Por montanhas que já viram passar Marco Polo, as bicicletas continuam a rodar contra o frio, as subidas e até a neve. São picos nevados a toda a volta, é o deserto no topo do planalto, é a China mesmo ali ao lado que lhes lembra que estão cada vez mais perto. Conta-se que partiram cautelosos, e que estão cada vez mais perto do fim. Relato das pedaladas ao longo da mítica Pamir Highway.
Conta-se que depois de uma semana, os dois partiram. Conta-se que viram antes partir uns amigos que, com eles, haviam feito os últimos quilómetros até Khorog. Conta-se que tiraram fotos de grupo, que se abraçaram, que desejaram o melhor, um caminho sem furos nos pneus – que curiosamente só a eles lhes acontece – e com boa saúde – que felizmente, só quase aos outros acontece (ruindade no corpo, diz-se) -, que prometeram encontrar-se mais tarde, noutro qualquer país, com outro qualquer idioma. Algumas lágrimas escorreram cara abaixo. Afinal de contas, tudo partilharam nas últimas duas semanas: os jantares, os infortúnios do caminho, as borbulhas na pele, os sonhos gastronómicos, os espaços para a tenda e mensagens de apoio, de força, de um “vamos lá subir esta montanha” até, já no topo, um “conseguimos”. Conta-se que partiram dois dias depois dos outros e que tomaram diferente rota. O material não tinha reagido muito bem nos últimos quilómetros e cedera, pelo que teriam de ser mais cautelosos e pedalar por melhores estradas, não correndo riscos.
Houve quem os viu, umas dezenas de metros à frente a puxar as bicicletas estrada acima, já cansados, depois de uma semana a fazer nada, praticando somente o exercício de comer. Pouco desporto, portanto. Houve quem lhes acenasse e eles, mesmo que quisessem, só um sorriso em troca soltaram, pois as mãos, essas, iam coladas à bicicleta. Passaram pelo veículo, que já não é um veículo, que marca o início da Pamir Highway. Miúdos corajosos saltavam para dentro de uma gelada piscina improvisada. Houve até quem lhes repetisse uma série de vezes que sim, que estavam na estrada certa, pois não se queriam enganar nem um metro, num trajecto onde um caminho plano era uma raridade.
Os primeiros picos começaram a aparecer, contam. Neve, gelo, água que escorregava montanha abaixo, enchendo os canais e dando de beber aos campos. No primeiro posto de controlo, queriam dinheiro com certeza, argumentando que o visto não estava correcto e que teriam de voltar para trás. Bateram o pé e até um fuck soltaram, quase arranjando um “trinta e um”. Às vezes, é tudo uma questão de tempo e lá continuaram, estrada acima. A vista, vê-se pelas fotografias, era enorme, com pequenas aldeias a colorir doutras cores que não o verde o imenso da paisagem que, a pouco a pouco, deixou de ser verde e ficou castanha, árida, desértica.
Custava-lhes cada vez mais respirar, tamanha era a altura do que viam. Paravam quando avistavam água, enchendo tudo o que tinham à mão, para que na hora do almoço não lhes faltasse o líquido para cozinhar. Antes de acamparem, repetiam o processo e repetiam o mesmo prato do almoço, com um ou outro ingrediente a mais. Muitas vezes, porque se sentiam sujos, ou porque o dia tinha sido mais longo do que esperavam, olhavam-se e, sem falarem, procuravam um sítio onde ficar, mesmo que isso exigisse pagar. Não há nada melhor que chegar ao fim do dia e tomar um bom banho, comer uma boa comidinha caseira – mesmo que só de batatas e arroz se tratasse – e dormir numa boa caminha desengonçada – mesmo que, uma boa meia hora depois, saltassem para o chão por achá-lo mais confortável. No dia seguinte, depois de um bom pequeno-almoço, sentavam-se nos selins das suas bicicletas e partiam.
Pelo caminho, encontravam quase ninguém. Pelo caminho, encontrava-se quase nada. Um ou outro homem perdido, caminhando sabe-se lá para onde. Mais uma estrada esburacada. Uma dúzia e meia de iaques que pastavam e os olhavam com indiferença. Um lago azul, que reflecte há centenas de anos a mesma montanha nevada. Pelo caminho, tudo igual e só eles os dois se mexem. Pararam e, comemorando mais um porto de montanha, saltam para a fotografia. A eternidade no ecrã da máquina digital. Contentes, concordam ser o melhor salto que deram até hoje. Alto, bem por cima dos picos nevados, revelando tudo o que sentem: alegria e liberdade.
Murgab é a cidade que se segue, pousada num verdejante vale atravessado por um rio. Aí, respiram fundo e tiram três longos dias de férias. Encontram outros ciclistas, trocam experiências, falam e comentam, todos eles, o mal que o caminho lhes fez. Queixam-se das subidas, sempre as subidas, mas lembram o orgulho que sentem quando atingem o topo, sempre o topo, porque depois é sempre a descer. Ao longe, espreitam a China e sonham-na cada vez mais perto.
O percurso continua à esquerda e faz-se com dificuldade. A respiração é fraca. O frio aperta. À noite, até a neve cai, mesmo que pouca, lembrando-lhes que estão em agosto. Existe pouca água e a que têm, é acastanhada, logo enganada com um sumo em pó que cobre, pelo menos aparentemente, todas as bactérias que possa ter. A última montanha, a mais alta, está ali mesmo ao lado, pronta a ser ultrapassada. Diz-se que suaram muito. Que pararam vezes sem conta. Que soltaram até algumas asneiras, os mal-educados. Que empurraram a bicicleta do outro. Que se perguntaram vezes sem conta o que os tinha levado ali. Que, no fim, quando uns amigos lhes assinalaram a linha de meta, entenderam mais uma vez o porquê de tudo isto, o porquê de fazerem o que fazem: porque só assim sabem viver.
A descida teve de esperar. A paisagem era grande demais para tão pouco tempo passado a olhá-la. Não conseguiam absorver tudo. A Pamir Highway estava ali toda, aos seus pés e eles nem sabiam explicar o sentimento. Ficaram sozinhos. Cobriram-se de roupa, pois o Inverno daquele agosto era rígido e pedalaram terra batida abaixo.
A China acompanhava-os mesmo ali ao lado, quase invadindo a estrada por onde circulavam. Ao longe, enquanto uma longa recta os levava ao grande lago criado por um meteorito há 10 milhões de anos, viam já o Quirguistão, o próximo destino. Por enquanto, escolheram ficar por ali, contam, em Karakol, a última vila antes do fim do país. O azul intenso da água contornando o castanho da terra é indescritível. O vento sopra com força, muita força, lembrando que os últimos metros não serão fáceis. Falta pouco, muito pouco para a China. A ansiedade começa a apertar, pode ver-se nos seus olhos.
O projecto Eurásia é uma viagem de bicicleta entre Portugal e Macau, com passagem pela Europa, Médio Oriente e Ásia Central e 19 meses de duração. Ao longo de todo o percurso foram publicadas crónicas com periodicidade média quinzenal.
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