Destino: Ásia » Índia

Hapa Jat Express (Eurasia #29)

Por Rafael Polónia e Tanya Ruivo

Hapa Jat Express

Foram longas horas percorridas, durante longos dias, nesta longa e longínqua Índia. Um despertar dos sentidos. Um teste à nossa sanidade mental. Uma revolta a transformar-se em luta. Um não aceitar da vida que lhes é natural. Foram longos dias, observando, tirando conclusões, vagueando na mistura infernal de buzinas. Estamos agora de regresso às nossas bicicletas. Segundo round! Tlim!

Hapa Jat Express – Ahmadabad – Deli – 15h36

Passámos, no último mês, mais de cento e cinquenta horas em transportes públicos: barcos, autocarros, comboios, rickshaws. Estamos fartos. Este é o nosso último comboio, esperamos, deste inteiro mês de férias. Viajámos entre apertões, empurrões, resmungões e confusões, tão característicos desta Índia. Fomos abordados por mil e dois curiosos, perguntaram-nos duzentas vezes de onde vínhamos e mesmo quando lhes respondíamos “Somália!”, um sorriso se seguia, junto de um “Nice country!”. Obrigado, pensávamos nós, sempre é melhor do que dizermos “Portugal!”, com um orgulho de orelha a orelha, e nos responderem em tom inquisitivo “Ah, Australia!”, ao que dizíamos “Não, Portugal!” – “Ah, Germany! ” – “Sim, isso…”.

O pedido para tirar fotografias por aqui também está no “Top-10-dos-mais-pedidos-ao-turista”. Raramente aceitamos. A fotografia é como o pedinte na Índia: dás a um, tens de dar a mil. À Tanya chegaram a pedir-lhe uma “pequena fotografia” deixando-a sem saber se queriam uma tipo passe ou só de algum local especial do corpo: a orelha, o nariz, um dedo. Antes que se confundisse ainda mais, recusou. Foi o melhor que fez.

Hapa Jat Express – Ahmadabad – Deli – 15h50 – Quarta paragem na viagem

Vida a bordo de um comboio indiano
Vida a bordo de um comboio indiano

Este comboio vai quase vazio. Quero dizer com tudo isto que vão menos de dez pessoas por compartimento, que tem oito lugares sentados. Estamos há duas horas cá dentro e ainda nos faltam mais dezoito! Nada de grave! Viver um dia inteiro dentro do comboio é algo a que já estamos habituados e é sempre uma festa: famílias inteiras com bebés de colo que gatinham por tudo o que é sítio, que não usam fraldas e que se babam nas pernas dos passageiros; piqueniques tirados da “cartola”, com direito a comida, pratos, copos, bebidas, chilis, muitos chilis e chapatis. Nunca talheres e nunca um saco para colocar o lixo.

Tudo voa pela janela num gesto que lhes é tão natural: poluir o quintal do vizinho, mas nunca o seu; depois aparecem os vendedores: chamuças, grão-de-bico de caril, fruta, saladas, chá, café, biscoitos, batata-frita e amendoins. Atrás destes, aparecem os que varrem o chão e que ganham uns trocos a limpar o lixo que – ups – não acertou na janela ou que simplesmente caiu no chão. Vendem-se livros, bolas pinchonas com luzes que piscam, corta-unhas, óleos para o cabelo, pintas para a testa, carrinhos para o menino, bonecas para a menina. Uma festa!

Deitamo-nos em bancos azuis de napa que se transformam em camas, onde horas antes, dois pés sebentos pousaram, relaxando do cansaço de nada se fazer! Adormecemos e ainda a vaca não cantou, já a algazarra voltou à aldeia: telemóveis com os últimos hits dos filmes de Bollywood, palmas a acompanhar, pessoas que escovam os dentes enquanto se passeiam nos corredores, mãos que te tocam para que te levantes. “Espera aí, ainda é de noite – que horas são… cinco e meia… por favor, não me chateie” e consegues virar-te para o lado por mais meia hora. Batalha vencida.

Hapa Jat Express – Ahmadabad – Deli – 16h10 – Ainda ninguém passou a vender café

Peregrinos na Índia
Peregrinos

Vamos voltar às nossas bicicletas e. dentro de mim, dou saltos de alegria! Estou convencido, cada vez mais, que viajar de mochila às costas, além de pesar mais no bolso, é bem mais cansativo para a paciência. Corremos o risco de passar dez dias da nossa viagem a ver a mesma coisa: estações de comboios e de autocarros, filas de bancos, empregados mal-encarados, preços de turista. Não gosto.

O que gosto é de pedalar sem ter planos, cozinhar por não haver restaurante por perto, abrir a tenda em frente a montanhas enormes e ter o poder de decidir à velocidade que vou e onde paro nesse dia.

Nestes vinte e tantos dias de comboio, é verdade que viajámos das praias paradisíacas de Goa aos grandes templos hindus de Madurai, dos Chola Living Temples de Thanjavur à chuvosa e turística Mamallapuram. O que é verdade, também, é que discutimos preços e nos chateámos com os locais como nunca antes nesta viagem; assistimos a mais faltas de respeito do que em toda a nossa vida juntos (e em separado também, admito), e repensámos duas vezes se haveríamos ou não de estender o nosso visto na Índia. Isto cansa. Ufa. Há sete anos, quando cá estive, não senti esta pressão e quase que juro que tudo era muito diferente.

Hapa Jat Express – Ahmadabad – Deli – 16h20 – Divagação sobre a Índia

O turismo destruiu a Índia. Conclusão final. Já havíamos tido a mesma ideia acerca do Uzbequistão, um país que adorámos, no entanto, tal como a Índia. Parece contradição, mas explica-se bem. A Índia está na moda há anos. Quando dizemos “Estive na Índia”, logo a cabeça das pessoas deambula numa lista enorme de “Taj Mahais”, de rios sagrados, de morte e vida, de cor, de cheiros, de mulheres de longos cabelos e magros homens negro-amorenados, de rituais, de crenças, de deuses, de festas na praia, de longe, longe de tudo o que se possa imaginar. É verdade, é tudo isto a Índia. Incredible India, como o governo gosta de promover.

Praia em Agonda, Goa
Praia em Agonda, Goa

Mas é toda esta febre que me faz pensar o que é isto então, em que país se transformou ou em que país o transformámos nós? Lembro-me que da última vez, em algumas cidades, era raro encontrar álcool. Agora as lojas são às dezenas. Lembro-me que era raro o obeso que via. As cadeias de fast-food transformaram a visão que temos. Lembro-me que não me lembro de discutir os preços tantas vezes. Agora não há um dia que não me tenha de chatear. Lembro-me que saí de cá a pensar: as pessoas são maravilhosas.

Tenho agora a sensação que, se existe um pais destes dezoito pelos quais já passámos do qual não me vou lembrar das pessoas, a Índia é esse mesmo país. O que me fica do Irão são as pessoas! Do Egito, da Síria, do Iraque, do Paquistão! O que me fica da Índia são os monumentos. Ponto. A falta de respeito, uns para com os outros, já a havia sentido há sete anos: uma agressividade inexplicável. Mas agora passou ao turista. Tenho de pagar para que sejam simpáticos. Não pago, enxotam-me e é mesmo este o modo, enxotar. Outro turista haverá interessado na minha “$impatia”!

Hapa Jat Express – Ahmadabad – Deli – 16h40 – Já só faltam 17 horas para chegar!

Contrastes de Deli
Contrastes de Deli

Mas eu adoro isto e cada vez que penso em daqui sair, penso já na próxima vez que hei de aqui voltar. Serei masoquista? Não. Ou sim. Ainda não descobri. O que descobri, é que – e aí vem mais uma contradição, ou não estivesse eu no país propício a elas – gosto de discutir e rebentar pelas costuras de raiva! Gosto de ser empurrado e vingar-me logo a seguir no próximo humano com pinta na testa que me aparecer. Adoro a confusão das grandes cidades, enquanto pedalo e fluo entre o trânsito. Acho o máximo a falta de higiene que existe nos restaurantes de rua, mas a forma tão natural e deliciosa com que lidam com ela! Gosto do sorriso que se abre, quando cumprimento um simples varredor de rua, ele a quem nunca antes um sorriso lhe tinha sido dirigido! Gosto de me sentir livre, de ver vacas, cães, ratos, burros, cabras em todas as cidades, livres também. Gosto dos cães sarnentos, dóceis, super meigos e a precisar do meu carinho, nas estações de comboio! Sim, os cães! O melhor que a Índia tem!

Hapa Jat Express – Ahmadabad – Deli – 17h00 – Não passou ninguém a vender café.

Bebi um chá!

O projecto Eurásia é uma viagem de bicicleta entre Portugal e Macau, com passagem pela Europa, Médio Oriente e Ásia Central e 19 meses de duração. Ao longo de todo o percurso foram publicadas crónicas com periodicidade média quinzenal.

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Rafael Polónia e Tanya Ruivo

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