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Uma casa no Cairo (Do Cairo a Teerão #1)

Por Filipe Morato Gomes
Vista sobre a cidade do Cairo
Vista sobre a cidade do Cairo

A capital do Egito não é um lugar tranquilo. Muita gente, trânsito infernal e alguma poluição não combinam com os bilhetes-postais das Pirâmides de Gizé. Mas, saindo das grandes avenidas encontram-se sossegadas ruelas pedonais recheadas de esplanadas e gente pronta a conversar. Especialmente no chamado Cairo Islâmico, na baixa da cidade e junto ao Nilo. Foi aí que conheci Anne, uma alemã convertida ao islamismo.

Eram pouco menos que três da madrugada quando cheguei ao aeroporto internacional do Cairo. Adquiri o selo que faz de visto de turismo, passei o controlo fronteiriço e entreguei o passaporte a um oficial que, surpreso, olhou para mim, comparou a fotografia no passaporte, conferiu a nacionalidade, voltou a olhar-me nos olhos e perguntou: “Você não é árabe?” Estava em casa.

Pela janela do táxi em movimento, conduzido de luzes apagadas desde o aeroporto até à baixa da cidade, notei que havia dezenas de awas – pequenos cafés – de portas ainda abertas. Faltava um par de horas para o dia amanhecer e os homens ainda fumavam shisha, bebericavam chá ou café sentados em pequenas mesas quadrangulares, alguns jogavam gamão, outros mantinham-se nos passeios exteriores aos estabelecimentos, possivelmente discutindo as últimas do mundo do futebol, grande paixão nacional. De vidro aberto, recebendo uma brisa de ar morno na face, fui surpreendido com a presença de muita gente nas ruas de downtown. Caminhavam com a tranquilidade de um passeio de fim-de-semana numa pequena vila, muitos homens, algumas famílias, tanta gente. O Cairo deita-se tarde. E tarde acorda.

Bairro Islâmico, Cairo
Bairro Islâmico, Cairo

Manhã cedo, fui directo para o bazar Khan Al-Khalili, localizado na chamada zona islâmica do Cairo. Os cafés e restaurantes da praça Al-Houssein ainda se espreguiçavam, com as esplanadas montadas em apenas um terço do seu tamanho habitual e quase sem clientes. Os turistas haveriam de começar a chegar em grandes autocarros ao fim da manhã e, talvez por isso, a maioria das lojas com preços inflacionados da rua Al-Muizz, a mais polida artéria comercial do Khan Al-Khalili, permaneciam de portas fechadas. Ziguezagueei pelas vielas do mercado, passei por mil e uma vendas e algumas tabernas de aspecto maltrapilho, até desembocar na Rua Gamalliyya. Era uma rua de terra batida, indiferente ao turismo das proximidades. Velhotes sentados em bancos de madeira junto às suas casas ou em awas com os inseparáveis chá e shisha, as pequenas mercearias de bairro com os víveres indispensáveis à subsistência; pão egípcio, grande e de forma circular, comercializado por vendedores ambulantes que fazem prodígios de equilibrismo transportando centenas de pães à cabeça, de bicicleta; os talhantes destrinçando pedaços de carne nos seus talhos poeirentos e sem portas; homens de bandeja na mão transportando pequenos copos de chá para os clientes habituais do outro lado da rua. A vida de bairro, sem filtros. Sentei-me a observar. Foi quando conheci Mohamed Said El-ashmoni.

Café El Fishawy, Cairo
Interior do famoso Café El Fishawy, no Cairo

Mohamed fazia segurança privada junto à mesquita Al-Houssein. Falei-lhe dos preços absurdos dos cafés da praça, pedi-lhe alternativas, acabámos num tasco anónimo de uma minúscula perpendicular à movimentada Gamalliyya. O empregado e um cliente petiscavam um prato de koshary, que de imediato partilharam comigo por desinteressada simpatia. Composto por arroz, macarrão, lentilhas e molho de tomate, ao que se adiciona cebola frita, grão-de-bico e um molho confeccionado com óleo, alho, vinagre, cominhos e coentros, o koshary é uma espécie de prato nacional do Egipto. Haveria de visitar uma das instituições gastronómicas do koshary no Cairo, o restaurante Abou Tarek, e ficar definitivamente rendido à improvável mistura de ingredientes.

Quando por fim abandonei o Cairo Islâmico, segui a pé por baixo do viaduto que o une à Praça da Ópera. E o que vi foi o aparente caos absoluto. Os passeios estavam tomados por vendedores ambulantes e suas bancas, os carros em compacta fila dupla tentavam avançar alguns metros entre cada buzinadela, havia ainda uma fila de carros estacionados literalmente encostados uns aos outros – no Cairo, os carros ficam destravados para que possam ser facilmente empurrados por outros condutores -, entre estes e os automóveis em circulação havia mais vendedores sentados no chão e, claro, milhares de pessoas que tentavam furar, em ambos os sentidos, na rua e nos passeios, por entre tudo isso. E tudo funcionava.

Grande Esfinge de Gizé
Grande Esfinge de Gizé

O Cairo das ruas e mercados estava a conquistar-me. Sim, existe a Cidadela, o carismático “velho Cairo”, o mundialmente famoso Museu Egípcio, os espectáculos de Sufi, os passeios de feluca e, naturalmente, a curta distância da cidade, as magníficas Pirâmides de Gizé, Saqqara e Dashur, edificações faraónicas cuja visita é, por assim dizer, “obrigatória”. Mas foi o Cairo Islâmico que me prendeu a atenção, ali voltando uma e outra vez, diariamente, até me ter apercebido que não tinha sequer espreitado o curso do Nilo.

Caminhei até uma pequena doca na margem direita do rio com felucas atracadas esperando visitantes. A tarde estava cinzenta, as cores baças, os grandes hotéis cresciam junto à margem, uma rua com cinco faixas de rodagem e trânsito incessante seguia o curso do rio. A visão não me apaixonou, mas fui recebido com simpatia pelos tripulantes das felucas, que me convidaram para tomar chá no interior de uma das embarcações. Até ser expulso pelo proprietário, mais interessado em facturar do que em ser cordial ou fazer amizades. O Nilo. Finalmente avistava o Nilo, fonte de vida indispensável num país que tem três quartos do seu território em ambiente desértico, e em cujas margens se edificaram algumas das mais faraónicas criações humanas. Fiquei por lá.

Bairro Islâmico, Cairo
Bairro Islâmico, Cairo

Nessa noite, na companhia de Ehab Maher, “embaixador” do Couchsurfing no Cairo, fui jantar a um restaurante precisamente à beira-Nilo. Anne já lá estava quando cheguei. Teria uns 25 anos. Era sem dúvida bonita, de lábios carnudos e olhar doce, a tez tingida pelo sol e cabelos que se adivinhavam loiros, arrumados debaixo de um elegante hijab que lhe escondia a origem alemã. Converteu-se ao islamismo há um par de anos mas, na Alemanha, prefere por enquanto ocultar a sua opção religiosa. Diz que seria prejudicada no emprego e que os pais se recusam a aceitar a troca da Bíblia pelo Corão. Convictamente, garantiu que “vai chegar o dia” em que assumirá o seu islamismo na plenitude. O conflito interior é, por enquanto, suportável.

Anne estava pela primeira vez no Cairo. Vinha de férias, impelida pela vontade de conhecer um pouco do seu novo mundo. O contacto directo com a realidade islâmica fazia-a feliz. Quando nos despedimos, ajeitou o hijab uma última vez. E sorriu. No Cairo, também ela estava em casa.

O projecto Cairo - Teerão foi uma viagem terrestre pelo Médio Oriente, com a duração de três meses. Teve início no Cairo, capital do Egito, e término em Teerão, capital da República Islâmica do Irão. As crónicas foram originalmente publicadas no suplemento Fugas do jornal Público.

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Filipe Morato Gomes

Autor do blog de viagens Alma de Viajante e fundador da ABVP - Associação de Bloggers de Viagem Portugueses, já deu duas voltas ao mundo - uma das quais em família -, fez centenas de viagens independentes e tem, por tudo isso, muita experiência de viagem acumulada. Gosta de pessoas, vinho tinto e açaí.

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