Pasmámos num país onde a comunicação não é fácil. Tudo novo para nós: sabores, cores, luzes espalhafatosas, obras desproporcionais, tecnologia de ponta. Pasmámos num país que é grande, e que quer ser muito maior, mas onde as pessoas ainda não estão preparadas para isso. Falta tempo para elas, falta espaço, falta sensibilidade. Tudo virá, um dia.
Na quase contínua e grande descida que nos levou até ao país do sol nascente, as nossas bicicletas rolaram num perfeito tapete de asfalto com que a China, mais tarde, sempre nos continuou a servir! Vimos, pela primeira vez em meses, linhas a demarcar a estrada, sinais a assinalar obras, desvios e toda uma série de avisos que nos faziam pasmar de admiração, como se isso fosse uma coisa anormal para nós! Foi, durante quase três meses, na Ásia Central.
À entrada do país mais povoado do mundo, os sorrisos na fronteira sucediam-se. Os militares e polícias, ao contrário dos países anteriores, receberam-nos com uma simpatia a que não estávamos habituados. Desabituados também estávamos nós à tecnologia e qual melhor país para ver tudo o que existe de novo, do que a China?
Medidores de temperatura, raios X, scanners para passaportes, touch-screen, um rol de aparelhos digitais e de última geração ocupava o posto fronteiriço! O rigor começava no seu estado mais puro, na tecnologia e na maneira de ser e das pessoas se comportarem. Oficiais fardados em posições que mais pareciam bonecos, sem mexer um único dedo, tudo muito oficial, pareceu-nos. Uma linha amarela no chão demarcava o sítio onde tínhamos de esperar em fila. Em fila, repetimos e à menor saída da fila, lá estava o oficial a rigor a indicar-nos que teríamos de voltar a ela. No fim, mal o carimbo assentava no passaporte, quatro botões se acendiam ao nosso lado direito para que avaliássemos o trabalho feito pelo polícia dentro do balcão: Nada Satisfeito; Satisfeito; Muito Satisfeito; Perfeito! Passámos à frente, sem clicar algum botão. Tecnologia tudo bem, mas nem tanto.
Deslizar na China, até Kashgar, mostrou-se uma tarefa fácil. A China, com grandes estradas desproporcionais ao tamanho das cidades, com ecrãs com informação que a atravessavam com símbolos incompreensíveis, edifícios grandes demais, para quem vier, todos eles vazios. Plástico, muito plástico, imenso plástico. Carros com vidros escuros, a penúltima moda na China a juntar a dezenas de motorizadas eléctricas, a última moda. Ficámos num hotel fora de moda e depois de jantar, a polícia esperava-nos à porta para nos mudar para outro hotel, maior, bem melhor, porque aquele hotel barato não tinha autorização para acomodar turistas! Era o início de uma série de regras a que não estávamos habituados. Uma série de regras às quais não nos quisemos habituar.
Kashgar não é China, percebemos isso após quase duas semanas na cidade. Kashgar quer ser China. Melhor, a China quer que Kashgar seja China. Mas não é. Uma cidade com uma história que vai para lá do tempo, marcada pela importante Rota da Seda, uma mistura de culturas, etnias, idiomas que, ainda hoje, vence no confronto com a China. A grande potência tenta e vai ganhando pontos, enchendo a cidade de chineses Han (os “verdadeiros” chineses), como o faz em todo o mundo. “A cidade mudou radicalmente nos últimos anos”, dizem-nos, e isso é visível quando nos posicionamos na ponte que atravessa o grande lago artificial que ali nasceu: de um lado, a China, com prédios cheios de luzes de todas as cores, pavilhões de exposições, bares, restaurantes, espelhos de água. Do outro lado da ponte, Kashgar, com casas feitas em barro, terra e tijolos desfigurados, toda uma cultura muçulmana que a China quer apagar. Uma visão do outro mundo.
O que percebemos também é que, na China, é muito complicado comunicar. Não com a etnia original daquela zona, os Uygurs, de origem na Ásia Central, com esses tudo é simples, mesmo que não falemos o mesmo idioma. Porém, com os Han é, além de uma tarefa árdua, complicada e de fácil desistência, um desespero. Ao longo das duas semanas que ali passámos e depois, no caminho que fizemos até à fronteira com o Paquistão, intrigava-nos esta comunicação impossível. Como é que conseguimos “falar” em todos os países até agora e na China, isto mostrava-se impossível. Lemos, relemos, perguntámos, procurámos em livros, observámos pessoas, os comportamentos, os gestos, a atitude, em vários lugares da cidade onde passámos algum tempo: supermercados, no hostel onde estivemos alojados, nos correios, na rua e acabámos por compreender quando juntámos a história do país, aos momentos desesperantes que passámos a tentar comunicar.
A ideia que tínhamos da China estava totalmente errada. O que percebemos foi que a maioria da população não está “programada” para pensar, mas sim para agir. É impossível tentar explicar alguma coisa com gestos: não vão entender. É impossível perguntar ao homem do talho onde se pode encontrar um carregador de telemóvel, ele não vai entender, pois só sabe trabalhar com carne. É impossível tentar dizer qualquer coisa em mandarim porque eles não vão entender, nem fazer o mínimo esforço para isso. Chegámos à conclusão que a cultura copy/paste, a ter uma origem, é aqui! As pessoas, por causa de todos os desenvolvimentos históricos do país, por causa de toda a formatação, as obrigações, cingem-se ao que sabem, ao que lhes mandam fazer. “Vês isto? Desmonta, copia e volta a montar. Não tens que perceber como trabalha. Trabalha, é o mais importante. Faz igual”. “Durante quanto tempo?”, pergunta o trabalhador. “Toda a vida!”, responde o empregador. E a vida acaba aí, no copy/paste.
Metemo-nos a caminho, depois de chegada a nova bicicleta da Tanya que a Specialized nos enviou de Shangai mostrando-nos, mais uma vez, que não brincam em serviço e que apesar de não os conhecermos pessoalmente, estão sempre lá, como uns Super-Heróis, como já lhes chamámos! Dali para a frente, um dos momentos mais esperados desta viagem: pedalar na grande e mítica Karakorum Highway, que liga Kashgar, na China, a Islamabad, no Paquistão! São 1.200 quilómetros num percurso que é considerado uma das maiores obras de engenharia do mundo e atravessa a estrada asfaltada mais alta do mundo, a Kunjarab Pass, a 4.700 metros de altitude. A estrada divide os dois países e passa pela maior concentração de picos nevados e glaciares do mundo. Impressionante na descrição, imagine-se enquanto se pedala!
A paisagem muda radicalmente após noventa enfadonhos quilómetros e começa a crescer à nossa volta sem aviso. Ao fundo, começamos a aperceber-nos de rochas que se escapam para lá das nuvens, que nos acompanharam até ao Lago Karakol. Ao acordarmos, a visão é imponente demais para que possa ser passada em palavras. A estrada que corta o planalto em tons acastanhados, vê surgir por detrás picos com mais de 7000 metros, brancos, gelados, com glaciares aos seus pés! O Karakol foi “colocado” ali para aumentar ainda mais a beleza do local, espelhando a natureza no seu estado mais bruto!
A próxima etapa chamava-se Tashkurgan e, a partir dali, não mais poderíamos pedalar até entrarmos no Paquistão, sendo obrigados a passar uma meia dúzia de horas num autocarro desconfortável que nos leva, escoltados por vários militares chineses, até Sost, onde receberemos o nosso visto para o país mais falado na actualidade. A razão de não se poder viajar e atravessar a Kunjarab Pass por nós próprios, ninguém sabe explicar, muito menos os militares que à mínima pergunta, só sabem responder uma coisa: “Go to bus“, ou não estivessem eles programados para isso. Copy/Paste!
O projecto Eurásia é uma viagem de bicicleta entre Portugal e Macau, com passagem pela Europa, Médio Oriente e Ásia Central e 19 meses de duração. Ao longo de todo o percurso foram publicadas crónicas com periodicidade média quinzenal.
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