Grande Muralha da China, a serpente de pedra

Por Ana Isabel Mineiro
Grande Muralha da China
Grande Muralha da China

Símbolo de um império e orgulho de um país, a Grande Muralha serpenteia ao longo do norte da China, ligando o Mar Amarelo ao Deserto do Gobi. Correndo por montanhas, cercando cidades ou atravessando o deserto, esta é, sem dúvida, uma visão inesquecível.

A muralha gigante

Nunca foi contínua e, mais do que isso, nunca foi única; aquilo a que chamamos Grande Muralha é um conjunto de muros e fortalezas defensivas com cerca de 7.200 quilómetros, distribuído por seis províncias e regiões autónomas chinesas. Mas procurar alguns troços, nomeadamente os que sobreviveram aos séculos e foram reconstruídos, dá-nos uma ideia muito aproximada do que é uma das maiores obras da humanidade – em todas as aceções da palavra.

Vista sobre a Cabeça do Velho Dragão, em Shanhaiguan
Vista sobre a Cabeça do Velho Dragão, em Shanhaiguan

Património da UNESCO desde 1987, tem sido exemplarmente estimada pelas autoridades chinesas, estudada, recuperada e aberta aos visitantes, sobretudo nestes últimos anos, em que o aumento do turismo é a palavra de ordem.

Talvez as mais conhecidas e mediáticas sejam as da dinastia Ming, mas antes dessa época a construção e reparação da Muralha já fazia parte das obras do Império do Meio: data da dinastia Qin, iniciada em 221 a.C., a primeira unificação da China e o início da construção de uma “grande muralha de dez mil lis” (cerca de 5.000 quilómetros), aproveitando alguns troços já levantados durante o século VII a.C.

Inevitáveis são os seus extremos: a “Cabeça do Grande Dragão”, como os chineses gostam de lhe chamar, que parece beber água no Mar Amarelo, e a sua “cauda”, que se perde na poeira do Deserto do Gobi. Entre um extremo e o outro, diz-se que chegaram a existir cerca de 50.000 quilómetros de muralhas e fortificações, espalhadas entre o Hebei e o Gansu.

Variam os materiais, o tamanho, a imponência e o aspeto em geral, mas fica a mesma impressão: a de que não há nada igual sobre a face do planeta – apesar de, ao contrário do que se chegou a dizer, não ser possível avistar a Grande Muralha a partir da Lua.

Shanhaiguan, a cabeça do Grande Dragão

Começámos a viagem em Shanhaiguan, na costa do Mar Amarelo, a cerca de quatrocentos quilómetros de Pequim. Esta é uma das partes mais visitadas pelos turistas chineses, quer por se tratar de uma das suas extremidades, quer pela relativa proximidade da capital. E, para começar a descobrir a Muralha, nem sequer é preciso sair da cidade; ela cerca-a e atravessa-a. Em alguns locais a cidade “transbordou”, e abriram-se túneis nos seus muros para facilitar a passagem das pessoas.

As ruas formam bairros de casas baixas, com travessas sossegadas, onde avozinhos de camisola interior vigiam ao mesmo tempo os netos, e as gaiolas de pássaros cantores que trazem para a rua logo de manhã. Joga-se às cartas e conversa-se à sombra da Muralha Ming, construída entre os séculos XIV e XVI, enquanto passam para o mercado bicicletas carregadas de flores, galinhas – amarradas pelas patas ao volante -, pauzinhos de bambu e cestas.

A Grande Muralha da China nos montes de Shanhaiguan
A Grande Muralha da China nos montes de Shanhaiguan

A Primeira Passagem Sob o Céu, um arco de entrada na cidade, fica mesmo ali, no meio deste bulício. No cimo, onde se acede por uma rampa, instalou-se uma autêntica feira de diversões, bem ao gosto do turismo local.

Nem precisam de gostar de história ou apreciar monumentos para passar um bom bocado: vestem-se de mandarim para tirar fotografias junto de um camelo, estampam as caras em calendários e os nomes em moedas, passeiam de palanquim ao som de gaitas de hipnotizar serpentes, enfim, um não mais acabar de brincadeiras que têm muito pouco a ver com o lugar.

Sem dúvida que a Grande Muralha continua a simbolizar o país, agora exibindo o caráter lúdico que todos os monumentos ganharam desde que são alegremente visitados por milhares de turistas chineses. Para nós, é um encontro simultâneo com a China histórica e a real.

A praia da Cabeça do Dragão fica a dez quilómetros. Um riquexó motorizado deixa-nos junto aos antigos aquartelamentos dos soldados – com réplicas em tamanho natural -, onde se sobe a uma muralha com o aspeto de ter sido construída a semana passada, que nos conduz até à praia de Beidahe.

O local é bonito, com dois braços de muro a poisar na água azul, formando passeios ensombrados por guaritas espaçosas e templos. No meio fica a praiazinha de areia branca de onde sai um vai e vem de lanchas de passeio cheias de turistas.

A Grande Muralha da China começa no Pacífico
A Grande Muralha da China começa no Pacífico

Também aqui é inútil procurar o romantismo de um monumento do século XVI, o ponto mais ocidental duma obra grandiosa, construída ao longo de sete dinastias, durante mais de dois mil anos – o melhor é juntarmo-nos aos grupos alegres e ruidosos de chineses nos restaurantes locais, para uma tigela de massa fria com coentros…

Só bem cedo, nas montanhas de Jiaoxan, bem perto da cidade, encontrámos o que procurávamos: o lugar solitário onde mora a serpente, os montes onde se enrosca e estica, exposta ao sol e à neve.

Só a primeira parte, muito íngreme, está reconstruída, o resto desfaz-se lentamente sobre a crista das montanhas, acompanhando cada subida e descida, cada curva, e desaparecendo, de um lado, na linha fina e azul do mar, do outro, no nevoeiro do horizonte.

A muralha em Pequim

É esta serpente de pedra, este dragão mítico que encontramos também nos arredores de Pequim – e é no interior montanhoso que esta imagem, tão cara aos chineses, ganha mais força: mal se afasta do mar, a Muralha transforma-se numa coluna vertebral eriçada de guaritas, que ondula ao sabor do solo, dando mesmo a sensação de movimento quando caminhamos sobre ela.

Apesar do muito que a capital tem que ver, desde os fabulosos templos à Cidade Proibida e ao Palácio de Verão, ninguém resiste a visitar um dos troços da Muralha nos arredores. Cada ano se alarga mais as áreas acessíveis, para descongestionar os percursos.

Grande muralha da China em Badaling
Algumas partes da muralha permitem uma visita tranquila, mesmo em Badaling

A Badaling, a mais conhecida, seguiram-se Mutianyu, Simatai, Jinxanling, Huanghua… Todas têm agora um grande número de visitantes, mas a primeira, mais acessível, com transporte público frequente do centro da cidade, continua a ser a mais concorrida.

Afastada de povoações, bem no meio de colinas de vegetação verde, frequentemente envolvida em nevoeiro, a velha e solitária serpente não serve aqui para fazer sombra às ruas, ou proporcionar uma parede extra a alguma casa, como em Shanhaiguan.

Mas em redor foram nascendo hotéis e restaurantes de luxo, lojas de recordações e até teleféricos! Por onde antes chegou a circular um milhão de militares, cavaleiros e vigias em missão de guerra ou de paz, transportando mensagens, mantimentos ou avisos de perigo, trepam agora milhares de turistas diariamente. E trepar é a palavra exata: há partes onde temos que poisar as mãos nos degraus, ou socorrer-nos do varão de apoio que pregaram na Muralha, para podermos seguir caminho.

A muralha atinge dez a catorze metros de altura, sete a dez de espessura, dependendo da sua localização. Há detalhes inteligentes, como a inclinação lateral do chão, que facilitava o escoamento da água para furos estratégicos, e o aproveitamento de penhascos e cabeços rochosos, prolongados alguns metros na vertical. Os materiais também variam; nas montanhas, em geral abunda a pedra que forma os muros exteriores, “recheados” depois com calhaus mais pequenos e terra – é o caso da muralha de Shanhaiguan e dos arredores de Pequim.

Mas em outros locais utilizaram-se tijolos, terra batida em camadas com ramos de salgueiro ou cânhamo, e uma pasta de arroz peganhento, para fixar os materiais. Quanto à mão de obra, nunca será quantificada.

Grande parte eram escravos e prisioneiros de guerra, e a grande quantidade de corpos sepultada nas imediações demonstra que a sua vida não devia ser muito longa; diz-se que, no século VII, só num período de dez dias morreram quinhentos mil homens na sua construção.

Exagero? Nunca o saberemos, mas é inegável que se trata de uma obra megalómana, de extensão e formas verdadeiramente excecionais.

Jyaiyuguan, a Passagem Inexpugnável Sob o Sol

O comboio para Jyaiyuguan sai ao fim da tarde da moderna estação central de Pequim. Só no dia seguinte tornámos a ver a Muralha, agora transformada numa lâmina de terra descontínua e amarelada. A paisagem foi mudando sempre: aos socalcos verdes de arrozais e pequenas hortas bem tratadas, sucediam-se aldeias muito povoadas, com a ocasional chaminé fumegante de fábrica. Montanhas, templos, rios e, finalmente, o deserto, com as suas casas da cor do chão e nuvens de calor a cobrir o horizonte. Pastores de boné azul passeavam cabras por paisagens irreais, de arbustos ressequidos e pedregulhos rosados, e foi à sombra da Muralha que vimos o primeiro grupo de camelos.

Grande muralha da China
A muralha perde-se no deserto do Gobi, Jyiayuguan

Jyaiyuguan é uma espécie de oásis industrial, onde os únicos “monumentos” visíveis são as grandes chaminés das indústrias e os seus penachos de fumo branco. Os campos verdes que rodeiam a cidade parecem traçados a régua e esquadro; mal terminam, começa imediatamente um chão ressequido e amarelo, sem que haja uma zona intermédia.

Quanto à famosa Passagem Inexpugnável Sob o Sol, a enorme fortaleza que assinala o fim da Muralha, nem vê-la, mas antecipamos pela localização que o nome deve ser muito apropriado. Estamos perto da Mongólia, de onde chegou Genghis Khan e as suas hordas, que invadiram e controlaram o território chinês durante século e meio, ainda esta parte da Muralha não existia – esta é mais um dos troços construídos e reforçados pela dinastia Ming (1368-1644).

Alugámos bicicletas no hotel e seguimos as indicações que nos deram. Não é difícil atravessar uma cidade de ruas planas, demasiado longas e largas para o tráfego que tem. A única subida é a da ponte que passa sobre a linha do comboio, e daí já se avista a fortaleza, entre os Montes Qilian Shan e as Montanhas Negras.

Foi recentemente reconstruída com os materiais originais, levantando-se da terra de que é feita, como que naturalmente. Está bem fortificada, com muralhas duplas e corredores em cotovelo que dão acesso aos pátios mais interiores. O portão principal tem uma altura de dezasseis metros, e só os telhados têm requintes artísticos, com as suas telhas e beirais decorativos em cerâmica pintada. Ao longe ficam os cumes nevados do Qilian Shan, a 5.500 metros de altitude, visão irreal quando nos encontramos em pleno deserto.

Estamos longe dos circuitos turísticos, geralmente próximos dos grandes centros – esta é apenas uma cidade no extremo da província do Gansu, encalhada num local vago, onde se misturam as areias do Taklamakan e do Gobi, mil e setecentos metros acima do nível do mar. Mesmo assim, a Muralha recebe a sua quota-parte de visitantes chineses – os estrangeiros são raros -, e também aqui existe uma bela escolha de fatos para alugar, de princesa a cavaleiro mongol, para as fotos da praxe.

Ao contornar uma torre de vigia, damos de caras com um grupo de jovens vestidos de soldados da época Ming, que levam a coisa a sério e combatem aos berros, perseguindo-se com lanças e machados!

Mas a Grande Muralha não acaba aqui. Vemos do alto das ameias que ela se perde, cada vez mais fina, pelo vale que leva às montanhas. Lá no fim ficam os restos esboroados da Porta de Jade, que marcava a entrada ou saída no Império do Meio.

Shanhaiguan, Grande Muralha da China
Shanhaiguan

Para o outro lado, a muralha segue ao longo de um extenso cemitério, empinando-se de repente quando encontra as Montanhas Negras, que sobe quase a pique. Esta parte é chamada, por razões óbvias, a Grande Muralha Suspensa, e é um autêntico miradouro sobre a aridez do deserto e as montanhas chamuscadas por um sol insistente.

Ali perto fica um pequeno templo, e o que resta de algumas grutas com pinturas budistas. De baixo, da mancha verde e irreal que são os arredores da cidade, chegam ruídos de zurros, latidos e campaínhas de bicicleta.

Pedalámos de volta ao fim da tarde, depois de sermos convidados a partilhar uma enorme melancia com um grupo de jogadores de Ma-Jong, instalados numa sombra. Um comboio de mercadorias deslizava silenciosamente pela poeira do deserto, ao longo da Muralha, perdendo-se numa nuvem de calor.

O tempo e a Revolução Cultural, com o seu ódio ao passado imperial, quase destruíram a única grande construção militar da China.

Hoje, o turismo tem vindo a determinar a sua reconstrução maciça – uma curiosa viragem na história, se pensarmos nos principais motivos da sua construção: a defesa e união do império contra os “bárbaros” mongóis, e a separação entre modos de viver e mentalidades diferentes; de um lado os nómadas, pouco controláveis por uma autoridade central, do outro as sociedades sedentárias, fiéis aos Filhos do Céu.

Depois de milénios de estratégias defensivas e chauvinismo, o Império do Meio, centro do mundo, abriu-se finalmente a todos os “bárbaros”, e a sua longa e rica história tornou-se motivo de orgulho. Agora a grande e mítica Muralha é nome de vinho e de cerveja, atração incontornável de qualquer viagem no país, para estrangeiros ou chineses. A Serpente de Pedra nunca mais vai conhecer a solidão.

Guia de viagens à Grande Muralha

Este é um guia prático para viagens à Grande Muralha da China, com informações sobre a melhor época para visitar, como chegar, pontos turísticos, os melhores hotéis nas proximidades e sugestões de actividades em Pequim.

Quando ir

Recomenda-se a primavera e o outono; no inverno, a neve, o gelo e as temperaturas negativas são frequentes ou permanentes; no verão, as temperaturas rondam os 40 graus, sobretudo em Jiayuguan.

Como chegar à Muralha

É obrigatório o visto, que pode ser pedido na Embaixada da República Popular da China em Lisboa. Voar para Pequim custa, regra geral, entre 700 e 900 €. Uma vez em Pequim, o resto da viagem pode ser feito de comboio. Os comboios chineses são confortáveis, com couchettes em compartimentos abertos de seis pessoas. Há refeições a bordo, e paragens que permitem fazer compras rápidas aos vendedores ambulantes das estações: fruta, gelados, biscoitos, etc. Também é um excelente meio de transporte para conhecer gente e comunicar – um pequeno livro com o vocabulário básico do mandarim ajuda sempre.

Em Shanhaiguan, o melhor é contratar um riquexó motorizado ou um táxi, para chegar às duas partes mais distantes da muralha bem cedo, e depois regressar de transporte público, que não é regular mas vai aparecendo. Em Pequim, Badaling é o local mais próximo, e o que continua a ser mais bem servido de transportes públicos, com autocarros a partirem de manhã da zona da praça de Tiananmen.

Os restantes locais, (Mutianyu, Jinxanling, Simatai, Huanghua) são todos mais distantes, e exigem que se junte a uma viagem organizada local, ou que alugue um táxi. Em Jiayuguan, aconselhamos a bicicleta, um meio muito popular para visitar as duas partes da Muralha.

Onde ficar

Em Shanhaiguan, recomendamos vivamente o simpático Hotel Jingshan, mesmo ao pé da Primeira Passagem Sob o Céu, e de um dos acessos ao cimo da Grande Muralha. Em Pequim, o Hotel Qiaoyuan é razoável, e fica próximo dos autocarros que levam ao centro. Em Jyaiyuguan, o Hotel com o mesmo nome é confortável, e aluga bicicletas.

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Gastronomia

O difícil é dizer nomes de restaurantes num país onde a língua nos é indecifrável. Em Shanhaiguan, no entanto, há o Cowboy Fast Food, perto do hotel indicado acima que, apesar do nome enganador, tem boa comida chinesa. Mas o melhor, onde quer que esteja, é ver a comida exposta ou os pratos dos outros clientes – não é má educação e até causa grandes risotas – e pedir o que parecer bom. Em Pequim e em todas as grandes cidades, também existem as cadeias alimentares americanas que todos conhecemos. O restaurante mais recomendado, sobretudo pelo “pato à Pequim”, é o Qianmen Roast Duck Restaurant, em Qianmen, perto da entrada do metro. Em Jyaiyuguan, o melhor é ir ao mercado noturno, numa rotunda próxima do hotel citado acima, e juntar-se aos locais em pratos feitos na hora: espetadas de carne, legumes ou cogumelos, bolinhos cozidos a vapor, legumes frios.

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Ana Isabel Mineiro

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