Estando em Riade, uma das coisas que mais queria fazer, além de visitar o Edge of the World, era conhecer algumas das muitas aldeias históricas, construídas em adobe, que pululam nas regiões desérticas em torno da capital da Arábia Saudita.
Entre elas, a emblemática Ushaiqer, sobre a qual já tinha lido alguma coisa, e Al Ghat, que acabei por não visitar; mas também outras aldeias que fossem aparecendo na rota ou que me fossem sendo sugeridas por sauditas.
E assim, com a liberdade de ter um carro alugado, saí de Riade e fiz-me à estrada pronto para descobrir algumas das mais bonitas aldeias de adobe da Arábia Saudita.
A minha visita às aldeias históricas do Emirado de Riade
Raghbah
Há dias de sorte! Cheguei à aldeia de Raghbah sem grandes expectativas, em busca de edificações tradicionais, recuperadas ou em ruínas, que me pudessem dar uma ideia da arquitetura da região.
Depois de cirandar pela velha Raghbah e de encontrar por acaso a velha mesquita Khaled Ibn Ali Al-Jeraisy, dirigi-me ao forte diante da mesquita, cujo exterior aparentava recentes obras de restauro. Assim que cheguei à fachada principal, avistei homens a trabalhar na reconstrução e pedi permissão para entrar no forte. Lá dentro, enquanto explorava um pouco a medo, ainda sem saber se era bem-vindo, apareceu Hatem, sorrindo.
Hatem é sírio, natural de Damasco e, pelo que percebi, era um dos responsáveis pela obra de restauro. Fui imediatamente adotado e, com um orgulho imenso pela obra feita, Hatem foi mostrando todos os recantos do forte, deixando-me inclusive subir à torre e caminhar no topo das muralhas, enquanto ia tentando explicar a função de cada coisa com gestos e palavras em árabe. Às tantas, os homens terminaram o seu dia de trabalho, mas Hatem tinha ainda muito mais para mostrar.
Quando a visita ao forte terminou, Hatem mostrou umas fotografias no telefone, apontou para longe indicando que ficava naquela direção e perguntou-me se queria conhecer? Eram trabalhos no adobe em alto relevo, quais paredes e tetos trabalhados em estuque decorativo nas casas senhoriais europeias ou iranianas, desenhados no pouco que restava de algumas paredes atualmente em ruínas. Naturalmente, disse que sim.
E assim, seguindo as indicações de Hatem, lá cheguei à ruína de um pequeno edifício circular, em cujas paredes ainda resistiam algumas dessas obras de arte. Haveria de encontrar o mesmo tipo de trabalho em paredes ainda não recuperadas da aldeia histórica de Ushaiqer, mas aquela primeira visão ficará para sempre guardada no baú de memórias das minhas viagens.
Hatem tinha ainda uma última proposta: subir à torre de observação da aldeia.
Em meados do século XIX foi edificada uma torre de observação alta e esguia, visualmente semelhante à chaminé de uma fábrica de cerâmica portuguesa, como parte do sistema defensivo de Raghbah. A escada, em caracol, ia ficando cada vez mais estreita, acompanhando a diminuição do diâmetro da torre; até que, chegando ao topo, fiquei na companhia de uma bandeira saudita esvoaçando ao vento com uma vista majestosa sobre a aldeia e o deserto envolvente. Foi o final perfeito para a visita à primeira aldeia de adobe que conheci na Arábia Saudita.
Por essa altura o sol encaminhava-se rapidamente para o horizonte, mas eu queria ainda visitar Ushaiqer, tida como uma das aldeias históricas mais interessantes da região. Despedi-me de Hatem e fiz-me novamente à estrada.
Ushaiqer
Cheguei quando faltavam poucos minutos para o pôr do sol. As ruas de Ushaiqer estavam praticamente desertas, com exceção de um par de homens com alguma idade sentados no coração da aldeia. Um homem convidou-me a entrar no museu instalado à porta da aldeia, mas eu queria aproveitar os últimos raios de sol aquecendo as paredes de adobe para fotografar.
Fui explorando as ruas com uma voracidade fora do normal; mas rapidamente me apercebi de que era um esforço inglório. Assim que o sol desapareceu atrás do palmeiral, pude finalmente relaxar e deixar-me ir pelo labirinto de Ushaiqer. A iluminação urbana foi aos poucos sendo ligada, dando um toque extra de magia ao lugarejo.
A aldeia estava linda e foi incrivelmente prazeiroso cirandar sem rumo pelas suas ruelas. Ainda assim, acabou por saber a pouco. Ficou logo ali mentalmente assinalado que haveria de voltar no dia seguinte.
Shaqra
No dia seguinte, e após uma noite bem dormida no Hotel Asfar, na cidade de Shaqra, decidi voltar a Ushaiqer. Felizmente, como quase sempre acontece quando se dá espaço ao improviso, os planos mudaram minutos após arrancar. Vi uma placa a indicar “Shaqra Historical Town” e optei por ir verificar. E ainda bem que o fiz.
Depois de explorar lugares sobre os quais nunca tinha ouvido falar, como o Palácio Al-Subaie, dirigi-me de carro para a saída da cidade velha. Foi quando avistei um grupo de homens sauditas – apenas homens! – sentados debaixo de umas arcadas a conversar. Parei, meti conversa, e eles indicaram a casa de chá do outro lado da rua para tomar chá ou café.
Lá dentro, havia cinco homens a tomar chá. Entre conversas possíveis quase sem língua comum (até chamarem um amigo saudita que foi estudar inglês nos Estados Unidos da América para fazer de intérprete), muitos sorrisos e algumas fotografias, uma hora depois ainda ali estava. Talvez mais, até. Deu inclusive para conhecer a miswak, uma espécie de escova de dentes natural com propriedades medicinais que o octogenário Mohammed usava tranquilamente.
Na verdade, é por momentos assim que eu viajo – pelo que perdi completamente a noção do tempo. Momentos de curiosidade mútua, de partilha desinteressada, de empatia com desconhecidos; daqueles em que nada é quase tudo e nada mais é preciso.
Quando por fim me meti a caminho de Ushaiqer, a bela luz matinal tinha já desaparecido, mas nem por um momento me arrependi. Até porque mais surpresas me esperavam durante o dia (a ideia original era visitar Al Ghat, coisa que acabou por não acontecer).
No dia anterior, um saudita gracejou que era melhor viajar sem grandes planos porque é normal ser convidado para ir tomar chá ou comer a casa de sauditas; e que isso demora sempre muitas horas. Mal sabia eu que, mais cedo do que tarde, iria comprovar esse presságio.
De regresso a Ushaiqer
Cheguei a Ushaiqer e, ao contrário do que imaginara, as ruelas labirínticas continuavam desertas. As casas de adobe foram abandonadas, trocadas por comodidades modernas. Ficaram os esqueletos em terra que, sem manutenção, vão aos poucos definhando. Foi por essas ruas feitas baú de memórias que me deixei enfeitiçar.
Sou absolutamente fascinado por construções de adobe e, em Ushaiqer, felizmente, tal como noutras aldeias históricas da Arábia Saudita, há um notório trabalho de restauro em curso.
Meti conversa com os trabalhadores com quem me cruzei, que novamente abriram as portas a casas antigas, até que, palavra puxa palavra, fui convidado para ir até “à quinta” de pai e filho, este último muito empenhado em me mostrar o curso das obras. Tal como os seus dois simpaticíssimos operários do Bangladesh que ali trabalhavam.
Cheguei à quinta sem saber o que me esperava. Conheci a propriedade, incluindo as galinhas, os coelhos e os cavalos, bem como as várias árvores de fruta e diferentes espécies de tâmaras. Já em casa, serviram-me duas variedades de chá, café árabe e bolachas. E o tempo ia passando. Olhei para o relógio, fiz menção de querer ir embora para ainda visitar Al Ghat, quando o anfitrião insistiu que ficasse mais um pouco, “porque a mãe estava a cozinhar” para nós. Nesse momento, esqueci a aldeia de Al Ghat (mentalizei-me que seria “igual” às outras, em jeito de defesa) e decidi aproveitar o momento. Quem sabe se teria outra oportunidade para almoçar em casa de uma família saudita!?
A comida veio demorada mas farta. Arroz e batata doce, galinha e carne de camelo, e ainda um tacho com macarrão com queijo. Não vi a mulher da família, mas pedi para agradecer a deliciosa refeição. Só quando fui convidado para novamente tomar um chá me apercebi que eram já quase quatro da tarde. Tinha apenas uma hora para voltar a Ushaiqer e conseguir fotografar com boa luz. Tomei o chá e, ao longo de vários minutos em que tirámos fotografias e me ofereceram tâmaras e fruta, tentei despedir-me. Mas era muito difícil recusar o que quer que fosse.
Pela terceira vez em menos de 24 horas, embrenhei-me então nas ruelas de adobe de Ushaiqer. Encontrei o jovem Abdul Aziz, que decidiu fazer de guia pelas ruas de adobe e me levou ao topo do terraço de uma casa. Cruzei-me com trabalhadores iemenitas. Estive à conversa com os poucos homens locais que avistei, maduros, sentados nos mesmos bancos do dia anterior.
Em Ushaiqer, o tempo parece que demora a passar. Não há relógio. É a calmaria de uma aldeia, com o seu o ritmo lânguido e tranquilo.
Disseram-me que só há quatro décadas as famílias mudaram da velha Ushaiqer – que terá qualquer coisa como 600 a 800 anos de idade – para a nova aldeia. Que se preserve o caráter único da histórica Ushaiqer é o que desejo.
Al Qasab
Na manhã seguinte, era tempo de regressar a Riade, com uma passagem pelas paisagens lunares do Edge of the World. A caminho, passei por uma pequena aldeia chamada Al Qasab e, tendo algum tempo disponível, parei para explorar mais essa aldeia de adobe.
Em frente ao carro, avistei imediatamente a chamada Al-Rashed House, recentemente recuperada. Ao lado, uma entrada imponente para a fortaleza, decorada com bandeiras da Arábia Saudita.
No interior da muralha defensiva, boa parte das casas e muros de adobe encontrava-se em muito mau estado de conservação, mas dava para notar que alguns dos edifícios estavam com as fachadas renovadas; principalmente aqueles junto à rua principal.
Tal como nas outras aldeias de adobe as ruas estavam praticamente desertas. Encontrei um homem afegão a trabalhar… e pouco mais.
Depois de caminhar um pouco pelas ruas de Al Qasab e de entrar num edifício cuja função não consegui descortinar, era altura de prosseguir viagem e rumar ao Edge of the World.
Longe da confusão da capital Riade, tinham sido dias de intensa descoberta e deslumbramento. Estava feliz por ter conhecido algumas das mais interessantes aldeias de adobe da Arábia Saudita. Valeu a pena!
Mapa: aldeias de adobe
Guia prático
Como chegar
Na ausência de transportes públicos, a única forma de visitar aldeias de adobe como Ushaiqer é com carro alugado. Note que convém alugar no aeroporto (e não nas rent-a-car da cidade) – para mais informações veja as dicas da Arábia Saudita.
Onde ficar
Da minha experiência, para além de ficar hospedado em Riade e fazer viagens de um dia para as aldeias históricas, o local mais central para explorar a região é Shaqra. Fica sensivelmente a 15 quilómetros de Ushaiqer.
Eu fiquei no Hotel Asfar, em Shaqra, e recomendo vivamente; pois oferece uma excelente relação qualidade/preço (especialmente a dividir por duas pessoas). Caso esteja lotado, há outras opções de alojamento – para distintos orçamentos -, como pode verificar no link abaixo.
Seguro de viagem
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Que delícia e inspiração para IR ler isto!!!
Muito bom, vou incluir no meu plano esta volta, que não estava prevista.