O país centro das notícias de terrorismo mostrou-se um dos mais fáceis e bonitos por onde viajámos. O norte montanhoso foi, no entanto, a cereja em cima do bolo. As três maiores cadeias montanhosas do mundo juntam-se ali, na Karakorum Highway, e só isso basta para imaginar a beleza de tudo o que nos rodeia. A juntar a isto, o facto das pessoas serem de uma simpatia indescritível. O Paquistão é, sem qualquer dúvida, um destino com futuro. Um futuro que talvez não esteja nas mãos do país.
Entrámos no Paquistão por uma estrada deplorável, descendo dos 4.750 metros de Khunjerab Pass e saímos do Paquistão por uma estrada em boas condições, a 300 metros acima do nível do mar. Pelo meio, quase três semanas num dos países que mais nos surpreendeu nesta viagem. Se é verdade que antes havíamos vindo de Xinjiang, que não é bem China, a verdade também é que entrámos no novo Paquistão pela região que é conhecida como as Northern Areas, onde pedalámos pelo Hunza Valley, que não é bem Paquistão.
Chegados a Sost, sem visto para entrar no país, todo o trabalho foi facilitado: toda a gente falava inglês, os sorrisos sucediam-se de cara em cara e mesmo a regra de termos de tirar o visto no nosso país se lá tivermos uma embaixada do Paquistão foi deixada para trás, em prol da boa imagem que o país quer deixar aos turistas.
Tudo fácil e um alívio para quem chegava da China, onde a burocracia é imensa, onde temos de responder a mil e uma perguntas e onde eu quase ficava retido pela simples razão de, ao olharem para o meu passaporte, me dizerem que aquele não era eu. “Então quem é?”, perguntei, “é a primeira vez que me acontece isto!”. Depois de insistir que a fotografia já tinha mais de sete anos, de mostrar todos os cartões oficiais em minha posse e mais umas quantas fotografias, de passar o teste do “sorria”, “agora abra a boca”, “agora fique sério”, “levante mais a cabeça” e “abra mais os olhos”, lá consegui que me deixassem sair da China.
Estávamos fartos daquele autocarro obrigatório, escoltado pela polícia chinesa – sem que tivéssemos percebido a razão – mas que correu livremente montanha abaixo no Paquistão. Porém, preferíamos pedalar, e logo que tivemos as bicicletas nos pés pedalámos para o primeiro hotel que encontrámos, a fim de descansar de tanto buraco na estrada. Tudo muito limpo, a comida divinal e a simpatia fantástica. E assim continuou nos dias seguintes, quando dali descemos até Passu, onde viemos para uma noite e ficámos três, avistando os glaciares mesmo à entrada da povoação, os picos nevados a toda a volta, deitando toda a adrenalina cá para fora enquanto atravessávamos a ponte suspensa e desfrutando a paz da pequena aldeia.
O dono do hotel, o último prisioneiro do Baltit Fort – soubemos mais tarde aquando da visita ao Forte, em Karimabad – preparava o jantar só para nós e ficava ali, a trocar umas palavras connosco até acabarmos o delicioso menu. Pela frente, tínhamos agora um grande lago de 32 quilómetros que teria de ser atravessado de barco. Até 2010, a Karakorum Highway corria livremente vale abaixo, mas a queda de uma montanha em 2010 bloqueou o rio e criou um lago que cobriu a estrada e quatro aldeias por completo. A travessia do lago demora quase duas horas, num barco colorido e barulhento, fazendo paragens nas povoações que ficaram separadas do mundo pela água, sendo o barco a única forma das pessoas poderem sair dali. Por fim, quando finalmente as bicicletas voltam ao chão, segue-se a etapa mais difícil de todo o percurso. Um único quilómetro faz-nos soar mais do que 500 quilómetros de estrada. O caminho traçado por entre as pedras da derrocada é tão íngreme e poeirento que chegamos ao fim do trecho num estado de sujidade impressionante.
Com um banho na cabeça, percorremos caminho até Karimabad, umas das nossas paragens favoritas. Mesmo cansados e vendo a cidade lá em cima, no topo da montanha, a ideia de uma vista lindíssima quando acordássemos, a juntar a um belo duche e um enorme jantar, deu-nos forças para chegar ao hostel. Já entre amigos – viajantes que vamos encontrando uma e outra vez nesta viagem – e com a janela do quarto virada para 7.500 metros de montanha, desfrutámos de um jantar comunitário, onde por 4 euros para duas pessoas, comemos até cairmos para o lado, no sossego das nossas camas, sem que conseguíssemos dizer mais nada que não fosse: espectacular!
Karimabad é aquele sítio a que se chega e que se sabe que será complicado dali sair. Estamos no centro da história do Hunza Valley. A toda a volta a natureza no seu estado mais puro. Uma história milenar. Fortes lindíssimos com prémios atribuídos pela UNESCO. Aldeias mesmo ao lado com uma arquitectura belíssima. Caminhadas que se podem fazer, saltando de montanha em montanha. Pessoas de uma simpatia sem limites. Projectos inovadores a nível de trabalho com mulheres, de ecologia, de tecnologia. Segurança. Mistura-se tudo e o que se serve é uma bela estadia num dos locais mais belos! Deixar para trás a povoação, quatro dias depois, lá está, não foi fácil.
Pelo caminho, acampámos numa cidade sem nome, já a noite ia avançada, depois de termos tido um pequeno problema técnico. No outro dia, mal dormidos e mal “pequeno-almoçados”, seguimos até Gilgit, onde ficámos mais tempo do que o previsto, por causa duma tempestade que se abateu e que provocou mais uma série de derrocadas que bloquearam a estrada por onde prosseguiríamos. Gilgit nada tem de interessante, a não ser que queiramos sair uns bons quilómetros da cidade.
É uma cidade fulcral na zona, ponto comercial e ligação entre o país, a sul e as aldeias a norte. Desorganizada, caótica e apinhada de restaurantes, Gilgit é só mesmo isso: um ponto de passagem. Após quatro noites, seguimos para Islamabad num autocarro amarelo que demorou 22 horas a fazer seis centenas de quilómetros.
A região, disse-nos a polícia, os locais e alguns viajantes, não oferece segurança suficiente para ser pedalada. Mas pode fazer-se? Pode, mas corremos sempre o risco de ser apedrejados por pessoas das povoações, sermos assaltados ou mesmo chegarmos a Islamabad sem as bicicletas. “O que preferem?”.
Seguir no autocarro amarelo, sem dúvida, mesmo que isso seja sinónimo de um dia inteiro sem dormir, sair dali com o corpo deformado e levar toda a viagem com música indiana no seu estado mais agudo e aos berros, para que o condutor – sim, um único que conduziu 22 horas! – não adormecesse! Sobreviver a tudo isto só é possível se levarmos isto como “mais uma experiência” (a não repetir!)
Islamabad é a capital. Ponto. Nada para ver, nada para fazer, nada para nos fazer ficar mais um dia, a não ser as embaixadas, razão pela qual os turistas se vêem obrigados a permanecer. Connosco, no entanto, ao contrário dos dez dias que pensámos ter de ali ficar para tirar o visto para a Índia, tudo correu lindamente e ao fim de quatro já as nossas bicicletas deslizavam para sul, em direcção a Lahore!
Fizemos um ano na estrada, num dia terrível: muito calor, muita humidade, noite mal dormida pelo facto dos dois polícias que connosco ficaram toda a noite para que nada nos acontecesse, não terem parado de beber álcool e de ouvir música no telemóvel e de a Tanya ter sofrido o primeiro acidente da viagem, quando um carro lhe bateu na bicicleta por trás. Resultado? Algumas pisaduras, uns cortes nos joelhos e cotovelos e a bicicleta sem mudanças traseiras. O que se seguiu? Eu a bater no carro, dando murros e discutindo e a Tanya saltando do chão e dando um valente dum murro no braço do condutor, enquanto lhe chamava uns quantos nomes! O que aconteceu a seguir? Nada! O homem nem pediu desculpas, arrancou e nunca mais o vimos e nós seguimos viagem, como pudemos, tentando ver a parte boa da coisa e sendo portugueses, acabámos por nos rirmos com o “pelo menos ninguém morreu!”
Em Lahore, tínhamos um contacto dum couchsurfer, mas acabámos por ficar num hostel! A luz falhava mais na cidade do que em qualquer outro lugar por onde havíamos passado. O calor era abrasador. A humidade nem se fala. O mosquito do dengue andava ali, nós temos a certeza. As ventoinhas não funcionavam sem electricidade e o hostel não tinha gerador. Era impossível dormir. A cama escaldava. A cidade não pára, sempre com tráfego a toda a hora.
Acabámos por ficar só duas noites numa das cidades mais bonitas do país, com mais história e mais interesse mas, não vimos nada. Não tínhamos dinheiro para ficar por mais tempo, estava tudo contado “ao tostão” e não queríamos pagar mais despesas aos bancos portugueses pelo levantamento com os cartões. Por outro lado, o nosso visto para a Índia tinha começado a contar no dia em que nos deram e isso deixava-nos menos tempo para o país. De Lahore, fica-nos só a memória de umas gelatarias, todas seguidas, onde passámos alguma parte do nosso tempo e garantimos, divinais!
A Índia ficava mesmo ali ao lado, a umas simples duas horas de calma pedalada!
O projecto Eurásia é uma viagem de bicicleta entre Portugal e Macau, com passagem pela Europa, Médio Oriente e Ásia Central e 19 meses de duração. Ao longo de todo o percurso foram publicadas crónicas com periodicidade média quinzenal.
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