Estepes áridas, florestas húmidas, montanhas cobertas de neve e muitos lagos é o que se pode esperar de uma viagem a esta ex-república soviética, das menos conhecidas da Ásia Central. Terra de cavaleiros nómadas que vivem para o seu gado, o Quirguistão entra diretamente para a lista dos países mais belos do mundo, e sem dúvida um dos mais tradicionais. Um roteiro de viagem no fim do verão ao Quirguistão.
Diz-se que os quirguizes já nascem em cima dos cavalos, e o pequeno Russlan, de cinco anos, não deixa a fama por mãos alheias, galopando com desenvoltura de chicote na mão para reunir as vacas do pai, nas proximidades do lago Kol Ukok. A paisagem é o exemplo do melhor que se encontra no país: um grande lago azul-turquesa rodeado de montanhas cobertas de neve, encaixado num vale verde onde os animais encontram pasto durante o verão. É assim o Quirguistão, e quem procura monumentos arquitectónicos ou vida urbana, com bons restaurantes ou esplanadas onde se pode beber um café tranquilo ao fim da tarde, terá de buscar outras paragens.
Apesar de ficar na Rota da Seda, os poucos monumentos arquitetónicos que aqui existem – o caravanserai de Tash Rabat, um mausoléu em Ozgon e a Torre de Burana – são visitados de passagem pelas viagens organizadas que ficam a maior parte do tempo pelos vizinhos China e Uzbequistão.
Este é o reino dos chabana (cowboys) e do ar livre, onde cavaleiros e caminhantes encontram o paraíso a preços módicos, e uma hospitalidade genuína misturada com traços de ganância, ainda ingénua, que o turismo vai trazendo.
Russlan já ama esta vida viciante, cavalgando entre jailoos (grupos sazonais de iurtas), as faces coradas pelo frio matinal, que desce em lufadas de nuvens das montanhas cobertas de neve. A irmã mais nova munge as vacas e amassa o pão, que é cozido numa chapa sobre o fogo e imediatamente servido, redondo e quente, acompanhado de manteiga, natas, iogurte e vários tipos de compotas.
Não há quem visite o país sem ficar pelo menos uma noite instalado numa iurta, verdadeiro ninho de lã de ovelha aqui conhecido por bozoy (literalmente, “casa cinzenta”), comendo os gordurosos estufados de carneiro e as doses suplementares de energia acrescentadas pela compota e pelos lacticínios, que será gasta em grandes caminhadas ou cavalgadas durante o dia, em busca de mais paisagens soberbas. É isto que fica na memória: chabanas solitários seguindo monte acima rebanhos sem rumo, pequenos grupos de iurtas, liberdade.
Bishkek, a cidade…
Mas quem chega à capital não adivinha ainda o tesouro que vai descobrir. Nitidamente soviética nas linhas duras das casas e nos arrabaldes de vivendas de madeira, nas avenidas tão largas que demoram minutos a atravessar e na estátua de Lenine discretamente remetida para trás do Museu Histórico – e já agora, nos bonés gigantescos dos militares, onde cabe quase um quirguize inteiro -, Bishkek não se recorda pelas melhores razões.
Tudo é longe e a escala é desumana; felizmente ficou uma boa rede de transportes urbanos que nos leva a qualquer lado, do Bazar de Osh ao Bazar Alamedin, do outro lado da cidade, em pouco mais de meia hora.
O chamamento das mesquitas quase não se consegue sobrepor à cacofonia do trânsito, as igrejas ortodoxas russas estão escondidas por árvores que ladeiam as avenidas sobrecarregadas de viaturas em variados estados de decomposição, do jipe de último modelo do alto funcionário do estado, à mashrukta ferrugenta herdada dos russos, que ainda serve de táxi colectivo.
Bem mais interessante é a segunda cidade do país, Osh, que fica no sul, a dois passinhos do Uzbequistão e que de vez em quando, como aconteceu este ano, rebenta em motins de origem étnica, dizem. De origem económica, diria eu, já que os pastores nómadas (quirguizes) se mantêm pobres, e os comerciantes sedentários (usbeques), que controlam a maior parte dos negócios na região, estão sempre uns furos mais acima.
Osh é uma cidade atraente, com os seus cafés de rua, os chaikhana, com estrados onde nos podemos recostar à sombra de árvores para beber um chá ou uma cerveja, acompanhados por velhinhos de barbichas e trajos típicos, que nos olham com benevolência. As mulheres são uma minoria mas vão aparecendo, que o islão é a religião maioritária mas de influência leve na vida de todos os dias. E é vê-las a conduzir negócios de lenço e vestido garridos, tomando conta de grande parte dos balcões em lojas e bazares, vendendo as lepioshkas (pão russo) douradas ao fim do dia, ainda quentes, embrulhadas em panos.
O maior lago do Quirguistão e o segundo maior lago alpino do mundo é o Issik-Kul – “lago morno”, em quirguize – que fica a uma distância ideal de Bishkek para um fim de semana de “praia” num território onde não chega nem o cheiro a maresia.
Tem enseadas de areia branca, bastante cosmopolitas durante o Verão, com a chegada de cazaques e russas loiríssimas de roupas minúsculas, todos sedentos de mergulhar nas águas azuis mesmo quando o vento faz arremedos de tempestade, com ondas e tudo.
A margem norte tem dezenas de antigos sanatórios russos que estavam reservados à nomenklatura ou a cidadãos a merecer férias pagas – Gagarin repousou aqui depois da sua viagem espacial -, muitos dos quais agora luxuosamente recuperados e democraticamente abertos a quem puder pagar centenas de euros por noite.
A margem sul fica muito próxima dos Montes Tian Shan, com a altitude máxima nos 7.439 metros de altura do Monte Pobeda, e está menos desenvolvida para praia do que para incursões na montanha, com alguns dos areais apenas frequentados por vacas que também gostam de se meter na água enquanto bebem.
… e as montanhas
A cidade de Karakol fica no lado sul do lago, e é um acolhedor ponto de partida para trekkings e passeios de um dia pelos vales e bosques de coníferas da região. Aqui estamos de novo em território de chabanas, que passam descuidadamente na rua principal sem se incomodarem com o trânsito, e se juntam num mercado de animais todos os Domingos, nos arredores da cidade.
Famílias inteiras acorrem a partir das cinco da manhã, os homens com as suas botas de cano alto, casacões e o ak kalpak, o chapéu branco de feltro em forma de sino característico dos quirguizes. Há cavalos, ovelhas e vacas, mas também arreios, cordas, esporas e tudo o mais que é necessário para que a vida siga o seu ritmo normal. Não falta a vodka barata, que aquece os estômagos bem antes do sol se levantar, e que é porventura responsável pelos poucos disparates que estes reservados cavaleiros cometem.
Grupos de russos, paquistaneses e cazaques, entusiastas da alta-montanha chegam de todo o lado para caminhar pelos glaciares até às grandes catedrais do Pobeda e do Khang Tengri, que ultrapassam em beleza real o imaginário de qualquer montanhista.
Faz-se escalada, alpinismo ou simples caminhadas por vales de uma beleza de fazer sumir qualquer imagem de calendário suíço: montanhas verdes revestidas por manchas de coníferas, como guarda-chuvas fechados, adornadas por capas brancas de neve.
Glaciares enfarruscados por rochas escuras, rios turbulentos e transparentes, pontes de madeira e flores de todas as cores e formas extravagantes, que adornam os prados onde se espalham as iurtas dos pastores em grupos de duas ou três, em nome da privacidade. Aqui todos parecem felizes, bichos e homens. Todos têm espaço e estão no seu elemento.
Em Bishkek, tinha visto um par de tendas montadas no quintal de uma pensão familiar, e pensei que se tratava de uma imagem para vender ao turista sedento de experiências; fui depois vendo que quem pode faz isso mesmo, e tem pelo menos uma destas “casas cinzentas”, portáteis e espaçosas, no terreno mais próximo, para dormir em paz, receber os amigos, servir o chá e a comida enquanto se finge que se está onde se queria estar: no meio das serras com os rebanhos.
O Russlan transformou-se numa pinta escura em movimento na encosta íngreme da montanha. Tem cinco anos, mas o pai está sentado ao pé da iurta e não parece preocupar-se, enquanto bebe o seu chá com um grupo de homens que vieram para conversar.
Setenta anos de colonização soviética não conseguiram afastá-los da vida nómada – e ainda bem, já que o regresso às origens tem sido uma verdadeira salvação para o país, que tem uma economia, no mínimo, frágil.
Para já, a fartura de água e pastos e uma cultura de vida independente garantem-lhe a subsistência, enquanto a beleza do território promete, talvez, um auspicioso futuro na área do turismo. Mas por agora o Quirguistão deixa-se apenas descobrir a pé e a cavalo, seguindo os chabanas montes acima.
Guia prático
Este é um guia prático para passeios pedestres na Quirguízia, com informações sobre a melhor época para visitar, o que fazer, onde ficar e como chegar ao Quirguistão.
Dados sobre o Quirguistão
O Quirguistão, ou República da Quirguízia, é um país da Ásia Central que fez parte da União Soviética até 1990. Faz fronteira com outras ex-repúblicas soviéticas (Cazaquistão, Uzbequistão e Tajiquistão) e também com a China. O território é extremamente montanhoso e possui grande profusão de lagos. Cerca de 90% da sua área fica a mais de 1.500 metros acima do nível do mar, e o pico mais alto é o Jengish Chokusu, ou Pobeda que, com 7.439 metros de altura também é o mais alto do Tian Shan, cordilheira que faz parte da cintura dos Himalaias.
A riqueza do país é sobretudo a água, já que grande parte das suas montanhas se encontra permanentemente debaixo de um manto de neve, e possui mais de 6.500 glaciares, como o gigantesco Inylchek, com uma área de 583 km2.
Quirguizes (70%), russos e usbeques compõem a maioria da população, menos de 5 milhões e meio de habitantes espalhados por uma área cerca de duas vezes maior que Portugal. Depois de setenta anos de ateísmo soviético, a população assume sem grande convicção o islamismo (maioritário) e o cristianismo, sempre a par do xamanismo original das tribos locais.
Quando ir
À exceção do verão, que oferece temperaturas agradáveis em quase todo o país – com excepção da região de Bishkek e sobretudo do vale de Fergana, onde podem subir acima dos quarenta graus -, a melhor altura para visitar o Quirguistão é mesmo o outono; a primavera é muito chuvosa.
Como chegar
O melhor é comparar os preços das duas opções de voos mais populares, que variam de acordo com as épocas: o voo de Istambul a Bishkek com a Turkish Airlines, e o de Londres a Bishkek com a BMI. Os preços rondam os 600 € já com a ligação a Portugal. Os transportes locais são erráticos mas confortáveis e baratos, com muito poucas estradas que não sejam as que ligam à capital, Bishkek. Estradões de terra onde só podem passar jipes ou resistentes e repetidamente consertados minibus – as mashrukta herdadas dos russos – completam a “rede rodoviária”, que só funciona na totalidade no Verão e Outono, dependendo do clima.
Hotéis e restaurantes
Na capital e nas margens do Lago Issyk-Kul existe de tudo, do mais luxuoso Hyatt Regency a velhos hotéis e sanatórios da época soviética. No resto do país, a falta de hotéis é, sob muitos aspectos, uma bênção para os visitantes mais curiosos: cidades e, sobretudo, vilas e aldeias organizaram-se em associações de Turismo Comunitário como o CBT (Community Based Tourism), que oferece quartos em casa dos habitantes ou alojamento em acampamentos de iurtas, com qualidade homogénea e preço fixo e acessível – os mais caros chegam aos 20 . Geralmente incluem pequeno-almoço, e as refeições são feitas a pedido e pagas por fora. Os postos de turismo têm listas de todas as camas disponíveis do país.
Também não faltam restaurantes, e a comida mais comum são variadas receitas com carneiro, como o shorpo (sopa com legumes, batata e carneiro) ou o plov (arroz com carneiro), e alguns pratos russos. O pão é bom e abundante, seja o nan asiático ou a lepyoshka russa. O forte são os lacticínios sob variadíssimas formas, mas não abundam nos restaurantes porque são feitos em casa.
Informações úteis
A moeda é o som, e 1 euro vale cerca de 62 som ao câmbio atual. Não há muitos ATM fora da capital, mas não é difícil trocar euros em casas de câmbio. As línguas oficiais são o quirguize, de raiz turca, e o russo, e o alfabeto usado é o cirílico. O inglês está a ser adoptado pelos que têm contacto com turistas. Os portugueses podem adquirir o visto de turista no aeroporto, à chegada, por cerca de 50 €.
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