Deslizámos naqueles que foram, para nós, os últimos dias de neve intensa na Europa. Embalámos as bicicletas e, de passaportes na mão, olhámos uma última vez para o frio de Munique. Horas depois, aterrávamos no Cairo. O frio deu lugar ao calor, a organização ao caos, as caras sérias a caras sorridentes. Welcome to Cairo, my friend. A aventura «fora de casa» tinha começado.
Zurique resume-se, para nós, a uma casa: do João, da Valèrie, do Yasha e do Sinai. Os dois primeiros, os pais, foram a nossa inspiração para todas estas viagens de bicicleta. Eles aventuraram-se na estrada depois de um dia em que brincavam com os amigos e disseram: “Qualquer dia vamos de bicicleta até à China“. E foram – assim como nós o fazemos neste momento. Partiram com o intuito de dar a volta ao mundo em três anos mas, só pela Ásia, ficaram-se quatro anos, entre paragens de dois dias e paragens de quatro meses. Fomos convidados a ficar em casa deles, depois de um amigo do casal ter descoberto o nosso blogue e de nos por em contacto.
Chegámos completamente esgotados, depois de termos passado doze horas na rua a pedalar e a morrer de frio, incluindo duas horas perdidos na cidade, e de termos que subir uma estrada com uma inclinação de dezoito graus ao longo de mais de dois quilómetros. “Não há bela sem senão” e o ditado aplicou-se na perfeição.
Quando a Valèrie nos abriu a porta, porém, todo o cansaço desapareceu e desfizemo-nos em sorrisos. Ficámos de imediato com a sensação de que todo o esforço vale, de facto, a pena. A semana passada em Zurique acabou por ser uma das mais fantásticas da nossa viagem. Por entre paisagens impressionantes, descidas em trenó e voltas pela cidade, foram no entanto os momentos em redor da mesa de jantar os mais gratificantes. Na despedida, as lágrimas caíram, pois claro, mas logo acelerámos os “adeus”, ficando assim a certeza que esta seria uma de entre muitas despedidas entre todos.
Aos dias cheios de calor humano, seguiram-se dias de temperaturas que nunca passaram os dois graus negativos. A Alemanha esperava-nos ainda com mais neve que a Suíça, ainda com mais frio. Num dos dias, enquanto pedalávamos entre Kempten e Lindsberg, e depois de termos parado numa pequena capela para nos tentarmos aquecer um pouco e comermos qualquer coisa, o nosso corpo arrefeceu tanto que, regressados à estrada, perdemo-nos e entrámos numa pequena aldeia onde nos abrigámos numa paragem de autocarro. Depois de bater à porta de uma casa para pedir informações, encontrei a Tanya gelada dizendo-me: “Não quero ir lá para fora. Não quero sair daqui.” O frio e a dor por ele causada eram terríveis, mas, minutos depois, alguém nos perguntava se nos queríamos aquecer dentro de casa. “Sim, queremos, obrigado!”. A família recebeu-nos maravilhosamente e até o almoço era todo vegetariano.
Mais tarde, lançaram uma ideia para o ar: “Porque não apanham o comboio? Fica a apenas 15 quilómetros daqui e, como o tempo está, é muito arriscado meterem-se na rua assim”. Uma hora mais tarde, as bicicletas completamente desmontadas foram encaixadas na bagageira do carro. Não cabia nem mais um saco. Decidimos seguir diretos para o aeroporto. Era já noite quando chegámos, depois de termos mudado três vezes de comboio, num exercício arriscado de transportar bicicletas e atrelados de um comboio para outro. Em Halbergmmos preparámos tudo para voar, desmontando mais uma vez as bicicletas para serem empacotadas devidamente para poderem viajar connosco.
No aeroporto, o monitor indicava Kairo / Cairo e nós estávamos ansiosos por entrarmos no avião. Ansiosos, principalmente, por mudar de clima. Mas também ansiosos por uma cultura diferente, uma religião diferente, enfim, ansiosos por mudar. Depois de quase duas horas de atraso por causa de uma tempestade e cinco horas de voo, chegávamos finalmente ao Cairo, onde a forma como nos deram as bicicletas fez-nos perceber que sim, tínhamos mudado de continente. Tivesse sido na Europa e tínhamos insultado alguém, mas no Cairo um dos empregados virou-se para nós, apontando para o outro que “transportava” as bicicletas dizendo: “Good work! Nice guy!” – esperando com certeza uma gorjeta que não chegou.
“Welcome to Cairo” é a frase que mais ouvimos desde que aqui chegámos. Isto para além da famosa “You want to see my shop? It’s free!“. Não raras vezes, alguém aparece dizendo que é professor de inglês ou que é artista e que, sabemos nós, nos levará a qualquer lado onde ganha comissão. Característica comum? Todos garantem adorar Portugal e “têm” alguém da família lá – sempre em Lisboa.
Ao sairmos do aeroporto, percebemos que a tarefa de pedalar no Egito não ia ser fácil. Os sinais de trânsito não se fazem respeitar. Os semáforos não se fazem respeitar. As passadeiras não se fazem respeitar. Os polícias não se fazem respeitar. Os peões, as pessoas, a cidade não se respeita, vive num caos organizado cheio de buzinas que tocam sem sentido, de pessoas que caminham pela estrada porque os passeios são inexistentes ou estão cheios de lixo e obstáculos, de poluição que sufoca, de uma confusão infinita que, ao primeiro contacto, nos stressa demasiado mas que, à medida que vamos conhecendo a cidade, se entranha em nós facilmente. É preciso estar atento ao caminhar pelo Cairo, tanta é a informação. Não há um dia igual e a cidade nunca descansa, sempre em contínuo movimento, lojas sempre abertas, ruas que nunca dormem. É, apesar de tudo, a cidade onde, até agora, nos sentimos mais seguros. Podemos caminhar a qualquer hora, por qualquer sítio, sem que nada nos preocupe.
O trajecto por alguns locais ditos turísticos é obrigatório, mas o mais interessante no Cairo é caminhar sem mapa, sem destino, apenas ir. Ver uma rua e entrar, chegar ao fim e virar sem pensar, entrar num qualquer café para um chá, pedir um koshari numa banca de rua, falar com alguém que está sentado sem fazer nada e discutir, apesar de muito superficialmente, sobre futebol. E é quando se puxa por este assunto e descobrem que somos de Portugal que, obrigatoriamente, alguém quase nos grita emocionado pela grande glória do futebol lusitano em terras egípcias: “I love Manuel José. All Egypt loves him!“, terminando em tom de apelo saudoso com um “please, come back Manuel José; we love you“.
O projecto Eurásia é uma viagem de bicicleta entre Portugal e Macau, com passagem pela Europa, Médio Oriente e Ásia Central e 19 meses de duração. Ao longo de todo o percurso foram publicadas crónicas com periodicidade média quinzenal.
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