáveis. Localizado no coração de Karakol, o Altamira Hotel é uma excelente opção para pernoitar na cidade. Também no centro da cidade, o Bed & Breakfast Nice é talvez uma das melhores opções para famílias ou casais que procurem um alojamento tranquilo.
Gerido por uma família russa, o Argo Guest House fica um pouco afastado do centro de Karakol, mas tem uma boa relação qualidade/preço.
Para outras opções, procure hotéis e pousadas de qualidade usando o link abaixo.
Viagem organizada
Como resultado da viagem de prospeção aqui relatada, a Nomad lançou uma viagem de trekking no Quirguistão. Se preferir o conforto de uma viagem organizada e um grupo pequeno, é uma excelente opção.
Seguro de viagem
A IATI Seguros tem um excelente seguro de viagem, que cobre COVID-19, não tem limite de idade e permite seguros multiviagem (incluindo viagens de longa duração) para qualquer destino do mundo. Para mim, são atualmente os melhores e mais completos seguros de viagem do mercado. Eu recomendo o IATI Estrela, que é o seguro que costumo fazer nas minhas viagens.
Excelente. Preciosa ajuda na viagem que estamos a planear ao Quirguistão em Junho deste ano.
Muito Obrigado.