O nome é estranho e a paisagem não lhe fica atrás: com bananeiras que crescem a dois mil metros de altitude e uma densa e húmida floresta que cobre grande parte das montanhas, a região do Kangchenjunga, o terceiro pico mais alto do mundo, é visivelmente diferente do resto do Nepal.
Kangchenjunga – a Montanha Oculta
Em Thamel, a zona mais turística de Katmandu, não faltam agências de viagem que em alguns dias põem de pé expedições muito mais complicadas que o simples trekking que pretendíamos fazer: uma aproximação às faces Norte e Sul do monte Kangchenjunga, no Leste do Nepal. Em três tempos obtiveram as autorizações necessárias e organizaram tudo, do guia aos carregadores, material como tendas e comida, assim como a viagem de autocarro até Biratnagar, na planície do Terai e voo para Suketar, a pista aérea que serve a região do Kangchenjunga – isto nos dias em que as nuvens permitem a aterragem à vista. É preciso levar quase tudo da capital, uma vez que a região não possui o volume de turismo e respectivas infra-estruturas, por exemplo, da região dos Annapurna. Tudo será transportado a dorso de homem.
O pequeno avião que nos levou a Suketar descolou à hora prevista, mas um dia mais tarde e após algumas explicações confusas; mas pelo menos aterrámos à primeira tentativa. A população da aldeia que foi crescendo em redor da pista de aterragem parecia estar em peso à nossa espera; os poucos estrangeiros que ali chegam constituem um negócio sempre apreciado pelas pensões familiares que aos poucos vão aparecendo. Comemos enquanto o guia contratava os carregadores necessários, e arrepiámos caminho até à aldeia seguinte, já com uma vista desimpedida sobre os vales profundos e as montanhas altas e verdes que fecham a paisagem.
A diferença que salta à vista, entre esta região e outras do Nepal, é justamente este verde infinito, que rapidamente passa dos socalcos verde-vivo de arrozais e milho-miúdo para o verde-escuro duma floresta densa. Só bem mais ao perto poderemos apreciar a habitual paisagem agreste de alta montanha, com os cimos de um branco gélido recortados num céu azul índigo. Vamos avançando de campo em campo, quintal em quintal, chegando mesmo a atravessar pátios de casas bem cuidadas, rodeadas de flores e bambus. Para além dos terrenos agrícolas, as famílias possuem também galinhas, búfalos e pequenos porcos pretos. E crianças com fartura, que nos rodeiam com sorrisos tímidos, cumprimentando com o habitual namaste. Muitas também pedem canetas, mas a curiosidade é o sentimento mais forte, e até os adultos se aproximam para trocar duas palavras, saber de onde vimos e para onde vamos, conversar com o guia.
A caminho do Kangchenjunga
Nesta zona de acesso à face Sul do Kangchenjunga a principal etnia são os limbu que, rezam os guias, são um dos mais antigos grupos étnicos conhecidos do Nepal. A sua religião é uma mistura de budismo e xamanismo, mas para os desprevenidos não haja dúvidas que a contribuição cultural mais visível dos limbu parece ser a tongba, bebida feita de milho-miúdo fermentado e água a ferver. Bebe-se por uma palhinha cravada num recipiente que lembra uma pequena pipa de madeira, e à medida que o esvaziamos alguém vem enchê-lo de novo com água quente. Tem um sabor agradável e suave, e devo dizer que me aqueceu o corpo e a alma no dia em que o bebemos numa cozinha escura e mal aquecida por uma salamandra fumarenta, depois de horas a caminhar à neve e à chuva. Mas aconselho a que se experimente apenas nos últimos dias, já no regresso, lá para a aldeia de Ghunsa, quando já não pode fazer grande estrago.
A marcha é tecnicamente fácil mas extremamente cansativa. Caminhamos cinco a nove horas por dia, descendo e subindo encostas íngremes, muitas vezes talhadas em degraus de pedra, atravessando vales estreitos e pontes suspensas sobre rios turbulentos, para voltar a subir do outro lado. Aos poucos foi-se instalando uma rotina diária: levantar com o sol, comer uma refeição leve; começar a caminhar para ser ultrapassada rapidamente pelos carregadores sorridentes; parar para o almoço, composto por sanduíches ou por uma refeição quente; caminhar mais duas ou três horas antes de parar, tentar manter a higiene pessoal em ordem, comer e dormir quando cai a noite, por volta das oito e meia. Dito assim, parece mais um acampamento de escuteiros do que uma magnífica caminhada pelos Himalaias, mas a beleza – e estranheza – dos lugares por onde passamos é inesquecível, mesmo comparando com outros trekkings em território nepalês.
No terceiro dia de caminho iniciámos uma progressiva e espectacular ascensão dentro da floresta húmida e frondosa de onde brotavam cascatas de todos os tamanhos, jorrando do alto de penhascos ou correndo em socalcos sob os nossos pés. Junto às aldeias, o chão sombrio permitia o cultivo de extensos campos de cardamomo. Para além de um veado almiscarado, ruivo e tímido, que permaneceu visível apenas o tempo suficiente para o identificarmos, os únicos animais que encontramos a cada passo são borboletas e libélulas azuis, para além das sanguessugas de vários tamanhos e cores, que catamos das meias e das botas e expulsamos das tendas. Mas o Ram, o nosso guia, disse-nos que já chegou a ver um panda por aqui há muitos anos, e que basicamente a região continua igual: ninguém abriu uma pensão ou vende, sequer, uma Coca-Cola. Pisamos magníficos tapetes de fetos, passamos por cortinas de líquenes, atravessamos corredores de vegetação que esconde a luz do sol. Às vezes caminhamos em cristas de montanhas sem poder ver a paisagem; apenas de algumas clareiras, onde os pastores levam os seus iaques e dzopkos (cruzamento entre iaque e vaca), e que servem de parque de campismo e miradouro sobre os picos nevados à nossa volta, antecedidos por uma floresta que toma as cores do Outono.
Do lado da face Norte as florestas têm um ar muito mais europeu, com coníferas douradas junto a enseadas de rio cobertas de seixos brancos. O caminho segue ao longo do rio, geralmente fora da floresta, as cascatas caem do alto de rochedos nus e os picos brancos parecem mais próximos, sobretudo entre Ghunsa e Khambachen, onde a vista sobre o Jannu (7.710 metros), um dos picos mais bonitos da região – o Mystery Peak das primeiras expedições -, abrange vários ângulos espectaculares desta montanha. Para além disso, subimos este segundo vale com sol e descemos com neve, que depois se transformou em chuva e depois num véu fino de nevoeiro que não parava de deslizar entre as árvores, dando à paisagem um romântico ar de pintura chinesa.
O que têm em comum os dois percursos não é propriamente agradável: por três ou quatro vezes o guia foi abordado por jovens bem vestidos e limpos, que exigiam dinheiro e binóculos para nos deixarem passar. Eram guerrilheiros maoístas (vd. texto abaixo), uns mais bem-educados que outros, que achavam errado pagarmos ao governo reaccionário e não a eles, que lutavam pelo povo. O que é certo é que o povo também se queixava de ser obrigado a alojar e sustentar estes inúteis que vinham de outros lugares, não para ajudar o povo na sua labuta diária, mas sim para assaltar os turistas, e geralmente prontos para assustar os locais com uma granada ou uma pequena arma. Ninguém ousava recusar-lhes guarida. Geralmente o Ram conseguia abrir caminho com uns copos de chá e uma conversa, explicando que o turismo trazia algum dinheiro para a zona (é costume pagar para acampar nos campos e, às vezes, dar alguma comida), e que ele e os outros da equipa perderiam os empregos se os turistas (nós) fossem molestados.
Mas na aldeia de Yamphudin, um dos chefes, de aspecto particularmente raivoso, levantou a voz. O guia fez-nos sinal para sairmos dali o mais depressa possível e desatámos a subir carreiro acima, sem tempo para apreciar a paisagem. O nosso receio, de cada vez que parávamos para tomar fôlego e olhar para trás, era que bloqueassem os carregadores: sem comida e tendas nunca poderíamos continuar. Mas aos poucos eles conseguiram juntar-se a nós. E o Ram vinha tão zangado que nem quis contar pormenores da conversa que teve com o “chefe maoísta”.
Finalmente, a montanha
Para ver o lado Sul do Kangchenjunga, com os seus 8.598 metros de altitude, é preciso subir até Oktang, a cerca de 4.800. E a paisagem vale cada metro, sobretudo quando temos a dádiva de um dia brilhante e soalheiro, que transforma os riachos em rabiscos verdes, desenhados por um pincel de artista num chão de areia branca. As montanhas têm formas fantásticas que queremos identificar com o terceiro monte mais alto do mundo, mas só depois de dobrar um gigantesco cotovelo de rocha e começar a subir uma longa moreia de pedras escuras é que enfrentamos o Kangchenjunga: uma parede de um branco ofuscante, uma enorme massa de gelo quase informe de onde parecem brotar vários glaciares que vão queimando as montanhas até enfarruscar a paisagem, deixando só aquele branco atrair os olhares. Um chorten, construção religiosa budista em forma de sino, assinala um ponto alto do caminho. Apesar das dores de cabeça, fruto da altitude e de uma marcha de nove horas, esta foi a única vez que consegui um frente-a-frente com esta soberba criação terrestre, já que do outro lado não tivemos tanta sorte.
Movendo-nos em direcção à face Norte, o colo menos perigoso é o Mirgin, apenas três horas por um trilho quase sempre a pique, sobre uma das mais fantásticas paisagens do planeta. A sensação que temos, para além do espanto de descobrir tanta beleza pura, é a de que estamos a ver um daqueles atlas em relevo onde podemos reconhecer as aldeias por onde passámos, o rio intransponível transformado num risco fino, o pico nevado no fim do vale, que desabrochou numa enorme montanha branca em forma de nenúfar invertido, e que afinal é o monte Makalu. Tudo isto e mais uma dor de cabeça, que não abrandou com a vista sobre o Jannu, já do outro lado. Entretanto o chão abriu-se em chaminés por entre pedregulhos, o sol escondeu-se, e a saltar entre rochas e nevoeiro não passámos do primeiro prado onde foi possível plantar as tendas. Só no dia seguinte iniciámos a subida até Kambhachen, passando pela bela aldeia sherpa de Ghunsa, onde as casas de madeira decoradas com bandeiras budistas eram de grande contraste com as aldeias do outro lado do Mirgin.
Para tornar a ver o Kangchenjunga era preciso subir até Lhonak, a 4.800 metros, e daí até Pang Pema, onde, dizem, a vista abrange de novo todo o monte. Mas a vida tem destas coisas: durante a noite, o planalto de Lhonak foi sendo coberto por uma neve silenciosa e abundante que não me queria deixar abrir a tenda no dia seguinte. O Ram veio com ar desgostoso forçar o fecho por fora e avisar-me que tínhamos de descer imediatamente, sob pena de já não ser possível descer dentro de algumas horas. A paisagem estava linda, tornada espessa por dois bons palmos de neve. Pelo meu lado, também não estava capaz: o meu corpo tinha inchado de noite, de tal maneira que me custava dobrar os joelhos ao caminhar. Arrastei-me penosamente montes abaixo, por vezes enterrando-me até à cintura, procurando o trilho nos buracos feitos pelos pés dos carregadores.
Só em Anjilassa, dois dias mais tarde, é que voltámos a ver um pouco de sol. E do Kangchenjunga, só tivemos notícias já na Índia, a caminho do Sikkim. Apesar de ser uma das maiores massas montanhosas do planeta, durante a aproximação mantém-se quase sempre oculta, como que para não quebrar o fascínio. Ou talvez para funcionar como prémio final de um trekking num território absolutamente único, que vale só por si.
Maoísmo e maoístas no Nepal
Há dez anos que o Nepal se debate com uma guerrilha interna que já fez mais de 13.000 mortos, muitos deles vítimas civis apanhadas em fogo cruzado ou vinganças dos guerrilheiros e do exército nepalês. Os guerrilheiros, liderados por Prachanda, intitulam-se maoístas mas a China repudia qualquer ligação, e tem mostrado periodicamente que gosta pouco de instabilidade política junto à fronteira com o Tibete.
Após o assassínio de dez pessoas da família real, em 2002, entre os quais o rei e a rainha, e tendo subido ao trono o detestado Gyanendra, irmão do malogrado rei Birendra, os maoístas ganharam cada vez mais apoio popular, cercando Katmandu e organizando manifestações gigantescas na capital. Ao mesmo tempo, dedicam-se à extorsão de turistas em trekking pelas montanhas, obrigando-os a pagar por vezes milhares de rupias para prosseguir caminho.
Neste momento são já 10 a 15.000 guerrilheiros e decorrem conversações de paz com o governo. Enquanto os guerrilheiros exigem o fim da monarquia e desejam instalar um regime de partido único, o governo, dirigido pelo novo primeiro-ministro Koirala, exige o desarmamento da guerrilha. Excluídos de participar no governo conforme ficou decidido num acordo assinado em Junho, os maoístas ameaçam de “revolução urbana” caso não consigam os seus intentos. Entretanto já controlam a maior parte das áreas rurais. Para bem do povo nepalês, só resta desejar que as negociações resultem, e acabem com o sacrifício de uma população já de si tão desvalida.
Dicas para visitar o Kangchenjunga
Este é um guia prático para viagens ao Kangchenjunga, Nepal, com informações sobre a melhor época para visitar, como chegar, pontos turísticos, os melhores hotéis e sugestões de actividades na região.
Quando viajar para o Kangchenjunga
A melhor altura é de Setembro a Novembro, quando a neve começa a cair, ou durante a Primavera, altura em que chove mais mas os rododendros estão em flor.
Hotéis em Katmandu
Em Katmandu, o Annapurna Lodge fica perto de Durbar Square e um duplo custa cerca de 300 rupias. Na zona de Thamel, a Thamel Guest House (e muitas outras) oferece quartos e preços similares. Durante o trekking a companhia encarregar-se-á de tudo, incluindo do pagamento da entrada na área protegida, e precisa apenas de uns trocos para a ocasional compra de artesanato local.
Informações
No aeroporto é fornecido um visto de dois meses à chegada, devendo para isso levar o equivalente a 60 dólares e duas fotos tipo passe. O Nepal continua a ser um dos países mais pobres do mundo, e 1€ vale cerca de 96 rupias nepalesas. A língua nacional é o nepalês, mas existem cerca de cem línguas locais, e o inglês é falado por todos os que estão ligados ao turismo. A comida nacional é o dhalbat, arroz com lentilhas, mas na capital encontra de tudo, de pizzas a croissants. Existe um Consulado Geral do Nepal no Porto, na Rua Latino Coelho.
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