A Ana Isabel Mineiro é uma das mais experientes cronistas de viagem portuguesas e tem por hábito viajar sozinha. É apaixonada por montanhas, desertos e lugares selvagens em geral, para além da gastronomia vegetariana. Convidei-a a partilhar a sua visão sobre ser vegetariana em viagem. O texto que se segue é da sua autoria.
Ser vegetariana, para mim, é um estado permanente, e a cada viagem o meu cardápio caseiro vai crescendo: wade, ravitoto, momo, moussaka, dizi e taboulé são pratinhos normais cá de casa.
Ser vegetariano – sobretudo se a opção é a 100%, como no meu caso* – é um estado permanente, como ser alto ou baixo; uma vez que se faça seriamente o percurso mental que leva à decisão de não colaborar no verdadeiro Auschwitz diário que os humanos montaram no reino animal, não há volta a dar-lhe. E se em nossa casa verificamos que as nossas opções alimentares, em vez de diminuírem, aumentaram com o vegetarianismo – ninguém imagina as coisas “estranhas” e absolutamente deliciosas que um vegetariano vai descobrindo e incluindo nos menus do dia-a-dia -, quando se viaja por longos períodos de tempo, a questão é diferente.
A verdade é que somos veganos ou vegetarianos porque podemos fazer essa opção. É mais uma das vantagens de pertencer ao Fabuloso Mundo Ocidental: podemos fazer opções éticas até sobre o que comemos. Mas, no deserto africano ou no planalto tibetano, as garantias de conseguir uma couvinha que seja diminuem substancialmente.
Nada é impossível: os chineses invadiram o Tibete mas levaram para lá o tofu; no deserto do Sahara há oásis que regurgitam verduras, tâmaras e romãs – mas nem sempre podemos contar com isso, e o viajante vegetariano deve tomar em mãos a logística se não quiser perder uns quilitos a mais durante uma viagem longa. Pelo que me diz respeito, adoro abastecer-me de fruta e frescos em mercados populares, bolachas nas mercearias, e levo sempre algumas barritas mata-fome de casa – embora confesse que há sempre uma parte delas que regressa comigo ou é oferecida a uma criancinha gulosa.
De qualquer modo, todos sabemos que é vulgar, para quem viaja por países “em vias de desenvolvimento”, tornar-se vegetariano durante algum tempo por simples razões de higiene. Não é preciso participar num Summer Camp da ASAE para imaginar o que acontece ao nosso frágil estômago de ocidentais se comermos parte de uma carcaça que está pendurada num gancho na berma da estrada, ao sol e às moscas, ou um daqueles peixes esverdeados que passaram o dia suspensos no volante de uma bicicleta. As cabeças de camelo ou de porco que servem de anúncio a certos “talhos” também são desencorajadoras. E foi um simples e inocente ovo cozido que incapacitou por completo um amigo que ia juntar-se a mim num trekking nos Himalaias – ora aí está uma coisa que um molho de verduras ou uma bela curgete, por muito murchinha que estivesse, dificilmente conseguiria fazer.
Um site que pode ajudar em viagem é o HappyCow, que lista restaurantes amigos dos vegetarianos. Mas mal se sai dos “trilhos mochileiros” ficamos por nossa conta. As boas notícias são que, na prática, a maior parte do que se come na maior parte do mundo pertence ao reino vegetal, e não animal. Em cada país onde a carne lidera os menus – na Argentina, por exemplo – há sempre um leque de pratos de feijão, milho e legumes, há sempre algum tipo de pão, há sempre fruta em muito maior quantidade e variedade do que o mesmo pedaço ensanguentado de carne, que só varia o sítio onde é cozinhado: na brasa, na frigideira ou na panela. Só é preciso descobrir onde é que eles estão, indagar, por vezes entrar no maravilhoso mundo das cozinhas locais – e, sobretudo, não ter medo de experimentar. Foi assim que wade, ravitoto, momo, moussaka, dizi e taboulé se tornaram pratos normais cá em casa.
Para facilitar a comunicação, é sempre útil aprender a dizer “vegetariano” ou “comida vegetariana” em várias línguas, e posso dizer orgulhosamente que o meu vocabulário já ultrapassou as fronteiras do Vietname e de Myanmar. Já em mandarim, com aquela coisa dos acentos tonais, uma vez devo ter pronunciado wo chi su (sou vegetariana) como che suo (casa de banho), e acabei por ser conduzida até à latrina do restaurante. Mas foi só uma vez…
Por estranho que pareça, o paraíso dos vegetarianos é mesmo a China, apesar da fama – e proveito – de comer tudo o que se mexe. Mas o país mantém algum horror aos laticínios, e qualquer restaurante popular oferece um bom punhado de suculentos pratos veganos de fazer inveja a qualquer restaurante vegan friendly europeu. E depois há a Índia, claro, onde a maior parte da população é lacto-vegetariana e vive obcecada com leite e ghee (manteiga clarificada), o que faz com que seja difícil comer um doce que não tenha algum destes produtos. Mas que os há, há: são de fruta ou de pistácios, e são deliciosos! De qualquer modo, seria uma ingrata se me queixasse do país que inventou a masala dosa.
Se prestarmos atenção ao que comemos, vamos sempre encontrar coisas inexplicáveis durante as viagens. O mistério de um prato de batata frita ser caríssimo, enquanto um filete de salmão é ao preço da chuva, no sul do Chile (onde por acaso até chove bastante), ou as expectativas goradas sobre a comida em Myanmar, país essencialmente budista e de abundância vegetal. Por que é que tive de explicar num restaurante em Portugal que o atum, lá por ser de lata, não é classificado como planta, ou por que é que os tabus alimentares de uns (cão e gato, no ocidente) são petiscos para outros. Por que é que das cerca de duzentas qualidades de batata existentes na Bolívia acabamos por só provar duas ou três, ou por que é que num dos maiores produtores mundiais de baunilha (Madagáscar) a vagem simplesmente não é usada na comida. São coisas da vida que nem pretendo discutir.
Poderia terminar dizendo que em viagem o que comemos não tem importância, desde que nos mantenha vivos. Mas acontece que gosto muito de comer e aproveito sempre os meus périplos para “pescar” mais algumas receitas para o Comedores de Paisagem. Uma coisa é certa: um vegetariano só passa fome se quiser – ou se andar muito distraído.
* Um vegetariano a 100% é um vegano, ou seja, alguém que não consome (nem usa) nada de origem animal.
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