Estamos na estrada há mais de 17 meses, mas há coisas que nunca aprendemos. Uma coisa sabemos no entanto, certo ou errado, o que interessa é ir com confiança. A estrada até à capital do Camboja seria mais simples de fazer, se não a complicássemos tanto. Mas os mapas fazem-nos sempre sonhar.
“À direita, jamais!” - mas foi exactamente quando nos apercebemos disso que também nos apercebemos que era demasiado tarde. Olhando para o mapa, uma linha verde descia ao longo do Camboja até Phnom Penh, a capital do país. Três razões nos levavam até aí:
- Ir buscar um cartão de débito dum banco português que cobra muito menos taxas por cada levantamento, enviado pela minha mãe;
- Visitar um dos locais mais marcantes da história do Camboja, a famosa prisão S-21;
- Começar a pedalar, rumo ao Laos, a estrada que segue o rio Mekong;
A estrada, que julgávamos ser entediante, deu-nos afinal imenso prazer fazer. Uma faixa de asfalto de qualidade média desce o país, passando por pequenas povoações cheias de vida e muitos, mas muitos hellos, que são atirados de crianças aos “magotes” que saltam para a estrada mal nos vêem ao longe e só se calam quando nos perdem de vista ou, ainda mais difícil para nós, de vozes que saem de debaixo das casas com “pernas” onde os locais se deitam todo o dia e para onde, olhando, nada vemos – somente o escuro dos móveis entranhado no escuro das redes de descanso que se entranham no escuro da terra, no escuro da sombra e no moreno escuro da pele. O que é o quê, não sabemos. Levantamos a mão e atiramos um hello sem sabermos para onde e para quem. Atinge alguém e esse alguém cala-se. No alvo! Um dia inteiro na estrada faz-nos tomar medidas drásticas: só cumprimentamos duzentas e cinquenta crianças por dia! Que alegria!
Pedalámos calmamente e chegámos à próxima grande-pequena cidade: Kompong Thom. Nada a ver. A nacional 6 atravessa-a de ponta a ponta e o que deixa para trás são meia dúzia de hotéis e umas quantas lojas com preços absurdamente elevados e um mercado bem mais acessível ao nosso bolso. De lá, parte-se para Sambor Prei Kuk, a antiga capital Angkor Chenla, anterior aos templos de Angkor, cinquenta quilómetros a este, para os quais não pedalámos por termos já demasiados templos em ruínas na nossa cabeça.
Porém, à noite, e divagando caminhos no nosso mapa fotocopiado a cores, olhámos para uma mancha azul, ali no centro do país, mesmo ao nosso lado: o Lago Tonlé Sap. Lembro-me que comentámos todos efusivos:
“E se (quando começamos com e se, a coisa nunca dá certo, já deveríamos ter aprendido), em vez de pedalarmos sempre para sul, não cortamos à direita? Como é época seca agora, deve existir uma série de trilhos e os rios não têm água, por isso passaríamos para o outro lado do rio e desceríamos pela outra margem”!
“Mas existem caminhos?”, perguntava a Tanya, “é que aqui no mapa existem umas linhas que depois desaparecem…”. Continuava desconfiada.
“Claro que existem. Se não encontrarmos, perguntamos a alguém. Também não há muito a errar. Se pedalarmos para oeste vamos ter ao lago e se para este, à estrada. Não há como enganar!”
Nas nossas opções de viagem, de trajectos, nas nossas decisões, já chegámos à conclusão duma coisa: o que interessa é ir confiante. E fomos!
Nas primeiras centenas de metros depois de termos virado à direita e de termos levantado a mão já trinta e cinco vezes e dito vinte e sete hellos, as nossas bicicletas rolavam já por trilhos arenosos que nos obrigavam a umas quantas paragens, umas árvores despidas de folhagem e, ao longe, bem ao longe, nada. Absolutamente nada! Só poderíamos estar bem, pensámos!
Não tínhamos muita água e comida. “Se pedalarmos uns quarenta quilómetros, chegamos ao ferry e atravessamos para a Kompong Chanang, sem problemas!” Confiança máxima!
Quarenta quilómetros passaram e lembro-me de fazer um vídeo em que comentava que a Tanya tinha ido ver se encontrava um caminho para passar e eu já tinha ido na outra direcção ver o mesmo. A confiança começava a desaparecer. Estava muito calor. A humidade era brutal. Não tínhamos o que comer e, nas garrafas, nem um litro de água para os dois. Duas horas mais tarde, chegámos à triste conclusão que era melhor voltarmos para trás, pois estávamos perdidos. Não se via vivalma. Estávamos a morrer de sede e confesso aqui neste momento: estava mesmo com muito medo. Sabia que não conseguiríamos voltar ao mesmo ponto naquele mesmo dia e teríamos de acampar algures, mas a falta de água preocupava-me seriamente.
A sede atacava e de que maneira. Gritávamos um com o outro, discutíamos sem razão. O desespero a juntar à sede e à fome agravava as coisas. Foi já num total estado não-sei-o-que-fazer-mais-e-estamos-lixados que avistei aquilo que me parecia um espelho. Pousei a bicicleta e vi um rio lá em baixo. Água pelo menos tínhamos para ferver! Enquanto os meus pés se enterravam na lama quase até ao joelho, apercebi-me que a água era mais transparente do que julgava. Mergulhei a garrafa e ergui-a. Um transparente acastanhado fez a minha face sorrir de orelha a orelha. Meti a garrafa à boca e quase chorei de alegria! ÁGUA!!!
Depois de um dia a atravessar campos de arroz, rios de lama, trilhos perdidos, a decidir a cada cem metros qual dos caminhos sem saída seguir, com um calor infernal e uma humidade elevadíssima, a desesperar com a fome e principalmente com a sede, o que interessa num momento destes não é se a água é potável ou não; é ter água. E é nestes momentos que damos toda a importância a um bem que se acaba a pouco e pouco e que poucos dão importância. Pensemos.
No dia seguinte, voltámos pelo trilho nosso (des)conhecido e uns quilómetros à frente encontrámos quatro pescadores de bicicleta que nos ajudaram a sair daquele pesadelo. Umas horas mais tarde, já deitados na cama do nosso hotel, pensávamos em tudo pelo que tínhamos passado, mas ainda não nos ríamos. Isso ficará para mais tarde.
Quatro dias depois chegávamos a Phnom Penh, onde não recebemos nenhum cartão de débito, mas onde visitámos a S-21, a antiga escola secundária Tuol Svay Prey transformada em prisão, onde mais de 20.000 pessoas foram torturadas e assassinadas pelos Khmers Rouges, entre 1975 e 1978. Hoje num museu nacional com o apoio da UNESCO, podemos ver a insanidade que foi o regime dos Khmers Rouges, que em apenas três anos assassinaram mais de dois milhões de cambojanos, mas também muitos estrangeiros a viver no país na época.
O percurso pelas diferentes salas da escola, faz-nos ver uma história de tortura, encarceramento, fotografias a preto-e-branco dos prisioneiros que, muitas vezes eram fotografados antes e depois de serem torturados sem que conhecessem a razão e que depois seguiam para os Campos de Morte, uns quilómetros abaixo, onde acabavam por morrer. Para se perceber bem a insanidade do regime, podemos dizer que muitas vezes os bebés eram mortos sendo atirados contra as árvores, para que se… poupassem balas.
Com imensa história lamentável à nossa frente, arrumámos mais uma vez todos os sacos nas nossas bicicletas e começámos o trajecto para norte, rumo ao Laos, ao contrário da corrente do Mekong, esse rio mítico que acompanharíamos até sair do país.
Veja também o post sobre viver em Phnom Penh.
O projecto Eurásia é uma viagem de bicicleta entre Portugal e Macau, com passagem pela Europa, Médio Oriente e Ásia Central e 19 meses de duração. Ao longo de todo o percurso foram publicadas crónicas com periodicidade média quinzenal.
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