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Kashgar, a China dos outros

Por Ana Isabel Mineiro | Viagens Ásia China Kashgar
Atualizado em 8.07.2017 | Tempo de leitura: 18 minutos

Kashgar
Ambiente numa casa de chá em Kashgar, China

Politicamente, a cidade de Kashgar pertence à China, mas o seu coração fica mais ao lado, na Ásia Central. Com uma numerosa população uigur e muçulmana, o chamamento à independência revela-se periodicamente através de revoltas e tumultos, prontamente esmagados pelo governo de Pequim. Um emotivo roteiro de viagem a Kashgar, em plena Rota da Seda.

Onde estamos?

A tarde acabava quando chegámos a Kashgar, vindos do Paquistão. A camioneta, cujo bilhete pagámos três vezes mais caro que os autóctones, deixou-nos numa rotunda rodeada de prédios, mesmo junto ao Hotel Seman e a um restaurantezinho com o nome inesperado de Jonh’s Café.

Num mercado em Kashgar
Num mercado em Kashgar

Construções forradas a azulejos de cores claras, muita poeira, poucas árvores, muito trânsito; a primeira impressão foi a de que tínhamos chegado a mais uma cidade chinesa como outras, da Manchúria ao Xinjiang. No entanto, todo o percurso desde a fronteira paquistanesa nos tinha dito o contrário.

Não fora a conturbada história da região – coisa normal, numa zona do planeta habitada predominantemente por povos nómadas -, e nunca este pedaço de deserto e montanhas poderia ser identificado com a China.

O solo é parco em pastagens, com montanhas carecas, de arestas rigorosas e vales muito planos, por onde serpenteiam fios de água entre tufos de erva, alimentados pela neve que continua agarrada às montanhas, apesar de estarmos no início do Verão. É pelo vale que corre a estrada que nos leva até Tashkurgan, passando à margem de pequenas aldeias tajiques de casas achatadas feitas em terra batida, que se confundem com a paisagem.

De vez em quando aparece um cemitério, que se distingue das aldeias pela forma das construções, cilíndricas ou em cúpula, como pequenos fornos levantados do chão. Abundam as iurtas (tendas familiares redondas) dos pastores e os rebanhos de ovelhas e cabras, à mistura com manadas de iaques, que dão lugar a cáfilas de camelos-bactrianos, guedelhudos e com pescoço de cisne.

Os homens usam casacões de pele, bonés azuis ao estilo cazaque, ou chapéus aveludados em forma de sino. As poucas mulheres que vemos sobressaem na paisagem, com os seus lenços cor-de-rosa, amarelos, vermelhos e laranja, amarrados sobre um chapéu cilíndrico. Vestidos igualmente coloridos, com calças por baixo, completam o conjunto e quebram definitivamente o mimetismo das aldeias rodeadas por muros, onde até o verde seco das poucas árvores confirma uma aridez endémica.

Basta uma olhadela ao mapa para compreender onde estamos: na China, sim, onde o visto pedido em Islamabad nos autoriza a entrar, mas, sobretudo, na “Grande Turquia” de Marco Polo, no Turquestão chinês, antes chamado Kashgaria, povoado originalmente por etnias de origem turca, como tajiques, uzbeques, quirguizes e, em maior número, uigures.

Kashgar, China
Kashgar, China

Estes últimos constituem cerca de quarenta e cinco por cento da população da enorme província do Xinjiang, a maior da China, mas só agrupados com as restantes etnias, igualmente islâmicas e de língua de origem turca, é que formam uma verdadeira maioria.

São todos descendentes das hordas de Tamerlão, que dominaram a zona por várias vezes durante o século XV, estendendo o seu território por uma área que abrangia parte do Afeganistão, Uzbequistão, Cazaquistão, Quirguízia, Turquemenistão, Tajiquistão e Xinjiang, e os seus desejos de autodeterminação em relação à Rússia e à China foram surgindo intermitentemente ao longo dos séculos, sem resultados efectivos.

Passando pelo lago de Karakuli

Horas depois de Tashkurgan passamos pelo belo lago de Karakuli, dominado pelas montanhas do Pamir, Muztagata e Kongur, ambas acima dos sete mil metros. Um restaurante e alguns carros de luxo revelam que o turismo já chegou aqui, e partilhar uma iurta típica custa o mesmo que dormir numa pensão na cidade.

Por fim, descemos para a planície desértica, onde sobressai o verde poeirento dos oásis. De um em outro se chega ao principal: Kashgar. Fica nas margens do deserto de Taklamakan, ao qual os chineses chamavam Liu Sha, “areias movediças” e que, em tradução livre da língua local, significa “onde se vai mas não se volta”. Mas isso era dantes.

A China pós-Mao fez ligar este recanto da Ásia central à “pátria-mãe” por uma estrada que passa pela cidade de Urumqi e também pela recente via-férrea, acabando assim com um isolamento de milénios em relação a Pequim. A verdade é que, até há umas dezenas de anos, Kashgar estava mais próxima dos caminhos-de-ferro que levavam a Moscovo e à Índia britânica, a apenas meia dúzia de semanas de caminho, do que da própria capital chinesa, onde se chegava após cinco meses de camelo e burro.

Kashi ou Kashgar – China é que não é

Kashgar passou a chamar-se Kashi, mas ainda é o mesmo oásis gigante, a mil e trezentos metros de altitude, onde se cruzavam as caravanas vindas de Xian pela famosa Rota da Seda, tomassem o caminho do Sul, por Khotan e Yarkand, ou o do Norte, por Turfan e Kusha. Um século antes do nascimento de Cristo, o viajante chinês Chang Ch’ien percorreu durante treze anos toda esta zona.

Mesquita de Idkah, em Kashgar
Mesquita de Idkah, em Kashgar

Os europeus chegaram mais tarde, com Marco Polo à cabeça dos que primeiro se referiram ao reino de Kashgar, ainda no século XIII, submetido aos exércitos mongóis de Kublai Khan. Registou o facto de terem a sua língua própria e professarem o islamismo, apesar de existir também grande quantidade de cristãos nestorianos, a quem era dada liberdade de culto.

A população “vive do comércio e da indústria, especialmente da que se ocupa da fiação de algodão. Existem ali formosos jardins, hortas e vinhedos”.

O rio Tuman, que raramente parece mais do que um charco sujo, era o responsável por este milagre no deserto. A cidade florescia também em negócios, e Marco Polo diz que “comerciantes oriundos desta região viajam por todas as partes do mundo”.

Neste momento, apesar de ter os meios de transporte mais facilitados de sempre, Kashgar está de novo remetida a cidade limítrofe de um país que não conhece nem reconhece, e onde, por sua vez, é quase completamente desconhecida.

A Kashgar dos uigures

Só afastando-nos do pequeno centro “turístico”, com os hotéis Seman e Seman nº3, o Jonh’s Café e o Oásis, com menus em inglês e ofertas de passeios de camelo no Taklamakan, só perdendo-nos várias vezes nas ruelas da cidade antiga, é que conseguimos reviver o romantismo dos escritos de antigos viajantes.

Mas aí é a sério, e até a farda do ocasional soldado chinês ou as calças justas de uma vendedora han desgarrada, nos chamam a atenção pela incongruência. Pelo menos aqui, os uigures ainda continuam a ter a superioridade numérica.

Primeiro é o perfume do pão quente que invade as ruas pela manhã. Redondo e achatado, decorado com “carimbos” de madeira em círculos concêntricos, é comprado aos maços por mulheres de vestido brilhante e lenço garrido na cabeça. Morenas e fortes, de nariz mediterrânico e caras alongadas, só traem a origem asiática nos olhos ligeiramente rasgados. As crianças são muitas, que as etnias minoritárias estão livres da obrigação governamental de só produzirem um rebento por casal.

Seguem-nos e cumprimentam com “hellos” efusivos, brincando em grupos sem deixar cair o pequeno chapéu típico bordado, de quatro gomos. Há lojas dedicadas apenas ao comércio destes ornamentos elaborados, e também aos bonés azuis favoritos dos cazaques, uns e outros usados por quase todos os homens.

Cena de rua em Kashgar
Cena de rua em Kashgar

As lojas, seguindo um ancestral costume, agrupam-se por funções: as que vendem roupa e chapéus no início da rua; a seguir as dos utensílios caseiros, de bules fabricados ali mesmo aos plásticos e esmaltes chineses.

Numa rua dominam os barbeiros e as costureiras; numa outra zona trabalha-se e vende-se objectos de madeira, incluindo peneiras. Tiras de madeira fina são aquecidas antes de serem dobradas em círculo, e a rede é pregada em volta com pregos finos. Compra-se devagar, de preferência sentado, observando cuidadosamente os objectos e discutindo amigavelmente o preço.

Celebrada pelo poeta Yussup Khass Hajib, cujo mausoléu foi recentemente aberto aos turistas, a língua uigur é tão incompreensível para nós como o mandarim.

Algumas mulheres mais velhas vestem-se de cores discretas e usam uma espécie de naperão de croché a cobrir a cara. Quanto aos velhinhos, fazem a delícia de qualquer visitante. Há uma dignidade acolhedora nestes homens com casacões de outros tempos, barbicha aguçada e botas negras de cano alto, ao puxarem de um banco para nos sentarmos junto deles, sem uma palavra.

Perderam-se no reboliço da história as palavras de Marco Polo sobre os uigures de Kashgar: “manda a verdade que se diga que tal gente não prima pela pulcritude das maneiras nem do feitio, e que lhes sobeja em glutonaria e paixão pela bebida o que lhes escasseia em polidez”. Sortes diferentes gozam os viajantes actuais.

Já no mercado de legumes e especiarias, após a habitual exibição das crianças por pais e avós, desesperámos entre risos para comunicar. Afinal de onde vínhamos? O mandarim não era entendido, tentámos o árabe, mas ninguém parecia conhecer mesmo o nosso país.

Ao contrário dos abundantes soldados chineses, de carinhas imberbes e juvenis, uniformes folgados e um ar quase sempre inseguro e embaraçado, os uigures não têm problemas em olharem-nos fixamente, com curiosidade. Sobretudo na “sua” zona, a cidade antiga.

O sonho de uma República Uigur

Saindo daí, regressamos à China das avenidas larguíssimas, modernos centros comerciais quase vazios e com ar condicionado. E a sempiterna estátua gigante de Mao, frente ao igualmente obrigatório Renmin Park (Parque do Povo). Estamos em Kashi, e não em Kashgar.

Sobram os restaurantes chineses, os bares de karaoke e os “cabeleireiros” que escondem sempre grupos de raparigas de tacões demasiado altos e saias demasiado curtas para a aparente profissão.

Kashgar
Kashgar

Às cinco e meia da manhã, os altifalantes iniciam a música que acompanha os grupos de idosos em ginástica de rua, memória viva dos tempos revolucionários. E também a arquitectura se uniformiza sob o rolo da massa do governo central, multiplicam-se os prédios de azulejos claros e vidros azuis que acompanham a crescente migração han, incentivada por razões políticas e económicas.

Apesar da China ser o único governo asiático que tem conseguido controlar o aumento populacional, os indicadores dizem que o país já passou a barreira do bilião.

A independência das novas repúblicas soviéticas mais próximas geográfica e culturalmente, como a Quirguízia e o Tajiquistão, ambos com fronteiras a menos de duzentos quilómetros de Kashgar, reacenderam o velho sonho de uma República Uigur. Mas é um sonho apenas, tal como a independência do Tibete.

Apesar de ambas as regiões parecerem inóspitas, há reservas florestais, minerais e petrolíferas das quais a China não se privará. E tanto o Tibete como o Xinjiang, assim como o Yunnan ou a Mongólia Interior, se situam em zonas fronteiriças consideradas instáveis, onde funcionam como “rolha”.

Se juntarmos a isso que a República Popular da China possui apenas cerca de quarenta por cento de solo adequado à agricultura ou à produção de recursos florestais, então compreendemos de vez que os sonhos de independência de províncias como o Tibete ou o Xinjiang não passam disso mesmo: sonhos.

Urumqi, capital da região autónoma uigur

A capital da Região Autónoma Uigur, na denominação pós-revolucionária, não é Kashgar mas Urumqi, uma metrópole com cerca de um milhão de habitantes, cerca de oitenta por cento dos quais de etnia han – a dominante em todos os sentidos, para além do numérico. E esta é apenas a ponta do icebergue.

Em cerca de sessenta anos, os dois milhões e meio de habitantes do Xinjiang ultrapassaram os treze milhões, e é fácil constatar que o facto não se deve inteiramente à freima reprodutora das etnias locais. As mesquitas funcionam, mas estão silenciosas e aparecem como surpresas em ruelas mais antigas, completamente dominadas por prédios e estradas.

É evidente o esforço de investimento e a melhoria de vida das populações. Mas para grande desconcerto dos chineses, as suas regiões autónomas não respondem com agradecimento à construção de escolas, hospitais ou estradas. Desde sempre, os nómadas e os povos dos oásis foram dos que mais dores de cabeça deram ao governo central e os han continuam a ser, no mínimo, desprezados.

Apesar dos privilégios oferecidos, incluindo o da liberdade de estudarem e falarem as suas línguas, quem quer fazer estudos superiores tem mesmo que aprender mandarim, uma vez que não são autorizadas universidades com outro idioma. E os uigures vão dizendo que a região, de autónoma tem muito pouco.

Uma China diferente

Kashgar ainda é um oásis cultural, a verdadeira “capital” uigur. Provavelmente, e com excepção dos escassos monumentos, o governo estará à espera que a decrepitude force as pessoas a abandonarem as casas típicas, com bonitas portas de madeira abertas para a rua, a privacidade do pátio resguardada apenas por cortinas coloridas.

A maior parte das ruelas arcaicas, bem varridas e com casas baixas de tijolo, saem da praça que se abre frente à mesquita Id Kah, formando uma espécie de centro antigo. As crianças brincam por ali, aos magotes, e sentimo-nos quase dentro dos lares, pela estreiteza das vielas e por algumas delas terminarem, abruptamente, na porta de alguém.

Túmulo de Abakh Hoja, Kashgar, China
Túmulo de Abakh Hoja, Kashgar, China

Algumas casas formam túneis e por várias vezes nos perdemos nestas ruelas labirínticas e afuniladas, por entre ferreiros, latoeiros, e meninas que transportam água em baldes pendurados em paus. Ninguém parece incomodar-se com a presença tão próxima de estranhos e os sorrisos são a melhor das hospitalidades. Os turbantes e os lenços, os rostos caucasianos, as personagens de outros tempos vão desfilando num cenário actual, onde as carroças de burricos estão confinadas às áreas dos arredores da mesquita e à raia do deserto.

O Islão instalou-se de forma definitiva em certas zonas da China durante a dinastia mongol Yuan (1279 – 1368), mas os uigures já tinham adoptado o islamismo no final do século X, depois de terem contactado com o maniqueísmo persa e o budismo.

A mesquita de Id Kah, apesar do seu aspecto pouco impressionante, data do século XV e é a maior da China, com capacidade para cerca de seis mil crentes. Às sextas-feiras transborda e algumas dezenas de homens rezam cá fora, junto à porta principal, por entre um arraial de vendedores de tapetes de oração e barretes brancos de croché, tipicamente muçulmanos. Apesar de estarmos na rua, o ruído reduz-se praticamente ao roçar e dobrar dos tecidos, acompanhando as prostrações.

A fachada amarela esconde um pátio ensombrado por choupos onde sabe bem fugir ao calor, embora ainda estejamos longe dos mais de quarenta graus comuns durante o Verão. Quase impossível é imaginar que as temperaturas, de Inverno, chegam a descer a menos de vinte graus negativos…

O ar está abafado, coberto por nuvens amareladas pela areia do deserto. As lojas fecham, as famílias passeiam. Algumas crianças, vestidas à maneira tradicional, parecem príncipes e princesas de outras épocas. Não é só o chapelinho bordado a dourados e prateados, são também os fios reluzentes, as lantejoulas, os tules e tafetás garridos dos vestidos das meninas, com as calças tufadas por baixo. Nada nos lembra a China que conhecemos, o seu pragmatismo e simplicidade.

“A China consegue tudo o que quer”

“Ver é fácil, compreender é difícil”, reza um provérbio chinês. Mergulhámos mais um pouco neste mundo quando, ao vaguear pelas redondezas da mesquita, descobrimos uma daquelas casas de chá tão comuns em toda a Ásia Central. Uma ilha uigur no oceano chinês que os vai inundando.

Num primeiro andar com varanda sobre a rua, paredes decoradas com espelhos e arabescos pintados em dourado sobre azul-turquesa, mesas e cadeiras substituídas por uma espécie de cama, onde as pessoas se vão sentando depois de tirar os sapatos. Ao longo da varanda, gaiolas de bambu com pássaros canoros. Os clientes, de chapeuzinho e barbichas pontiagudas, molhavam rosquinhas de pão com sésamo no chá, antes de as comerem. Uma tranquilidade única num ambiente profundamente asiático.

Túmulo de Abakh Hoja
Túmulo de Abakh Hoja

Em algumas “mesas” começou a fazer-se lugar para nós, convites mudos. Decidimo-nos por um ancião solitário de sorriso doce, que mandou vir mais chá para os novos amigos.

Sem língua comum, mastigávamos e sorvíamos trocando sorrisos ao som dos pássaros e das carroças que passavam em baixo. Tentámos fotografar o seu orgulho discreto por estarmos ali. Aprendemos a fazer cigarros arrebitados como cachimbos, com um bocadinho de papel de jornal.

Um grupo congemina perguntas, que nos atira por gestos: se temos filhos, se são meninos (gesto de bigode por cima do lábio) ou meninas (gesto de unir as sobrancelhas). Pouco importa se já são poucas as mulheres que mantêm esta tradição, de prolongar com um traço negro as sobrancelhas, unindo-as numa só; este continua a ser o sinal para “fêmea” nesta zona do planeta, como há centenas de anos.

Regressámos muitas vezes a este salão de chá, servido por homens e mulheres, mas onde elas pouco aparecem como clientes; só vimos algumas em dia de mercado. Um dia apareceu um jovem que sabia algum inglês, mas que ficou pouco tempo. Limitou-se a traduzir algumas perguntas de curiosos e pouco falou connosco, mas despediu-se assim: “Isto é a República Uigur. Os chineses só chegaram há cinquenta anos”. Fez uma careta. “Goodbye”. A verdade histórica não é bem essa, mas os desejos ficaram mais que esclarecidos.

“O Tibete tem sorte, todos conhecem o seu problema. De nós ninguém ouve falar”, lamentava-se um jovem barbeiro, agitando as tesouras ao som de música turca, num salão enfeitado com posters do Rambo. Os jovens que falam inglês, ou estão ligados ao turismo e mantêm-se cuidadosamente calados, ou então desatam a queixar-se sobre a situação política, sem que ninguém lhes pergunte nada. “A China consegue tudo o que quer”, dizia outro. “O Xinjiang, o Tibete, Hong Kong, Macau… já só lhe falta Taiwan”.

O mercado de gado de Kashgar

Ao Domingo realiza-se o mercado de gado, à saída da cidade. As carroças dos vendedores de gelo chegam com as primeiras luzes da madrugada e são prontamente rodeadas pelos fabricantes de sumos e gelados, que puxam os blocos que pretendem com grandes ganchos de metal. Os fornos cilíndricos das padarias são acesos com lenha, cravam-se no chão as estacas de madeira que vão segurar os animais.

Só depois chegam os camiões com ovelhas, as famílias com uma ou duas vacas, os cavalos, mulas e burros, as cabras, às vezes um ou outro camelo ou iaque. Cerca das oito e meia o recinto está cheio de gente e bichos. A animação é intensa.

Homens e rapazinhos experimentam as qualidades dos cavalos, com cavalgadas rápidas numa área delimitada, demonstrando uma perícia de nómada. Alguns touros conseguem arrancar as estacas e fogem pelo meio da multidão, com donos aflitos a correr atrás deles, de cordas na mão. Os burros desatam em sinfonias alternadas, enquanto as cabras, brancas e lãzudas, berram e lutam entre si com marradas turbulentas. Só as ovelhas se mantêm calmas, de cabeça baixa, à procura de sombra, que o Sol já vai alto.

Kashgar
Kashgar

Esta feira medieval fica completa com as pessoas. Muitos dos vendedores vieram das aldeias nos seus melhores trajes, faquinha de cabo trabalhado espetada na faixa da cinta, encoberta pelo casacão que só acaba nas botas de cano alto. É um festival de chapéus e peitilhos de camisa bordados, sorrisos tímidos, barbichas respeitáveis. Junto a um dos muros começaram a surgir casas de chá (um cobertor esticado no chão onde os clientes se sentam a bebericar), e fast-foods com o prato único de massas regadas com caldo de carneiro.

O mais extraordinário é ver a maneira rápida e eficiente como são feitas as massas, sem usar nenhum objecto cortante: as bolas de massa são esticadas no ar e dobradas sucessivamente, até o cozinheiro ter nas mãos uma meada com dezenas de fios unidos por uma ponta, que é prontamente partida com as mãos, enquanto a meada voa literalmente para a panela de água a ferver mais próxima!

Por volta das dez e meia da manhã, já só era possível andar acompanhando as pequenas multidões que se moviam num sentido ou no outro. Qualquer movimento individual esbarrava com barreiras humanas ou animais, quase sem espaço para poisar os pés no chão.

Os vendedores de ovelhas já tinham transbordado com os seus rebanhos cá para fora e chegaram os últimos comerciantes, os vendedores de sacos, cordas, erva fresca para aos animais, e as habituais carroças de aluguer.

O mercado coberto fica mesmo ao lado e vende de tudo, mas o ambiente do bazar é mais castiço. Vão abrindo barraquinhas com bilhares, bebidas e gelados. Todos possuem uma televisão portátil a debitar vídeos de pancadaria com o volume no máximo, para se sobreporem ao dos vizinhos…

Na zona do bazar, pequenos restaurantes ou bancas de rua oferecem iguarias locais, como as massas frias, que os uigures preferem ao arroz, e as cabeças de cabra, cortadas com um cutelo à vontade do freguês. Ao fim da tarde, levanta-se o fumo do shashlyk, espetadas assadas em grelhadores de carvão. Os han vendem ovos, fruta.

Mas é do meio do deserto, da cidade de Hami, que chegam os melhores melões e melancias do país, milagre conseguido pela irrigação através de canais milenares, que ainda hoje são mantidos e permitem que a vida e as hortas dos uigures floresçam num meio tão difícil. Já existiram muitas mais cidades-oásis no Taklamakan, mas foram engolidas pelas terríveis tempestades de areia, que cobrem quilómetros de terra tratada; em Hotan, por exemplo, numa só noite perdeu-se cerca de vinte mil hectares de culturas.

Mausoléu de Abakh Hoja, um dos raros monumentos de Kashgar

Dunas, terra seca, planícies calcinadas, pedras negras como carvão, colinas alaranjadas. E os resistentes choupos cobertos de poeira, a servir de barreira e a demarcar o início dos oásis.

É preciso ir até quase ao fim da zona habitada, ao longo dos canais e das linhas de árvores, atravessar o rio Tuman, para encontrar um dos raros monumentos de Kashgar: o mausoléu de Abakh Hoja, líder político e religioso uigur do século XVI. Mimoso e coberto de azulejos daquele verde centro-asiático, parece uma pequena mesquita, com as suas colunas laterais a lembrar minaretes.

Pede-se uma pequena fortuna aos turistas estrangeiros por um bilhete de entrada, mas não se nega já a sua existência, como nos tempos da uniformização cultural de Mao. O simples facto da sua recuperação é, portanto, um sinal dos tempos.

Apesar da prontidão e violência com que reprime qualquer tentativa de autodeterminação, como aconteceu durante os últimos levantamentos populares em Kashgar, nos anos 90, o governo central vai compreendendo que não é com vinagre que se apanham moscas.

E que se não é possível dissolver as minorias na cultura han dominante, pelo menos pode criar-se um clima de aceitação e convivência pacífica em toda a China. Mesmo na dos outros.

Guia prático

Este é um guia prático para viagens a Kashgar, com informações sobre a melhor época para visitar, como chegar, pontos turísticos, os melhores hotéis e sugestões de actividades na região.

Quando ir

Dadas as temperaturas extremas de Inverno e de Verão (mais de 40 positivos a menos de 20 negativos), aconselha-se as estações intermédias, entre Setembro e Novembro, ou entre Abril e Junho.

Como chegar a Kashgar

A fronteira com o Paquistão tem estado aberta, e pode pedir visto na embaixada da República Popular da China, em Islamabad. Se estiver na China, pode voar para Urumqi, onde pode escolher entre o autocarro (três dias muito desaconselháveis) ou o comboio; são mais de trinta horas mas é muito confortável e asseado – e ao preço chinês.

Onde ficar

A situação hoteleira está em nítida revolução, mas os hotéis Seman e Seman nº 3 são adequados e têm uma boa escolha de quartos duplos, individuais, com e sem casa de banho.

Pesquisar hotéis em Kashgar

Gastronomia

A palavra higiene não consta do dicionário uigur. Vi por várias vezes arrumarem os pauzinhos que tinha utilizado junto com os outros, sem sequer os passarem por água. A mesma coisa com os copinhos dos gelados, etc. Se comer carne, lembre-se que os frigoríficos são uma coisa incipiente nesta zona, e felizmente não há muito o hábito das saladas cruas. Há água engarrafada em todo o lado.

Isto dito, poucos são os que escapam de alguns problemas digestivos (geralmente passageiros), mas come-se muito bem no bazar, onde se pode apontar, uma vez que a comida está exposta. Recomenda-se o pão (com ou sem cebola), as rosquinhas de sésamo, o iogurte e as massas, frias ou quentes, com molho picante e coentros. Também não falta fruta à venda.

Junto aos hotéis Seman, os “cafés de gringos” John’s e Oasis têm menus em inglês.

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Sobre o autor

Filipe Morato Gomes, blogger de viagens

Olá! O meu nome é Filipe Morato Gomes, vivo em Matosinhos, Portugal, sou blogger de viagens, co-autor do projeto Hotelandia e Presidente da ABVP - Associação de Bloggers de Viagem Portugueses.

Tenho 51 anos e muita experiência de viagem acumulada. Já dei duas voltas ao mundo, fiz dezenas de viagens independentes e fui líder de viagens de aventura.

Mais recentemente, abracei um novo desafio chamado Rostos da Aldeia, onde se contam histórias positivas sobre as aldeias de Portugal e quem nelas habita.

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