Quem sonha passar um dia no meio de picos nevados, sem as canseiras que geralmente isso acarreta, ou passear sobre um glaciar rodeado por uma cordilheira gigante, antes de descer para a cidade e dormir numa cama fofa, saiba que é possível. Pelo menos na Quirguízia, onde há programas para os “menos ativos”, que apenas exigem dos participantes roupa quente e dinheiro.
Não foi por preguiça mas por mero oportunismo que, em viagem pela Quirguízia, me juntei a um grupo organizado para uma excursão de helicóptero aos campos-base de acesso aos montes Khan Tengri (Senhor do Paraíso) e Jengish Chokusu – que os russos deram a conhecer ao mundo como Pico Pobeda (Vitória). Para apreciar convenientemente a viagem basta ir bem agasalhado e com calçado que permita uns belos passeios sobre o glaciar – e não umas sapatilhas de cunha, como uma certa senhora russa que por ali andou a patinar, até desistir e ir refugiar-se numa tenda.
Mas, mesmo visto da tenda, o espetáculo é impressionante: o helicóptero deposita-nos numa espécie de anfiteatro gelado, rodeado pela mais famosa cordilheira da Ásia Central, a dos montes Tian Shan, com lagos, estalactites de gelo, e neve, muita neve esculpida pela meteorologia agreste da alta-montanha. O falsamente plano alongado do cume do Pobeda, a 7.439 metros de altitude, e a belíssima pirâmide do Khan Tengri, a 7.010, são os pontos mais altos da cordilheira, e parecem muito próximos.
Geralmente transporto-me até estes cenários de excelência a pé, merecendo a cada passo descobrir as paisagens fabulosas que sempre se escondem em cada prega das montanhas, em qualquer parte do mundo. Alcançar lugares que, literalmente, nos cortam a respiração, é coisa que leva o seu tempo e, em certos casos, bastante dinheiro. E foi este o caso: ao confrontar-me com ter de organizar toda a logística (material e alimentos) e contratar um guia para fazer a curta expedição de uma semana, subindo e descendo o glaciar de Inylchek, juntando-lhe o necessário transporte privado desde a cidade mais próxima, fiquei em vésperas de desistir.
Depois de vários trekkings pelas montanhas da Quirguízia, por prados verdes e florestas cerradas, mas sempre com os cumes nevados a chamar por mim, encontrei a solução na agência do próprio lodge onde estava albergada, na cidade de Karakol: um programa turístico que transportava grupos até aos campos-base dos mais altos Montes Celestiais (tradução de Tian Shan). Preço: 200€.
Com muita conversa e alguma boa vontade, tomando por minha conta o transporte até ao ponto de partida, no vale de Karkara, a coisa desceu até aos 150€. Incluindo a autorização especial necessária para a zona fronteiriça, refeições, e uma fabulosa viagem por ar. E essa era a cereja em cima do bolo: a viagem de helicóptero.
Todas as minhas experiências anteriores tinham sido viciantes, e pareceu-me que sobrevoar estas montanhas à velocidade de uma libelinha mecânica seria tão bom como caminhar no meio delas.
Vale de Karkara
O vale de Karkara é partilhado pelos dois povos irmãos, que ignoram a fronteira oficial entre o Cazaquistão e a Quirguízia mesmo depois do colapso da União Soviética. Aqui, os nómadas de ambos os lados instalam as suas bozoy (tendas redondas de feltro) onde muito bem entendem, falam a mesma língua de origem turcomana, e as ovelhas são iguais. E ambos partilham um fervoroso amor pelos cavalos.
O taxista que contratei foi-me buscar ainda de noite e conhecia bem o caminho. Ia parando para me mostrar fábricas de queijo abandonadas pelos russos, um monte de pedras que, reza a lenda, foram deixadas pelos guerreiros do imperador Tamerlão, e outras atrações turísticas que ele próprio fotografava com o telemóvel. Impressionante mesmo era a luz, que transformava em veludo a erva que cobria os montes mais próximos, e em silhuetas elegantes os cavalos pequenos e escuros que por ali pastavam.
Quando o sol se impôs sobre a paisagem estávamos numa parte mais estreita do vale, com um rio a dividir as duas nações. Parámos para falar com um militar, que pediu boleia para transpor a curta ponte. Do lado quirguiz, uma amálgama de ferros, peças e frigoríficos abandonados escondiam um velho furgão russo estacionado junto a um pequeno helicóptero, que rezei para que não fosse o meu próximo meio de transporte. E não era: do lado cazaque, um acampamento organizado e simétrico de grandes tendas albergava os montanhistas, à espera de serem transportados para os campos-base correspondentes a cada montanha. Um casarão pré-fabricado servia de heliporto; ao lado estava um grande helicóptero de fabrico russo pintalgado com as manchas verdes do exército – e era esse o transporte.
De voucher em punho espalhei a palavra: vinha da agência, e queria ir para os confins do Inylchek. Recebeu-me uma cazaque loira e séria com o ameaçador nome de Elena Kalashnikova, que com meia dúzia de palavras em inglês e muitas mais em russo me pôs ao corrente de uma demora inesperada: o “meu grupo” ainda não tinha chegado, e o helicóptero tinha de ir levar mantimentos a uma expedição à Marble Mountain (Montanha de Mármore), e trazer o lixo do acampamento. O pequeno-almoço estava servido e a coisa ainda ia demorar.
Comi e rondei pela paisagem, vendo os cavalos beber no rio, os elegantes pinheiros nórdicos a serem iluminados por um sol que não aquecia. Fui até à Quirguízia, atravessando a velha ponte, e regressei ao Cazaquistão de mãos nos bolsos, protegidas de um vento gelado. Até ofereci ajuda para carregar os fardos no helicóptero, enquanto esperava. Um menino loiro entrava e saía da máquina, espreitando pelas janelas redondas – era um sobrinho da dona Kalashnikova, e também ia viajar connosco.
De helicóptero até às Marble Mountains
Finalmente, a espera deu resultados. Recebi uma proposta irrecusável da senhora com o nome inesquecível:
– Quer ir até às Marble Mountains?
– Eu queria ir até ao glaciar de Inylchek…
– Mas pode ir às Marble Mountains e voltar, e depois vai com o seu grupo. Faz duas viagens. Se quiser, suba.
Não lhe dei um beijo porque os costumes aqui são outros, mas a minha cara deve ter ficado tão contente que a senhora até sorriu. Instalei-me no meio dos embrulhos com o rapazinho e dois militares, e tapei os ouvidos enquanto a hélice do helicóptero atingia a velocidade e o ruído máximos. Levantou-se do chão com esforço – primeiro a traseira, o que nos fez desequilibrar para a frente, e depois o resto da nave -, e quando consegui chegar a uma das janelas pelo labirinto das caixas e bidões, já estávamos bem lá no alto, as casinhas do vale transformadas em brinquedos e os cavalos em pintas escuras.
O pequeno Kalashnikov estava tão feliz como eu, e íamos apontando um ao outro as maravilhas que desfilavam lá no fundo: uma cascata transformada num fio branco, lagos verde-esmeralda no fim de manchas de neve inclinadas, um vale largo, onde uma ilhota triangular sobressaía numa rede de riachos azulados. Tudo muito verde, à excepção dos picos cobertos de neve.
A viagem durou cerca de meia hora e levou-nos por céus internacionais até a um pequeno vale pedregoso, onde o helicóptero pousou delicadamente. De imediato, todos começaram a atirar lá para fora os bidões e fardos de víveres, que eram avidamente apanhados por um grupo de montanhistas que não se atrevia a por de pé, e fazia rebolar os caixotes para longe do ciclone causado pelas hélices. Consegui sair agachada, decidida a apanhar sol e a apreciar a paisagem, mas a paragem não durou mais de quinze minutos; imediatamente carregaram os sacos de lixo de um acampamento que não era visível, e acelerámos céu acima, a cambalear para a frente, mas agora com muito espaço para as pernas.
Rumo ao Glaciar Inylchek
Quando chegámos já lá estava o “meu grupo”: uma dezena de turistas cazaques e russos, quase todos vestidos apropriadamente, com a escandalosa exceção de uma senhora russa, que tinha mais maquilhagem e jóias do que roupa. Sobretudo a metade inferior do corpo, vestida apenas com uns pequenos calções e as tais sapatilhas brancas e douradas, de cunha. Não sei se a teriam ludibriado com o anúncio de uma ida à praia no Lago Issik-Kul, muito procurado pelos turistas da região, mas a natural timidez do grupo, que era composto por casais e pares de mulheres de meia-idade que também não pareciam conhecer-se entre si, não facultava grandes comunicações e esclarecimentos. Uma coisa era certa: as roupas e botas de montanha da maioria eram novinhas em folha, certamente compradas para a ocasião.
E lá fomos nós outra vez, eu e o sobrinho da chefe. Desta vez sentámo-nos um ao lado do outro para reclamar a posse de uma das janelas redondas, tipo escotilha de navio, que todos cobiçavam, de máquinas de filmar em punho. A tia até nos deixou abrir o vidro, e pudemos esticar as mãos em direção aos cumes que passavam, a escassas dezenas de metros do helicóptero. O ar era gélido e a brincadeira não durou muito, mas foi revigorante ficar com os maxilares congelados durante uns segundos.
A paisagem vista de cima era cada vez mais impressionante. Os abetos gigantes transformaram-se mais uma vez em velas de aniversário nos grandes bolos das montanhas. Depois as montanhas cresceram e aproximam-se do helicóptero, os rios abriram-se em teias esbranquiçadas no fundo dos vales, e ao fim de meia hora estávamos no meio de paredes brancas de gelo, umas lisas como folhas de papel, outras com as pontas dobradas ou com o aspeto de órgãos de igreja. Um desfile de esculturas naturais dignas de outro planeta.
Conseguíamos ver até muito longe, uma imensidão gelada de montes e vales cobertos de neve. Glaciares escuros desciam como estradas secundárias por vales largos e fundiam-se com a grande autoestrada do Inylchek, o quarto glaciar mais longo do mundo fora dos pólos, com 62 quilómetros de comprimento e 3,5 quilómetros de largura. E para lá dos números, só do alto se consegue realmente ter a noção do seu tamanho gigantesco.
O helicóptero aterrou no meio e, mal chegámos, fomos conduzidos a uma tenda-restaurante aquecida, instalada sobre um estrado de madeira e dotada de mesas, cadeiras, talheres, louça e até guardanapos! Serviram-nos um excelente borsht (sopa de beterraba), almôndegas de queijo, arroz com carne, chá e café à descrição. Já tinha visto carregadores nepaleses levarem mobílias inteiras monte acima (cadeiras, mesas e camas de campanha), para satisfazerem o que para muitos turistas é o conforto “básico”, mas nunca tal luxo e abundância tinha encontrado num cenário de alta-montanha.
Os meus companheiros estavam deliciados com a experiência e as exclamações de admiração não paravam, bem como as fotografias em pose num cenário absolutamente fabuloso. Estávamos num triângulo entre países, no chamado Campo-Base Inylchek-Sul, na Quirguízia, entre a sequência de picos do Pobeda, ao longo da fronteira com a China, e o magnífico Khan Tengri, na fronteira com o Cazaquistão.
Circulávamos num cenário a preto e branco, onde as únicas cores vivas eram as das tendas das expedições montanheiras e o céu azul, que as nuvens deixam ver de vez em quando. Lagos glaciários rodeados de franjas de gelo deixavam ver o interior do solo onde caminhávamos, autênticas cavernas geladas gotejavam em estalactites, e o ruído cavo de alguns calhaus que rolavam eram a única coisa a quebrar o silêncio. Apesar de parecer plano visto do ar, o glaciar é feito de subidas e descidas, um mar encapelado de gelo entremeado de charcos e rochas que exigem desvios e muito cuidado com os passos.
À mais pequena nuvem que tapava o sol, o ar ficava de um gelo cortante, e os meus colegas de helicóptero começaram a cansar-se de caminhar entre o “restaurante”, onde se aqueciam, e o local de aterragem, a umas dezenas de metros. Alguns deitaram-se em cima de uns colchões, empilhados para serem levados para baixo, queixando-se de frio e de dores de cabeça por muito suave que tenha sido a subida, estávamos a mais de 4.000 metros de altitude, e as quatro horas passadas num local tão inóspito já lhes estavam a pesar.
Os Kalashnikov tinham desaparecido e eu ainda tinha esperança de ficar para ver o pôr-do-sol no Khan Tengri, que localmente é conhecido por Kan-Too, Montanha de Sangue, por causa dos extraordinários tons rosados que ganha ao fim do dia. Mas, pelos vistos, esse espetáculo não estava incluído no pacote da viagem; em breve começou a ouvir-se o rugido do velho besouro, que só furou as nuvens e se deixou ver no último momento, antes de aterrar. O vendaval quase nos arrancou do chão, obrigando-nos a agarrar óculos e mochilas, a deitar-nos sobre os colchões para que não voassem antes de nós.
Entrámos na máquina ordeiramente e retomámos o caminho das nuvens, que agora envolviam os picos mais próximos. O grupo ia agora mais silencioso e sombrio, certamente a sonhar com camas fofas e banhos quentes, como eu, até porque pouco mais se pode desejar à noite, após um fantástico dia passado entre montanhas e glaciares.
Guia prático
Este é um guia prático para passeios pedestres na Quirguízia, com informações sobre a melhor época para visitar, o que fazer, onde ficar e como chegar ao Quirguistão.
Dados sobre o Quirguistão
O Quirguistão, ou República da Quirguízia, é um país da Ásia Central que fez parte da União Soviética até 1990. Faz fronteira com outras ex-repúblicas soviéticas (Cazaquistão, Uzbequistão e Tajiquistão) e também com a China. O território é extremamente montanhoso e possui grande profusão de lagos. Cerca de 90% da sua área fica a mais de 1.500 metros acima do nível do mar, e o pico mais alto é o Jengish Chokusu, ou Pobeda que, com 7.439 metros de altura também é o mais alto do Tian Shan, cordilheira que faz parte da cintura dos Himalaias.
A riqueza do país é sobretudo a água, já que grande parte das suas montanhas se encontra permanentemente debaixo de um manto de neve, e possui mais de 6.500 glaciares, como o gigantesco Inylchek, com uma área de 583 km2.
Quirguizes (70%), russos e usbeques compõem a maioria da população, menos de 5 milhões e meio de habitantes espalhados por uma área cerca de duas vezes maior que Portugal. Depois de setenta anos de ateísmo soviético, a população assume sem grande convicção o islamismo (maioritário) e o cristianismo, sempre a par do xamanismo original das tribos locais.
Quando visitar
A melhor altura para visitar o país e praticar atividades de ar livre é de junho a setembro, e para fazer montanhismo nesta região só mesmo nos meses de Verão. No caso das viagens de helicóptero, partem apenas quando há grupos interessados e a meteorologia o permite. Utilizei a agência Turquestan Travel, mas há outras agências quirguizes e cazaques que propõem o mesmo serviço.
Como chegar a Karakol
Não há ligações diretas entre Portugal e a Quirguízia; os voos mais baratos a partir da Europa são, provavelmente, as da britânica BMI, que tem voos de ligação entre Londres e a capital, Bichkek, por cerca de 630€. Os voos saem do aeroporto de Heathrow, para onde a TAP tem ligações aéreas regulares.
De Bichkek há autocarros e táxis colectivos, velhos mini-autocarros russos conhecidos por mashrukta, que saem sempre que estão cheios, durante a manhã, com destino à cidade de Karakol, no leste do país.
Este é o ponto de partida dos trekkings nos Montes Tian Shan, e onde encontra a agência Turquestan Travel, com o prestável patrão Sergey, que fala inglês. A agência também propõe outros programas nas montanhas dos arredores e aluga material de montanhismo. Os preços indicados para a viagem variam de acordo com as agências e sobem todos os anos.
Hotéis e restaurantes
A agência fica no mesmo local do Turquestan Tent Camp, lugar básico e barato para dormir em quartos simples ou nas tradicionais tendas quirguizes. Os quartos duplos rondam os 6 a 10€, com pequeno-almoço, e um lugar numa bozoy (literalmente “casa cinzenta”, em quirguiz, ou iurta, em russo) fica por 4 a 6€. As associações de Turismo Comunitário, como o CBT (Community Based Tourism), também oferecem quartos em casa dos habitantes ou alojamento em acampamentos, com qualidade homogénea e preço fixo; os mais caros chegam aos 20€ e incluem pequeno-almoço. Refeições, só a pedido e pagas por fora. Os postos de turismo têm listas de todas as camas disponíveis do país.
Não faltam restaurantes, mas lamentavelmente não deixam grandes memórias. No mercado há quem sirva excelentes massas frias picantes ao estilo uigure, chamadas aschlyamfu, mas só entre o pequeno-almoço e o meio-dia. Os pratos mais comuns são variações sobre a carne de carneiro, como o shorpo (sopa com legumes, batata e carneiro) ou o plov (arroz com carneiro), e alguns pratos russos. O pão é bom e abundante, seja o nan asiático ou a lepyoshka russa. O forte são os lacticínios sob variadíssimas formas, mas não abundam nos restaurantes porque são feitos em casa e vendidos na rua e nos mercados.
Informações úteis
Os portugueses necessitam de um visto, que pode ser adquirido à entrada no país antes de sair do aeroporto, por cerca de 50€. Na Quirguízia, a moeda é o som, e 1€ vale cerca de 50 som. Não há muitos ATM fora da capital, mas há casas de câmbio onde pode trocar euros. As línguas oficiais são o quirguiz e o russo, ambas escritas com o alfabeto cirílico. Cada vez há mais quem fale inglês, sobretudo quem está ligado ao turismo, mas a atividade turística ainda é mínima, se não contarmos com os turistas dos vizinhos Cazaquistão e Rússia.
Seguro de viagem
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