A capital do Tajiquistão mostrou-se um lugar sem interesse. Com a mente focada na Pamir Highway, e a partir do momento em que começámos a pedalar com o Afeganistão ao nosso lado, a adrenalina acompanha-nos em cada quilómetro. A paisagem é belíssima, as pequenas aldeias afegãs pitorescas, a estrada em péssimo estado sem qualquer segurança e com o rio, ao lado, uns 300 metros abaixo, arrepiante.
Permanecemos em Dushanbe o tempo suficiente para vermos o pouco que a cidade tem para nos oferecer, para a Tanya recuperar de mais uma má disposição que durou pelo menos dois dias e que afectou todo o aparelho digestivo, para experimentarmos diferentes paladares que iam da comida de “hospital”, insonsa e sem sal, à transformação da gastronomia local com especiarias portuguesas e um “je ne sais quoi” de conhecimento à volta dos tachos, aos poucos passeios em volta da cidade em busca de algum material para as bicicletas que, imaginávamos nós, uma capital pudesse ter.
À parte isso, Dushanbe é uma cidade com grandes parques verdejantes, com grandes avenidas herdadas do tempo em que os russos ali mandavam, com grandes estátuas e monumentos inestéticos em beleza e em dimensão construídas há mais de 30 anos, e outras bem mais recentes que demostram que a URSS pode ter saído mas que o mau gosto ainda impera. Com enormes edifícios que vão do cor de laranja ao grená, ou mesmo ao azul “cueca” que, desconfiamos, são grandes demais para a quantidade de pessoas que lá trabalha.
Polícias, esses, há-os por todo o lado, às dezenas, partilhando as grandes avenidas centrais com as poucas viaturas privadas que circulam e com os poucos autocarros que deslizam ruas abaixo numa lentidão de irritar mas que, pela experiência, chegam sempre a “bom porto”, mesmo que atrasados. À mistura com tudo isto, uns tantos restaurantes com comida – dizem – ocidental e chinesa que, apercebemo-nos uns dias mais tarde também, noutra cidade com os mesmos restaurantes, têm um grande menu, mas pouca escolha.
Deixar o hostel que nos recebeu durante aqueles 5 dias foi uma boa sensação. Estávamos a caminho de um dos maiores desafios desta viagem, um dos destinos pelo qual tanto esperámos, uma das mais míticas estradas em todo o mundo, a grandiosa Pamir Highway!
Até lá, teríamos pela frente pouco mais de 500 quilómetros que, pensávamos nós, seriam facilmente circuláveis depois de todas as estradas em más condições pelas quais passámos anteriormente e que nos trouxeram até aqui. Errados, mais uma vez. Os 7 dias que passámos nesta indescritível estrada – pela beleza das paisagens, pelo mau estado do pavimento, pela altura da passagem que fizemos, pelo acolhimento de que fomos alvo, pelo calor que sentimos – acabaram em mal. Numa distância de 5 quilómetros apenas, demos por nós parados, sem nos conseguirmos movimentar mais um metro que fosse, à boleia de um camião que com pena de nós, nos levasse até Khorog. Mas já lá vamos.
A estrada leva-nos dos 800 metros acima do nível do mar da capital do Tajiquistão, à Saghirdasht Pass a 3.252 metros de altura, por um percurso a que chamam a Estrada de Verão, pois só é circulável a partir do fim da primavera, quando a água do fortíssimo Rio Panj o permite. Ao circularmos por esta estrada e após passarmos a cidade de Kala-i Khumb, vemo-nos frente a frente com outro país: o Afeganistão. A sensação é estranha.
Não sei explicar se é receio, medo de toda a informação que nos formata a cabeça, se uma ansiedade de “saltar” o rio que divide os dois países e dar uma espreitadela ao outro lado (até porque o visto é dos mais fáceis de tirar), ou se apenas me sinto bem por estar ali, em segurança, sabendo que mesmo com todas estas más condições do caminho, com a falta de comida para nos alimentarmos, e com os avisos de “Perigo: Minas anti-pessoais” no leito do rio, deixadas da guerra entre a URSS e o Afeganistão, nada me vai com certeza acontecer de grave. Não sei se é um misto de tudo isto e saber que nos próximos 350 quilómetros, vou ter sempre o país mais “perigoso” do mundo, lado a lado, com algumas das aldeias mais bonitas e verdes que vi até agora.
Deste lado, os jipes atravessam a grande velocidade, os camiões destroem ainda mais a estrada e as pessoas que habitam nas pequenas vilas que vamos atravessando podem, pelo menos, utilizar algum meio de transporte, ter electricidade em casa e, se algum dinheiro tiverem, podem até conseguir água corrente. Do outro lado, apenas casas feitas em terra e argila, os campos de cultivo divididos por grandes muros em pedra e as cascatas que correm da montanha e que trazem a água mais pura que se possa imaginar.
As pessoas, essas, vivem no isolamento e para chegarem a uma qualquer cidade com dimensões mínimas, terão com certeza de caminhar durante 2 ou 3 dias, por um trilho traçado na montanha e com sorte, se nenhuma derrocada lhes bloquear o destino ou as atirar ao rio, chegarão sãos e salvas! Electricidade, nem vê-la. Desenvolvimento, nem vê-lo. Futuro, quem sabe? No entanto, numa das nossas muitas paragens, um local que trabalha no Dubai, fez-nos saber que “pelo menos no Afeganistão, as crianças aprendem inglês na escola e podem, um dia se tudo correr bem, comunicar melhor com quem vem de fora. Aqui, aprendemos tajique e russo e, posso garantir-vos, não servem para nada” e nós pensamos o que será melhor, se viver em segurança e sem problemas com guerra e religiosos radicais, se aprender inglês. Venha o diabo e decida.
Na nossa passagem por Kala-i Khumb ou Tavildara, como é normalmente conhecido, comemos num restaurante uma boa refeição, descansamos para o que vem a seguir e abastecemo-nos de legumes, leite em pó, massas e de tudo o mais um pouco, pois sabemos que dali até Khorog, poucos sítios teremos onde nos abastecer. Água, essa, felizmente não faltará! Corre lá de cima, da montanha, gelada, pura e atravessa-se no caminho frequentemente! À noite e depois da Tanya ter tido um furo que a obrigou a carregar o atrelado na bicicleta na própria bicicleta, porque não tínhamos nem cola para o remendar nem uma câmara-de-ar extra, acampámos com o casal inglês com quem viajámos durante quase duas semanas, no leito do rio e à noite, pela primeira vez, sentimos tanto frio que utilizámos até algum material de Inverno.
No dia seguinte, pedalámos com um calor abrasador os 32 quilómetros que nos ligam à passagem a 3.252 metros de altitude em 5 horas e meia. Demasiado lentos, pois a estrada não permitia outra coisa. No topo, cansados, cheios de calhaus e terra batida, saltámos de alegria. A primeira passagem estava feita. Agora só nos faltam mais quatro, todas elas a mais de 4.000 metros. O caminho continuou mau, muito mau. Fazíamo-lo devagar, fatigados do dia anterior, mas também com tempo no nosso visto no país. Queríamos aproveitar ao máximo cada curva, cada paisagem, cada momento que pudéssemos desfrutar com calma, sem pressas.
Porém, ao sair de um restaurante onde nos tentaram levar mais dinheiro – mais uma vez – a corrente da minha bicicleta partiu. Não tínhamos outra. Tentei desenrascar com uma pedra e consegui, à falta da ferramenta que nos roubaram na Turquia. Uns cinco quilómetros depois, deixei de ver a Tanya e quando menos esperava, aparece ela a correr, aos gritos, dizendo que a bicicleta tinha parado, que não conseguia andar nem mais um metro. O pior tinha acontecido, não com a bicicleta, mas com a grelha de suporte da bagagem. Os parafusos tinham-se partido e ficaram dentro do quadro. Impossível tirar. O atrelado tinha deixado de rolar uns quilómetros atrás. A minha corrente tinha partido. As mudanças da Tanya deixaram de funcionar. O ânimo estava em baixo.
Estávamos ali, no meio do nada, sem maneira de nos mexermos, com mais de 40 quilos de bagagem às costas sem solução para a carregarmos. Tentámos um camião. Queria dinheiro. Não! Tentámos um jipe. Queria 100 dólares. Não! Tentámos outro camião e um russo salta lá de dentro e uma hora depois estávamos a caminho de Khorog, a 170 quilómetros dali, onde começa a Pamir Highway.
No primeiro dia, ficámos logo a saber que não existia nenhum mecânico de bicicletas, que não existia nenhum local onde adquirir, pelo menos uma corrente para as nossas “meninas”, que ninguém percebia minimamente desta coisa a que chamamos mudanças. Tudo boas notícias. O ânimo estava ainda mais em baixo. As bicicletas todas desmontadas e sem solução à vista. “Conseguiremos fazer a Pamir Highway em duas rodas?”, foi a questão que nos colocámos.
Uma semana depois, ainda aqui estamos.
O projecto Eurásia é uma viagem de bicicleta entre Portugal e Macau, com passagem pela Europa, Médio Oriente e Ásia Central e 19 meses de duração. Ao longo de todo o percurso foram publicadas crónicas com periodicidade média quinzenal.
Seguro de viagem
A World Nomads oferece um dos melhores e mais completos seguros de viagem do mercado, recomendado pela National Geographic e pela Lonely Planet. Outra opção excelente e mais barata é a IATI Seguros (tem um seguro para COVID-19), que não tem limite de idade e permite seguros multiviagem (incluindo viagens de longa duração) para qualquer destino do mundo. São os seguros que uso nas minhas viagens.
Deixe uma resposta