A carta de vinhos da Nova Zelândia tem perfume de mulher e corpo delicado de pele branca. Mas há mais néctares para lá do afamado Sauvignon Blanc de Marlborough, fazendo do vinho, por si só, razão de sobra para rumar aos antípodas de Portugal. A sugestão é feita pelos produtores neozelandeses.
Elas estavam já de casaco vestido, à espera que Lucy Treadwell, a gerente da recentemente premiada Martinborough Vineyard, acabasse de lhes embrulhar uma garrafa de Rose 2011. Katie Fozard e Rebecca Hill preparavam-se para pegar na garrafa, voltar a montar as bicicletas estacionadas à porta e pedalar até à próxima adega. “Este é uma espécie de fim de semana de raparigas, a meio do inverno”, explicou Katie. “Vai ser um fim de semana para beber e andar às compras. Mas não tenham medo, como andamos de bicicleta não há perigo. No máximo, encontram-nos aos ‘s’ na estrada, mas não havemos de partir a cabeça”, acrescentou Rebecca, por entre sonoras gargalhadas.
Desta vez, as duas amigas nem teriam de pedalar muito, já que a adega seguinte no seu mini-itinerário vinícola ficava praticamente do outro lado da rua. A Muirlea Rise – assim se chama a adega para onde iriam de seguida -, anuncia-se ao mundo como uma das que orgulhosamente usa rolhas de cortiça.
Estava em Martinborough, uma pequena vila na região de Wairarapa onde adegas como a Muirlea Rise e a Martinborough Vineyard se multiplicam. Têm dimensão familiar e um notório esmero na apresentação dos seus vinhos – em boa parte dos casos, mais justo seria chamar-lhes wine boutiques. Algumas delas oferecem refeições gourmet nos seus pequenos restaurantes, outras limitam-se a vender o vinho e a facilitar as provas, todas elas suficientemente tutoradas para que o menos letrado nos prodígios da uva saiba o que está a beber.
Martinbourough é uma das dez regiões vínicas classificadas no país. As instituições oficiais do turismo neozelandês desenharam um trilho turístico ligado ao vinho que começa em Napier, na região de Hawke’s Bay, passa por Wairarapa, ambos na ilha Norte, e termina em Blenheim, na região de Marlborough, já na ilha Sul da Nova Zelândia. E em cada uma dessas regiões vínicas há tours organizados para quem quer fazer provas com motorista, e também trilhos, mapas e bicicletas para quem, como Rebecca e Katie, preferir percorrer as adegas por conta própria.
Era a primeira vez que as duas amigas, nos seus vinte e muitos anos de vida, faziam o wine trail de Wairarapa. “Deixamos sempre para o fim o que temos perto de casa, não é?”, anotou Katie. Ambas moram na capital Wellington, a menos de hora e meia de viagem de Martinborough.
Fizeram-no quando o inverno se começava a instalar em definitivo na Nova Zelândia. Apesar disso, as duas amigas optaram por comprar um vinho claramente mais adequado a outras estações, pelos seus aromas dominantes a morango, melancia e outros frutos vermelhos. O Rosé faz lembrar a primavera e o verão, e talvez por isso saiba bem bebê-lo num dia como aquele, frio mas solarengo, defronte de uma lareira ou sentindo o sol de inverno por detrás da vidraça. Para Rebecca, não há calendário para beber um bom vinho. “Se pudesse, bebia todos os dias, em todos os almoços”, gargalhou, antes de sentenciar: “Faz-nos bem, é bom companheiro”.
Foi então que Katie, professora de viagens e turismo, interveio na conversa, para dizer que esse “bom companheiro” começa a ser, por si só, motivo suficiente para uma viagem à Nova Zelândia.
“Bem sei que quando pensam no nosso país lembram-se de desportos de aventura e da paisagem. Mas acho que o vinho por si só justifica uma visita e não falo só das paisagens do vinho, falo dos seus aromas! Temos aqui vinhos fantásticos, dos melhores do mundo“, reafirmou, com uma convicção tão inabalável que não resisti a desafiar: “Os melhores do mundo? E, então, a famosa França? E de Portugal, já ouviu falar?” “Tenho de ser justa e dizer que em França há excelentes vinhos. Se calhar em Portugal também, mas eu não conheço. Prefiro dizer que há vinhos que não gosto – e eu não gosto dos chilenos nem dos Chardonnay. Sou uma pinot girl”, rematou.
Lucy Treadwell puxou, então, dos galões para lembrar que os fundadores da casa estão ligados a Marie Zelie, a primeira agricultora a plantar vinhedos em Marlborough, ainda no século XIX, “porque estava com saudades de França”. A sua importância é tal que Marie Zelie merece a honra de dar nome à melhor reserva de Pinot Noir da adega.
“Ela foi a primeira a plantar nesta região. Depois foi proibido, e as vinhas foram todas levantadas mas, cá na casa, onde temos alguns dos seus descendentes, decidiu-se tentar aproveitar a qualidade do solo e trabalhá-lo. E hoje temos o melhor Pinot Noir do mundo”, garantiu, enquanto vertia para um copo meio decilitro de uma garrafa à venda por 70 dólares neozelandeses, com deliciosas “notas de chocolate e frutos vermelhos”.
Na adega da Martinborough Vineyard, na companhia de Rebecca, Katie e Judy, estava entre mulheres. Ao ponto de me ocorrer que, no novo mundo, o mundo do vinho parece ser, afinal, um mundo com corpo de mulher, de tanto se falar de perfumes e cores e sensações.
A predominância dos brancos delicados na produção do país e na carta de vinhos locais é, aliás, esmagadora, facto que parecia comprovar a teoria e me fez sorrir enquanto bebericava um Riesling adocicado.
O nariz do vinho
Quem havia de ficar feliz com a maneira como os neozelandeses olham para os seus vinhos, os bebem e os apreciam é Jean Lenoir, o francês que inventou na década de oitenta o famoso “nariz do vinho”. Ao codificar os 54 aromas que podem ser encontrados numa garrafa, não só deu vocabulário aos enólogos e sommeliers, como também deu argumentos aos meros apreciadores de vinho para justificarem porque gostam ou não de um determinado vinho. Como fez Katie.
Nos minutos em que ainda ficou à conversa dentro da Martinborough Vineyard, com a bicicleta à espera do lado de fora, avisou que não percebe nada de vinhos, não sabe bem como se fazem nem tem produtores na família. Mas sabe apreciá-los. Explicou que não gosta do Chardonnay porque “é muito pesado” e, apesar de ter tentado várias vezes os tintos, queixa-se que eles, os tintos, não gostam do seu estômago. “Eu sou definitivamente uma rapariga de brancos. E nos brancos, os meus preferidos até nem são os Sauvignon Blanc”, surpreende. “Eu gosto de vinhos florais, mas prefiro os frutados, como o Pinot Gris. Adoro! Adoro!”.
Não será necessário que todos os apreciadores de vinho tenham em casa a versão de bolso do “nariz do vinho”, para conseguir identificar o aroma de limão ou do ananás, dos cogumelos ou das trufas, da canela ou do açafrão. “Mas a verdade é que se há alguém que não goste de café ou de trufas é natural que não goste muito de algumas garrafas de Merlot”, explicou-me, dias depois, o anfitrião do Wine Centre de Napier, capital de Hawke’s Bay.
Karl estava à espera de um casal com visita agendada ao belíssimo edifício Art Deco onde o centro vínico se instalou, para cheirar e provar vinhos. A visita compreende uma visita virtual a algumas adegas (há vídeos com mensagens dos produtores dos vinhos em prova), a prova propriamente dita e, antes disso, uma passagem por uma sala de aromas criada segundo o dicionário de Jean Lenoir.
É na sala de aromas que o visitante pode testar o quão apurado está o seu nariz e, ao que parece, não há quem saia sem se ter sentido surpreendido pelo menos uma vez. “Ou porque acerta num aroma, ou porque não acerta; ou porque sentiu um determinado odor familiar e nunca imaginou que ele se encontrava no seu vinho preferido”, explicou o anfitrião. Não resisti a tentar. Identifiquei o cheiro a pêssego, não reconheci o tão familiar odor da laranja, confundi-me com inúmeras outras fragrâncias, como a amora ou a noz, estas últimas que remetem, entre outros, para um “Porto Tawny envelhecido”.
O Wine Centre de Napier foi criado há menos de três anos e é já um sucesso entre turistas locais e estrangeiros e, sobretudo, entre os viajantes de cruzeiros que aportam em Napier. “Só no ano passado, recebemos 84 cruzeiros em três meses”, confidenciou Karl, para acrescentar que os números comprovam a procura “fantástica” que o produto vinho está a ter em toda a Nova Zelândia.
Tal como o Wine Centre, a juventude é uma das principais características dos vinhedos neozelandeses, facto que pode até ajudar a explicar porque é tão agradável olhar para eles. Parece que alguém os andou a varrer, de tão limpos e ordenados (os bardos estão mesmo numerados!).
De resto, em muitos casos não são precisos químicos nem herbicidas para tratar das ervas daninhas que tiram força às videiras (as ovelhas fazem esse serviço na perfeição). Aliás, o vinho “orgânico” é cada vez mais uma etiqueta procurada pelos produtores e reconhecida pelos consumidores. Que não se importam de pagar, em média, e no mínimo, cerca de 20 dólares por garrafa. Mesmo as professoras em início de carreira, como Rebecca e Katie.
Hoje em dia, uma das grandes vantagens competitivas da indústria vitivinícola da Nova Zelândia é o facto de, internacionalmente, lhe ser reconhecida a capacidade de produzir vinhos de qualidade que justifiquem os elevados preços com que aparecem nas prateleiras. Nos supermercados da Nova Zelândia, são visíveis as assinaturas “proudly produced and owned by NZ”. Nos mercados internacionais, sobretudo na Austrália, na Inglaterra e nos Estados Unidos da América (principais destinos de exportação), os vinhos da Nova Zelândia só não são os mais caros porque ainda não conseguiram bater os franceses mas estão a aproximar-se.
E se a qualidade de um vinho é difícil de medir objetivamente, já que o paladar do consumidor será algo sempre subjetivo, parece que os pouco mais de mil produtores deste país do novo mundo têm as mãos cheias de bons argumentos para continuarem a fazer aquilo que gostam e, aparentemente, sabem.
Podem dar-se “ao luxo” de escolher entre apanhas manuais ou mecanizadas, testar novas castas, experimentar novos aromas e paladares, de investir a sério na promoção da casa e de uma marca, procurando atrair novos compradores. E, na verdade, quem ganha com isso é o visitante.
Já havia mil razões a justificarem uma viagem à Nova Zelândia, boa parte delas ligadas às atividades ao ar livre, à Natureza e à adrenalina. A informação turística é vasta, facilmente acessível e quase sempre gratuita. As opções são abundantes, especialmente para quem gosta de sair de casa. Aos poucos, o vinho vai-se afirmando como um novo íman para os viajantes, qualquer que seja a estação do ano. Lá está: não é que a professora de turismo tinha toda a razão?
E você, de que Sauvignon é que gosta mais?
Os Sauvignon Blanc são a joia da coroa da carta de vinhos neozelandesa, e aqueles pelos quais a produção do país é mais reconhecida. A casta é trabalhada em praticamente todas as zonas vínicas da Nova Zelândia, mas é das videiras que estão plantadas na região de Marlborough, no norte da ilha Sul, que sai o vinho mais apreciado.
Os primeiros a plantá-la foram os proprietários da Brancott Estate, corria o ano de 1975. Mais recentemente, a Brancott Estate construiu ao lado dessa vinha um edifício moderno para albergar o seu Wine Heritage Centre. É um edifício todo envidraçado e com vistas privilegiadas para os dois mil hectares de vinhas que o circundam, a partir de onde é possível perceber como a diversidade do terroir (aspetos únicos de um determinado lugar que influenciam as uvas que nele crescem) pode desenhar diferentes vinhos. E se dentro dos dois mil hectares da Brancott há terroirs completamente distintos, que dizer de uma região, de um país ou de um continente.
Aceitei o desafio da Brancott, que se propôs mostrar a forma como essa diversidade de terroirs molda o famoso vinho ali produzido. Na mesa de provas estavam cinco decanters. Não havia rótulos, nem era preciso, era tudo Sauvignon Blanc. As diferenças iam sendo primeiramente apontadas pela janela, e só depois sentidas no palato. Pelas janelas envidraçadas, Katherine indica uma determinada zona da quinta, antes de verter um pouco de vinho do primeiro decanter. “Esta é uma zona onde chove muito, é um terreno quente e húmido, porque há muitas pedras, que absorvem o calor de dia e o irradiam durante a noite. O resultado é um sabor tropical… a que lhe sabe o vinho?”, perguntou. A maracujá, tentei. A resposta pareceu acertada.
Depois apontou para mais perto do horizonte, para uma zona mais próxima do oceano e, por isso, mais exposta às correntes. E verteu o segundo decanter. “Este é um terroir muito diferente, um vale muito mais frio”. Foi talvez por isso que o aroma que me surgiu na mente foi o das pedras húmidas mas esse não integra o “Nariz do Vinho” de Lenoir. Foi, por isso, Katherine quem começou a descrever os aromas “mais carregados” do vinho como sendo “a toranja e o pimento verde“.
O que viria no terceiro decanter? “Vamos para um terroir que também é frio mas é mais encoberto. Reparámos que, pela disposição que têm estes bardos, a luz solar incide de um lado da videira mas não do outro. Preferencialmente, o sol deve incidir em ambos os lados, mas descobrimos que esta mistura traz resultados engraçados”, provocou Katherine. Que resultados são esses? Um vinho mais equilibrado que os dois anteriores, não tão carregado como o segundo, mas longe de ser tão frutado como o primeiro. Concordei inteiramente.
O quarto decanter trazia nova provocação: uma mistura dos três vinhos anteriores, “para demonstrar que nem sempre as misturas são nefastas, e que se pode brincar com os diferentes tipos de vinho”. Fiquei surpreendida pelo facto de ser necessário demonstrar tal evidência, já que em Portugal é comum haver múltiplas castas na produção de um vinho, quanto mais terroirs distintos. “Há quem julgue que as misturas servem para disfarçar os vinhos menos conseguidos. Mas nós não concordamos”, explicou. Nem eu. Isso seria amputar uma grande margem de criação aos enólogos e produtores de vinho.
A prova estava prestes a chegar ao fim. O quinto decanter trazia a chamada uva premium, da vinha original, toda ela tratada e apanhada à mão, como se de um tesouro se tratasse. E até poderia ter um rótulo: era um Letter Series, de 2011. Este sim, sem sombra de dúvidas, pareceu o melhor de todos os vinhos. Cheirava a limão e sabia ligeiramente a azeitona. Custa 28 dólares a garrafa.
Houve um susto, mas a colheita de 2012 está salva
A Nova Zelândia tem cerca de 1.100 produtores de vinho (metade dos quais surgiu apenas na última década) que, em 2011, conseguiram 216 milhões de litros de vinho. O país está organizado em dez regiões vínicas (Northland, Auckland, Waikato, Bay of Plenty, Gisborne, Hawke’s Bay, Wairarapa, Nelson, Marlborough, Canterbury, Waipara e Central Otago) e, em cada uma delas, a variedade do clima e as características do terreno favorecem determinados vinhos. Por exemplo, a região de Gisborne é reconhecida pelos seus Chardonnay, a de Hawke’s Bay pelos seus tintos, Central Otago e Wararapa pelo Pinot Noir. E nenhuma delas é tão reconhecida pelos seus Sauvignon Blanc como a região de Marlborough.
E 2012? O verão e o outono foram mais frios que o habitual e o sol tardou a aparecer nas alturas mais importantes para a maturação das uvas. Depois de em 2011 se terem batido os recordes de produção, temeu-se o pior este ano, e alguns produtores de Blenheim e Picton chegaram a pensar que não haveria vinho.
“Foi uma vindima estranha. Costuma ser na última semana de março e aconteceu na terceira semana de abril. E houve muito menos uvas. Apanhámos 800 toneladas, em vez das 1.400 do ano passado”, explicou-me o chileno Carlos Steven, wine manager da adega Forrest. Agora que passou, e que já há vinho feito, respira-se de alívio. “Não faz mal. O que não se fez era o vinho que se iria vender barato. O que se vai fazer, já está vendido”, explicou.
Segundo as informações oficiais da associação de produtores neozelandeses a produção de Sauvignon Blanc em 2012 foi de 181 mil toneladas, e 89,9 por cento destas foram obtidas na região de Marlborough.
Guia prático
Quando viajar para a Nova Zelândia
Se visitar as regiões vinícolas durante as vindimas, programe a viagem para os meses de março / abril, embora nos últimos anos tenha sido cada vez mais difícil prever as datas das vindimas. De resto, a Nova Zelândia enche-se de turismo nos meses de janeiro e fevereiro, por terem o clima mais quente. Maio pode ser uma alternativa interessante, com clima ameno e preços mais baixos.
Como chegar a Auckland e Christchurch
Não é barato voar de Portugal para a Nova Zelândia. Vale a pena estar atento às tarifas promocionais da Finnair e da Air New Zealand, esta última parceira da TAP na Star Alliance. Uma vez em território neozelandês, nada como a flexibilidade de alugar um carro. Se reservado com antecedência, pode ser mais barato que andar em autocarros públicos.
Onde ficar
Se viaja de caravana, o ideal em termos de poupança é procurar os parques de caravanismo de redes como Top 10 Holiday Parks ou Family Parks. Caso contrário, não faltam bons hotéis na generalidade das cidades neozelandesas. Veja a lista abaixo.
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Informações úteis
Para ajudar a planear a sua viagem sob a temática vitivinícola, visite o site oficial do Classic New Zealand Wine Trail.
Seguro de viagem
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