Mesmo ao lado de destinos turísticos como a Tunísia e o Egito, a Líbia permanece um mistério para os ocidentais. Durante décadas, as circunstâncias políticas esconderam dos nossos olhos um território de extraordinária beleza com uma história riquíssima. Finalmente, os que viajam sem medos nem preconceitos podem agora abrir estas portas de África.
Chegada à Líbia
Cheguei de noite, depois de uma “emocionante” viagem por terra desde a capital tunisina, num velho Peugeot a abarrotar com oito pessoas. Estes táxis colectivos, geralmente conduzidos por líbios, fazem a ligação Tunis – Tripoli em cerca de quinze horas, com paragens para comer e para tudo o mais que seja necessário.
Cheguei de noite e, como turista europeia, tinha o representante da agência à minha espera na fronteira para fazer o resto da viagem num automóvel confortável, que emitia sinais sonoros para avisar o condutor de cada vez que ultrapassava os 120 kms/hora. Para entrar na Líbia é necessário um convite para obter o visto.
Logo, quem não tem amigos no país é obrigado a recorrer a uma agência de viagens que, para fornecer os seus serviços, trata de todas as formalidades e detalhes necessários à vinda do cliente, recebem-no à chegada e acompanham-no até à partida.
Pelo Deserto do Sahara, Líbia
Na madrugada seguinte, guia e motorista chegavam de novo para me levar ao aeroporto e apresentar-me ao que seria o meu intérprete durante a viagem pelo deserto, a partir de Sahba. Voo curto, aterragem estremunhada, um outro motorista à espera, e a bagagem colocada num 4×4 carregado de bidões de gasolina que rumou de imediato para Tekerkiba.
Só quando parámos junto à imensidão alaranjada das dunas, preparando-nos para passar a noite num acampamento entre aldeia e a areia, é que compreendi que estava na Líbia. A entrada tinha sido demasiado rápida e os transportes sucederam-se, arrastando consigo aquela sensação de beatífica apatia que invade quem viaja sem comunicar, apreciando apenas as vistas das janelas do avião ou do automóvel. Não há choque cultural, mas também não há sensações.
A primeira semana passei-a no deserto, com um motorista que só falava árabe – e pouco – e um rapaz da cidade que era tão turista como eu, mas que servia de intérprete, cozinhava e levantava-me o moral nos dias de chuva, coisa indispensável para qualquer fotógrafo. Com eles percorri as dunas entre os lagos Dawada, avancei pelo deserto entre os montes Akakus, viajei até ao Wadi Mathkendoush.
Sozinha seria impossível descobrir tanta pintura e gravura rupestre, tantas cores diferentes na areia das dunas, tantos rios sazonais (os wadis), não teria almoçado com tuaregues nem provado a tagila, pão cozido na areia. Choveu, fez sol, esteve calor de dia e muito frio de noite. As paisagens mais belas do Sahara estão ali, no chamado “mar de areia” líbio.
Como se explicam aqueles montes calcinados em forma de torres, cogumelos e arcos, que saem de dunas amarelas ou cor-de-laranja? Que fenómenos geológicos resultam em tamanha surpresa, mais fácil de explicar com a palavra milagre? As cores mudam, da areia passamos a planaltos de pedra negra calcinada, daí para lagos debruados a palmeiras, rodeados por dunas gigantescas.
Embora as aldeias sazonais dos tuaregues, que não conhecem fronteiras como a da Argélia ou do Níger, sejam raras e muito espaçadas, a quantidade de gravuras nas rochas mostra não só que a zona foi habitada, mas que era também muito fértil, frequentada por pastores com os seus rebanhos e grupos de animais de savana, como elefantes, girafas e crocodilos.
Que o deserto avança já todos sabemos, mas a transformação é tão fantástica que as preocupações ecológicas ficam para trás, e até nem parece grave que o resto do planeta fique assim, de uma beleza tão extrema e insólita.
Ghadames, Sabratha e Leptis Magna
A minha viagem com a agência terminava em Tripoli, depois desta incursão no Sahara. A seguir estava por minha conta, com um visto que me dava o tempo necessário para conhecer um pouco da Tripolitânia, a zona ocidental da Líbia. Foi com surpresa que encontrei o representante da agência à minha espera no hotel, logo na manhã seguinte. Queria saber o que eu ia fazer a seguir.
Folheei o guia, falei-lhe vagamente do meu interesse por Ghadames, pelas ruínas romanas de Sabratha e Leptis Magna, talvez a zona berbere de Jabal Nafusa, com os seus celeiros antigos espalhados pela montanha. Muito bem, é tudo muito bonito. Quando? Quando me apetecer, depois de visitar Tripoli e mudar para um hotel mais barato.
O homem inquietava-se, queria saber datas, reservar-me carro e guia. E entrou decididamente em pânico quando lhe disse que não, que tencionava experimentar os transportes públicos, viajar com os líbios e não andar metida numa redoma de um lado para o outro, nem ficar em “prisão domiciliária” em Tripoli. ”E se te acontece alguma coisa? Os responsáveis somos nós!”
O diálogo ficou mais vivo quando lhe perguntei o que é que me podia acontecer: ser roubada? Não, a Líbia é um país muito seguro. Ser atacada? Nem pensar, aqui respeitamos muito as mulheres. Então? Que mais pode acontecer a uma pessoa que viaja sozinha? Terei falta de imaginação?
A insistência foi tanta que acabei por ler nas entrelinhas, perceber o que nunca me disse: o receio não era pelo que me podia acontecer, mas pelo que aconteceria à agência se eu fizesse qualquer coisa de errado. Ir a algum lugar onde não podia estar, fotografar o que não pode ser fotografado.
O último dos meus interesses é a política e, como fotógrafa, só procuro o que me agrada, não encontro em zonas militares, aeroportos, oleodutos e coisas afins um interesse mínimo que me leve a disparar. Procuro as diferenças culturais, não procuro os sintomas político-económicos dos países que visito.
Tudo muito difícil de explicar a quem fala mal o inglês e não percebe como é que se pode viajar sem conhecer a língua do país. De qualquer modo, a única maneira de me travar os movimentos era mesmo prenderem-me ou expulsarem-me. Até lá, fui-lhe dizendo, vou andar por aí. E assim fiz.
Comprei o bilhete para Ghadames na central de camionagem perto do hotel, onde um velhinho simpático de dente de ouro mexia com à vontade no computador e sabia algumas palavras de inglês. Saí de manhã e cheguei de tarde, já com o sol bem forte. Apesar das estradas serem boas e os autocarros também, não deixam de ser cerca de seiscentos e quarenta quilómetros e as respectivas paragens para comer. O sol brilhava na costa, aquecendo as enormes extensões de oliveiras, mas um nevoeiro frio esperava-nos no alto da Jabal (montanha) Nafusa.
Nas aldeias que passámos, os homens agasalhavam-se com uma espécie de toga romana, longa e branca, poisada na cabeça e atirada sobre um ombro. Maioritariamente berberes, os habitantes resistiram às invasões árabes e mantiveram diferenças culturais como a língua, os celeiros colectivos e as casas trogloditas, construídas nas falésias ou no subsolo, como faziam os vizinhos tunisinos em Matmata. Agora poucas sobram e só são abertas para turista ver.
Celeiros ainda há vários, espalhados pelas montanhas, como em Nalut, Kabao ou Qsar Hajj. Hoje são atracções turísticas, mas deles já dependeu a vida das populações, que aqui guardavam a sua riqueza da cobiça dos invasores; as paredes exteriores são lisas e de aspecto inexpugnável, e apenas uma pequena porta dá acesso ao pátio rodeado pelos nichos onde se guarda os grãos, dispostos em três e quatro andares, acessíveis por escadinhas minúsculas.
Descida a montanha entra-se num deserto feio e ressequido, sem o romantismo das dunas do Sul. Nas paragens, como já ia sendo costume, eu só me expunha aos olhares curiosos dos homens para tentar arrancar uma sanduíche ou uns biscoitos nos pequenos cafés de beira de estrada.
Embora nas cidades as mulheres trabalhem (sobretudo em empregos oficiais, como escolas, bancos ou correios), e circulem livremente nas ruas, fora do seu ambiente parecem ser mais reservadas e são os homens que levam as sanduíches e os refrescos à camioneta, na hora da fome.
Não há problema nenhum em deixar a bagagem de mão poisada nos bancos, e a ninguém parece sequer ocorrer a ideia de sacar mais algum dinheiro a uma estrangeira solitária. Ninguém nos dirige a palavra, os olhares desviam-se com timidez ao primeiro contacto. Todos muito sérios.
A cidade-oásis de Ghadames
Em Ghadames, a história e a modernidade cruzam-se de maneira extraordinária. É uma cidade-oásis e foi ponto de paragem obrigatório para as caravanas de dromedários vindas do Sudão a caminho de Tripoli e da costa, com os seus carregamentos de escravos, ouro, penas de avestruz, marfim e peles, que se trocavam por contas e colares de vidro de Veneza, imitações de diamantes vindas de Paris e sedas.
A abolição da escravatura fez com que no século XIX este comércio tivesse declinado, mas só terminou completamente com o século XX. As tribos berberes de Ghadames falam ghadamsi e sempre foram comerciantes, contando com a ajuda dos nómadas tuaregues para protecção das suas caravanas nas longas e perigosas viagens que faziam através do deserto. O seu domínio era este, uma cidade-fortaleza construída com troncos de palmeira e tijolos de adobe secos ao sol, cobertos de lama amassada com palha.
Por fora parece um castelo alto e sem entradas, cujos tectos rasos são terraços, de esquinas arrebitadas em triângulos para afugentar os djinn, espíritos maléficos voadores. As janelas são furinhos minúsculos ao nível do segundo andar e as palmeiras quase escondem as paredes. Antes estava tudo cuidadosamente pintado de branco, mas agora, com o abandono progressivo a que foi sujeita, a cidade mostra a cor dos tijolos e há partes que caem em ruínas.
Quem chega, começa por ver apenas um casario alaranjado e moderno, ruas poeirentas e parabólicas com fartura. Há pelo menos dois postos de internet públicos. As mulheres passam de hijab, com vestidos ou túnicas modestas, como manda a lei islâmica, e lenço na cabeça; as mais tradicionais ainda cobrem a roupa com um tecido típico, de riscas garridas e prateadas.
Os restaurantes da praça central perto do museu pertencem a argelinos e tunisinos, ávidos de trabalho e mais conhecedores de línguas estrangeiras do que a generalidade dos líbios. A cidade antiga fica metida no oásis, ao lado dos velhos cemitérios com os seus marabus de um branco ofuscante. Protegida pela UNESCO, é agora objecto de intensivas obras de recuperação.
Para a visitar pela primeira vez aconselha-se a ajuda de um guia, que explica todos os pormenores culturais que suscitaram semelhante obra arquitectónica. A sensação, depois de passar pelos arcos de qualquer das sete entradas e percorrer as ruelas curvilíneas ensombradas por palmeiras que levam ao casario, é a de penetrar numa gigantesca termiteira humana. As ruas são túneis frescos por onde a brisa do deserto é canalizada e arrefecida, a luz é mínima e tudo é pequeno: as portas, os degraus que levam às casas, as divisões. Até a decoração com espelhos, objectos de cobre e desenhos naifs feitos com pinceladas vermelhas lembra a de uma casa de bonecas.
A luz, que no deserto significa calor, só entra por uma pequena clarabóia e reflecte-se depois nos pequenos espelhos pendurados nas paredes; a cozinha fica no terraço, zona exclusiva das mulheres, que só podiam sair de madrugada ou ao entardecer, mas durante o dia percorriam a aldeia toda caminhando pelos terraços que ligam todas as casas do aglomerado.
As duas tribos berberes que aqui habitavam, os Ben Oualid e os Ben Ouazit, viviam em zonas separadas delimitadas por marcas nas paredes, embora circulassem livremente e casassem entre si. O ponto de encontro era a praça entre as duas grandes mesquitas (uma para cada tribo), onde uma curiosa clepsidra, controlada por um homem cuja função era ir enchendo o recipiente da água, marcava as horas de rega para cada quintal.
Hoje a cidade já não é habitada e as duas tribos juntaram-se a uma terceira, que vivia fora das portas de Ghadames. Os materiais de construção tradicionais não permitem sequer a canalização de água ou esgotos, e as casas desinteressantes mas modernas que vemos à chegada são agora a Ghadames viva, enquanto a outra se transformou num museu e jardim de recreio.
Mas à hora do calor os mais velhos gostam de vir aqui fazer a sua sesta, gozando a brisa nos bancos das ruelas, às sextas-feiras costumam ir às antigas mesquitas, e nenhuma família parece ter deixado de cultivar os seus jardins de oásis, de onde saem óptimas tâmaras, citrinos, romãs, damascos, tomates, e onde mantêm uma meia-dúzia de cabras e ovelhas alimentadas com o pasto que se faz crescer à sombra das palmeiras.
O meu guia, Mohamed de sua graça, teve vergonha de me dizer o preço de uma excelente manhã de explicações e visitas; tive de usar como intermediário o rapaz da recepção do hotel, que fez o favor de lhe arrancar um “que pague o que quiser”. Mais tarde, quando contratei um 4×4 para visitar as ruínas do forte romano de Qasr al Ghul, o condutor também não foi capaz de me dizer o preço da viagem – e voltei a recorrer ao rapaz do hotel.
E por mais duas vezes, enquanto passeava pela cidade antiga, fui abordada por guias que falavam inglês e que insistiram em acompanhar-me, abrir-me a porta de outras casas e tornar a explicar-me os detalhes culturais da cidade, apesar de lhes dizer que já tinha feito uma visita guiada, só pretendia fotografar. “Mas ele explicou-lhe como se constroem os arcos?” ou “Então venha só ver o meu quintal”, foram as introduções para mais duas manhãs nos túneis frescos da cidade antiga, visitas a casas, conversas nos terraços, cumprimentos às cabras e duas laranjas colocadas na mão com um sorriso. De dinheiro, nem falar.
Aliás, a relação dos líbios com o dinheiro pareceu-me bastante curiosa. Acostumados que estamos aos países do Norte de África, onde qualquer miúdo começa a dar explicações sem avisar, e no fim se intitula de guia e pretende ser pago, não podemos deixar de nos surpreender com esta modéstia. Acho que é o único país que conheço onde um taxista me anunciou o seu preço com um “está bem para si?” meio envergonhado.
As grandes necessidades, como alimentação, habitação e educação, são providas ou, pelo menos, facilitadas pelo governo. Há subsídios para viúvas e divorciadas com filhos e os velhinhos ainda podem contar com a família. A livre iniciativa empresarial vai de vento em popa, com lojas e agências privadas a aparecerem cada vez mais, e trabalho – que é coisa que os líbios confessam, risonhos, que não gostam muito -, também parece não faltar.
Até sobra para os vizinhos pobres, como os egípcios, os marroquinos e os tunisinos, para não falar da verdadeira “invasão” de nigerianos, ganeses e outros imigrantes da África subsariana que, aproveitando os apelos à união africana feitos pelo presidente Khadafi, têm aproveitado para se vir instalar, pelo menos sazonalmente, no seu vizinho rico.
Dado o panorama e não sendo ganancioso, o povo acha-se bem. Basta uma casinha que até nos parece modesta, um carro que até nos parece uma antiguidade, ter de comer e vestir confortavelmente, e temos um líbio feliz. Parece que o dinheiro se colecciona só para as orgias de ouro e comida que são os casamentos no Norte do país, ou para uma necessidade.
E apesar das queixas que sempre se ouvem, aqui como em todo o lado do mundo, numa coisa os líbios parecem estar de acordo: a situação está muito melhor agora e, aparentemente, continua a melhorar. Conhecem algum povo assim tão optimista? Imaginam os portugueses a comentar que as coisas estão a ficar melhor depois de trinta e quatro anos de governo do José Sócrates?
Regresso a Tripoli, capital da Líbia
De volta a Tripoli, a cidade acolheu-me com os seus prédios feios, trânsito agressivo, e uma série de confortos urbanos: esplanadas junto ao mar, um excelente museu, a medina bem viva e uma fantástica fusão gastronómica. É possível juntar à mesa a Europa, o Médio Oriente e a África.
Podemos começar com um excelente cuscuz seguido de requintados doces turcos de mel e amêndoa, e terminar com um dos melhores capuccinos do mundo. Para já não falar do fast-food de pizzas e cozinha do Médio Oriente, tipo salada fresca, falafel e feijões, num dos pequenos e abundantes restaurantes egípcios da capital. Com iguarias destas à mão, percebe-se mal o vício líbio do atum enlatado, sobretudo misturado com macarrão…
Os testemunhos da presença turca, italiana e árabe não se ficam pela cozinha, pelo menos em Tripoli. Não é preciso afastarmo-nos muito da Praça Verde para entrar numa medina muralhada, onde se descobrem mesquitas e banhos turcos. No Souk al Turk (Mercado dos Turcos) continua a produção de objectos de cobre e noutras ruelas da medina desenrola-se todos os fins de tarde um animado mercado de quase tudo.
Na parte coberta há um mercado de ouro, tecidos e artefactos luxuosos, especialmente dedicados às festas de casamento – a ruína dos líbios -, e mais adiante entramos em becos calmos e melancólicos, onde alfaiates do Níger costuram roupas de cores e estampados caleidoscópios.
Do lado oposto da Praça Verde saem ruas inteiras de arquitectura puramente mediterrânica, de casas brancas com janelas de ripinhas verdes ou azul-claro e varandas estreitas, que chega a tomar ares de grandiosidade pseudo-romana em pracetas de colunatas, agora ocupadas por cafés de shisha, como chamam aqui ao cachimbo de água. A Rua 1º de Setembro e paralelas são das que têm mais fachadas deste estilo, para além de serem o centro comercial da cidade. Nas suas lojas do rés-do-chão vende-se de tudo, das roupas aos electrodomésticos, e não faltam os cafés e restaurantes para as pausas nas compras.
A parte mais moderna da cidade, com as suas torres de hotéis modernos e o seu restaurante panorâmico giratório, parece concentrar-se ao longo da linha do mar. Aqui e ali aparecem os inevitáveis cartazes com a figura do coronel Khadafi, como em todo o país – salvo no meio do deserto.
Embora a orientação no centro de Tripoli não seja difícil, é mais complicado saber-se exactamente a rua onde se está, uma vez que na Líbia está tudo escrito em árabe, incluindo o nome das ruas, lojas e restaurantes. E se um restaurante é relativamente fácil de detectar, um hotel, por exemplo, já é caso para muitas hesitações.
Não há bandeirinhas coloridas nem porteiros fardados. As pessoas reagem entre a timidez e a estupefacção quando são abordadas na rua, e parecem absolutamente espantadas por verem uma estrangeira sozinha a fazer perguntas de guia de viagem na mão. O que é normal; o turismo ainda está incipiente e camionetas de turistas só as vi mesmo junto às ruínas romanas de Sabratha e de Leptis Magna. Juntamente com a capital, antigamente chamada Oea, formavam um importantíssimo trio de cidades, que vieram a dar o nome a Tripoli – à letra, três cidades. E se de Oea já pouco mais resta que alguns vestígios de colunas e o imponente arco de Marco Aurélio, virado para o mar junto a uma das entradas da medina, Sabratha e Leptis são pontos altos de qualquer visita à Líbia.
A densidade populacional é mais alta na costa mediterrânica do que em qualquer outra zona do país. Pelas suas características climatéricas e proximidade do mar, a linha costeira parece ser um contínuo aglomerado de casas interrompido por extensos olivais, ocasionalmente percorridos por pastores com os seus rebanhos.
Dada a aridez e pobreza do solo, apenas cerca de 1% do território é considerado apto para a agricultura e grandes esforços têm sido feitos para aumentar as áreas irrigadas, nomeadamente a construção de um rio (!), que traz água do subsolo sariano para o Norte, através de uma extensíssima rede de pipelines. Mas a riqueza da Líbia vem, como se sabe, das suas reservas petrolíferas, que permitem manter as lojas cheias de produtos importados um pouco de todo o lado, dos sumos espanhóis às aparelhagens fabricadas no Egito, das roupas do Paquistão aos biscoitos dos Emirados Árabes.
Vestígios da antiguidade em Leptis Magna
Desde o começo dos tempos que a costa tem sido palco de intensas trocas comerciais. A cidade de Leptis Magna foi tão importante como Cartago, na Tunísia, e ainda hoje é um dos mais extraordinários vestígios da antiguidade no continente africano.
O teatro, o velho fórum com as suas cabeças de Medusa, as colunas trabalhadas da basílica, as termas de Adriano e os templos e edifícios espalhados à beira-mar estão suficientemente intactos para nos darem uma visão de uma cidade magnífica, que começou como um pequeno aldeamento fenício para vir a ser incorporada no Império Romano no século X, tornando-se num dos seus principais portos marítimos. Ancorada à beira-mar, até no enquadramento Leptis é uma obra de arte, merecidamente incluída no Património Mundial da Humanidade, protecção de que goza igualmente Sabratha.
Menos importante que Leptis, Sabratha começou como um pequeno entreposto cartaginês e tornou-se no importante terminal das caravanas trans-sarianas que chegavam via Ghadames. As suas ruínas incluem as colunas de vários templos romanos, de pé junto à linha da areia, recortando-se no azul do mar.
O seu pequeno museu não é tão rico como o moderno museu de Leptis, mas guarda interessantes peças púnicas e mosaicos romanos muito bem conservados. As termas também têm vistas sobre as ondas e uma Vénus sem cabeça resiste ao sal e ao sol, à espera das fotografias dos turistas. Mas a sua maior glória é o gigantesco teatro, com lugar para cinco mil espectadores, visível de quase toda a cidade.
Eram estas as portas de África para os visitantes da antiguidade, e sem dúvida que estes arcos, calçadas e templos continuam a ser uma das imagens mais impressionantes para o visitante actual.
Pequena história de um grande país
O tamanho do país faz com que, por um lado, a história seja longa e complicada e, por outro, que tome rumos diferentes segundo as regiões. Dado que as zonas desérticas do Fezzan são pouco habitadas e têm andando um pouco “a reboque” do resto do território, podemos concentrar-nos nas zonas mais agitadas historicamente, para tentar compreender como nasceu a Líbia de hoje. Ou melhor, a Grande Jamahiriya Árabe Popular Socialista.
As tribos berberes, os fenícios e os gregos foram os primeiros a afirmarem-se como donos da costa, fundando importantes cidades portuárias ou entrepostos comerciais para as trocas entre a África subsariana e a bacia mediterrânica.
Os gregos estabeleceram uma importante colónia em Cyrene e o próprio nome Líbia vem do grego, e significa algo como “pingos de chuva”.
Os romanos ocuparam as cidades fenícias de Cartago (na Tunísia), Sabratha, Oea e Leptis Magna, levando-as ao seu expoente máximo, como ainda hoje é facilmente constatável. As tribos árabes muçulmanas começaram a chegar por volta do século VII, e desde então Tripoli foi sempre o centro incontestado do poder.
A ocupação turca começou no século XVI, com a inclusão do território no império otomano e, após um interregno, regressou no século XVIII. A Itália aproveitou a 1ª Guerra Mundial para arrebatar o território aos turcos e, em 1922, o governo fascista transformou a região numa colónia. Após a 2ª Grande Guerra, as Nações Unidas decretaram o nascimento de uma monarquia de estados federados (Tripolitânia, Fezzan e Cyrenaica) e, em 1951, surge o Reino Unido da Líbia, sob o comando do Rei Idris I.
A 1 de Setembro de 1969, um golpe de estado sem sangue liderado por Muammar Khadafi lançou o país na chamada “3ª via”, uma fusão de socialismo, islão e ideais pan-arábicos preconizados pelo presidente Nasser do Egito.
Depois de uma página negra da história, em que a Líbia foi acusada pela comunidade internacional de fomentar, armar e levar a cabo atentados terroristas, que culminou com embargos e bombardeamentos por parte dos Estados Unidos, o país toma agora um rumo diferente. Lentamente, a economia vai abrindo portas ao turismo e à iniciativa privada, enquanto as liberdades políticas são consideravelmente maiores do que há trinta anos.
Sahara, nome de deserto
Ora aqui está, finalmente, uma zona onde os primeiros a chegar não foram os portugueses. Os primeiros europeus a explorar o Fezzan, a parte do Sahara que coube à Líbia, foram alemães e ingleses.
Friederich Hornemann disfarçou-se de árabe e conseguiu chegar a Murzuq, vindo do Cairo, em 1789. Só no século XIX é que começaram a aparecer os primeiros mapas da área e foi o francês Henri Duveyrier que registou pela primeira vez as vias trans-sarianas. Nos anos trinta, foi a vez dos italianos investigarem as pinturas e gravuras rupestres do Akakus e a história dos misteriosos garamantes, os primeiros habitantes conhecidos do Fezzan.
Apesar da palavra Sahara ser usada em árabe como sinónimo de deserto, esta enorme mancha desabitada do continente africano nem sempre o foi. A arte rupestre dos montes Akakus e do Wadi Mathkendoush mostram que existia um clima húmido, com floresta do tipo mediterrânico que cobria os planaltos, que só se alterou a partir de cerca de 2.500 a.C.
Restaram os oásis, com as suas reservas de água subterrâneas, e a única actividade possível passou a ser a pastorícia de transumância. Os líbio-berberes e os tuaregues foram os primeiros grupos conhecidos de populações a sustentarem-se deste modo.
Como complemento, os pastores sarianos dedicavam-se por vezes, à pilhagem das caravanas que faziam a ligação entre o Sudão e a costa. Para acabarem com este problema, os romanos chegaram a estabelecer guarnições, cujas ruínas ainda são visíveis, em pleno deserto, mas que duraram poucas décadas.
Hoje em dia, com o nomadismo quase extinto, os tuaregues e os beduínos são os últimos nómadas do Sahara e ainda é possível encontrar pequenas aldeias itinerantes no extenso território desértico da Líbia.
Guia de viagens à Líbia
Este é um guia prático para viagens à Líbia, com informações sobre a melhor época para visitar, como chegar, pontos turísticos, os melhores hotéis e sugestões de actividades no país.
Como chegar a Tripoli
É indispensável um visto, que só se obtém através de um convite feito por uma agência, que só o emite contra marcação de uma viagem organizada. O que não tem nada de mais, uma vez que penetrar no deserto sozinho, além de ser proibido, para proteger as gravuras rupestres do Akakus, exige uma grande experiência prévia. Uma agência que aconselho é a Alkalaa For Travel & Tourism, de Ahmed Al Ansary.
Onde ficar
Em Tripoli há grandes hotéis de qualidade internacional, como o Hotel Al Mehari ou o Hotel Waddan. Em Ghat, há pelo menos dois parques de campismo. Fiquei no Anya Camping, que tem “palhotas duplas” asseadas mesmo junto às dunas, onde se põe o pé na areia mal nos levantamos. Em Ghadames, há um Albergue da Juventude que não faz questão quanto às idades e mais um ou dois locais – é melhor perguntar ao chegar.
Gastronomia líbia
Uma viagem no deserto será sempre por conta de uma agência, e incluirá já a alimentação, cozinhada na altura pelos acompanhantes. No resto do país, é difícil citar nomes, uma vez que estes ou não estão escritos ou estão escritos em árabe, sendo por isso difíceis de identificar. Geralmente os hotéis têm os seus próprios restaurantes e na Rua Omar al Mukhtar (que sai da Praça Verde, junto ao castelo) há muitos pequenos restaurantes de fast-food ao estilo do Médio Oriente (falafel, batatas fritas, saladas, etc.).
Um restaurante em Tripoli voltado também para o turismo é o Al Ghazala, em Al-Dahra, junto ao Arco de Marco Aurélio. Em Ghat não encontrei nenhum restaurante, mas o campismo cozinha por encomenda. Em Ghadames há alguns restaurantes em frente à porta do Museu.
Informações úteis
O visto líbio, que obriga à tradução do passaporte para árabe, custa cerca de 100€. A Embaixada da Grande Jamayria Árabe Popular Socialista fica na Av. Das Descobertas, 24/24-A, 1400-092, Lisboa. Tel. 213016301.
Para trocar dinheiro dirija-se aos bancos. A vida não é barata, com os hotéis médios a rondarem os 40 a 60 Dinares, as entradas nos lugares históricos e museus entre 3 e 15 Dinares. Para visitar as ruínas de Sabratha e Leptis, o melhor é arranjar um táxi na recepção do hotel (cerca de 100 Dinares todo o dia). A camioneta para Ghadames sai do terminal de Dhara, e para Ghat o melhor é ir de avião, a menos que queira demorar alguns dias a lá chegar.
Seguro de viagem
A IATI Seguros tem um excelente seguro de viagem, que cobre COVID-19, não tem limite de idade e permite seguros multiviagem (incluindo viagens de longa duração) para qualquer destino do mundo. Para mim, são atualmente os melhores e mais completos seguros de viagem do mercado. Eu recomendo o IATI Estrela, que é o seguro que costumo fazer nas minhas viagens.