Depois de quatro meses deambulando pelo continente indiano, deambulámos, também nós, numa crónica que receámos escrever mas que não podíamos deixar para trás, como um desabafo, uma necessidade de deixar presente, um capricho nosso. Como no caso do papel higiénico, há sempre que expor as nossas opiniões.
Não sou um grande viajante, daqueles que passam mais de meia parte da sua vida por terras mundanas, enfrentando o desconhecido, partindo e fazendo novas casas onde lhes aprouver, dormindo onde o sono os encontrar, comendo em sítios onde a fome os atacar. Não sou. Sinto-me porém, um viajante ao meu estilo, ao estilo de tantos outros, que começou tarde e a quem viajar por viajar não faz qualquer sentido, se a aprendizagem não estiver nos seus planos. Viajo para conhecer, não para me encontrar, como tantos outros. Já me encontrei faz tempo e vivo lindamente com o que de mim conheço! Nos meus anos de vida, encontro um total de dez meses que foram passados neste país a que se chama Índia. E sinto-me feliz por isso! Sou um privilegiado, talvez. Arrisco mais que os outros, talvez. Aconteceu, quem sabe. Passei também por outras culturas, outros países que me puseram à prova, me abriram a mente, me mostraram coisas que ignorava por completo. Mas é da Índia que quero falar, porque foi essa a razão que me trouxe até aqui. A Índia.
Às vezes, quando na escola preparatória e na secundária, sentia aquela pressão por parte dos outros, da necessidade de pertencer a um grupo: dos betos, dos surfistas, dos cromos, dos góticos, dos andorinhas (será que ainda existem?), dos punks e de uns tantos mais eteceteras de pequenas minorias. Eu, que era contra grupos e divisões e movimentos partidários, sempre fiz o possível para me adaptar a todos eles e tinha amigos e conhecidos e pessoas a quem dizia somente olá, em todos os grupos. Sempre fui daqueles-que-preferem-não-pertencer-a-nada-mas-sim-a-todos. Consegui! Cheguei à Índia uns anos valentes depois, pela primeira vez, ainda virgem de viagens que me levassem fora desse velho continente europeu e atirei-me de mochila às costas para projetos de voluntariado, comboios a rebentar pelas costuras, olhares invasores, para uma falta de privacidade a que não estava acostumado numa Europa cheia de etiquetas de educação a quem me habituei e das quais, sinceramente, gosto! Os meus primeiros seis meses de vida neste tão longínquo país foram maravilhosos, estupendos, fantásticos! Não sei justificar a razão, mas penso que este é um país para se chegar virgem doutras viagens, um país que te choca, que te agride, que te falta ao respeito, que te fere, que te irrita e faz gritar: Índiaarrrghhh… Por outro lado, enquanto virgem, estás aberto à mudança, à radicalidade das coisas, ao desconhecido que te é mau, muitas vezes, mas a quem dás sempre um desconto, talvez porque ainda não saibas lidar com ele e preferes estar sempre de pé atrás, mas aceitar.
Porém, esta vida, nos últimos anos, fez de mim mais um viajante do que uma pessoa-de-vida-dita-normal, apesar de muitas vezes enquanto em viagem, o procurar. E esta vida atirou-me, mais uma vez, a Índia para a frente. Entrei com a sensação de que seria fácil, pois já havia aqui estado uma vez e por isso estaria mais adaptado à vida irrequieta desta imensidão. Estava errado! Vinha dum Médio Oriente hospitaleiro, de um Irão caloroso, de uma Ásia Central silenciosa, de um Paquistão sorridente e entro numa Índia antipática, cada vez mais a pensar só em dinheiro, cheia de contrastes – nem sempre bons – agressiva, desrespeitosa, difícil de pedalar. Sim, porque não me posso esquecer que o conforto desconfortável dos comboios indianos, dos autocarros descontrolados, dos auto-rickshaws desequilibrados, foram substituídos por mais de oito horas a pedalar por dia, sujeitos a um barulho de buzinas constante, a uma capacidade invulgar de se juntarem 200 pessoas à nossa volta em pouco mais de um minuto quando parávamos, a um nunca encontrar de privacidade, a um bombardeamento inexplicável de perguntas nos mais variados idiomas e dialetos incompreensíveis deste país, a um desfilar de má-educação a que não estamos habituados e o qual, nos anteriores países, nunca havíamos sentido. Índia, Incrível Índia! Toda a mistura de maus transportes indianos soa-nos a Paraíso, depois desta descrição.
Tentámos então perceber a razão de milhares de pessoas para aqui viajarem todos os anos, que faz da Índia um dos países mais turísticos do mundo. A olho nu, um aspeto salta-nos logo: turístico. A Índia foi um paraíso sem turistas há cinquenta anos. Neste momento é dos sítios mais fáceis para viajar: tem transportes para todo o lado, grande parte das pessoas fala inglês, há lojas ocidentais, café, cerveja, comida, água engarrafada, cozinha internacional, hotéis em todos os cantos, agências de viagens, guias turísticos. Tudo muito simples! No entanto, ainda há quem chegue à Índia – a maior parte – com a sensação de que está a chegar ao novo mundo. Todos os caminhos já foram descobertos, aqui! E é aqui que retomo a questão dos grupos. Na Índia, quem disser que não gosta da Índia não pertence ao grupo, não é aceite na discussão, não é “fixe”! Lembro-me há sete anos, quando em Calcutá – cidade que adoro – que num grupo de estrangeiros, se discutia o acto de limpeza na casa de banho, sem utilizar o papel higiénico. Todos, lembro-me, se mostravam enojados pela ideia, até que uma rapariga da Geórgia disse: “Eu faço assim, e é o melhor!” – logo de seguida, grande parte admitiu também fazê-lo, apesar das caras tímidas. A partir daí, a conversa tomou outro rumo: discutir a técnica!
Hoje, ainda utilizamos a mesma técnica na casa de banho, aquando em viagem, e aprendemos a “utilizá-la” também aquando de outras discussões. Demos por nós a deixar de ter receio de dizer o que pensávamos e a admitir perante os outros que nesta viagem, o país que menos tínhamos gostado era a Índia e explicamos as nossas razões, dando também um pequeno desconto: chegámos aqui no “fim” da nossa viagem, já cansados, depois de termos passado por países que nos definiram bem a palavra hospitalidade, coisa que a Índia, infelizmente, não sabe já o que é. Foi engraçado, porque descobrimos que os viajantes que já haviam feito outros países e a quem a palavra respeito pelo outro caía bem, tinham a mesma opinião que nós. Os que aqui vinham como destino de primeira grande viagem, não partilhavam da nossa opinião. Compreendemos bem! Tentavam logo dar mil e uma explicações para assim ser, mas quase nenhuma nos convenceu. É assim que se dão origem aos grupos.
A dois dias de apanhar o avião para a Tailândia, saio com a sensação de que tenho de regressar um dia, para dar mais uma oportunidade. A primeira vez amei. A segunda vez, detestei. Curioso! O que tenho de admitir é que tudo isto tem magia, inspira, revolta, faz-nos gritar e logo a seguir abraçar, torna-nos violentos, cria-nos perguntas sem resposta, mas é um país ao qual ninguém fica indiferente. A dois dias de sair da Índia, não sinto saudades e não penso já em nenhum regresso. Preciso pensar, refletir, mas nunca tentar entender. Impossível.
A dois dias de sair, a ansiedade é enorme. Parecemos duas crianças à espera do Natal. A Tailândia está ali, do outro lado, muito mais calma, “muito mais ocidentalizada”- como alguns gostam de dizer, e por isso “sem piada”. Nunca para aí viajámos, mas se assim é tão ocidentalizada, que venha, pois neste momento é mesmo do que estamos a precisar. Não andamos a fugir dos turistas – nós somos turistas -, não andamos a tentar descobrir nada novo – já quase tudo foi descoberto. Andamos só a viajar e, neste aspeto, seja a Europa, seja a Ásia, todos os sítios são razão suficiente para se partir. Até o cansaço, para se partir da Índia!
O projecto Eurásia é uma viagem de bicicleta entre Portugal e Macau, com passagem pela Europa, Médio Oriente e Ásia Central e 19 meses de duração. Ao longo de todo o percurso foram publicadas crónicas com periodicidade média quinzenal.
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