Como uma faca afiada, o Chile estende-se ao longo do oceano Pacífico, empurrado para o mar pela cordilheira andina. Santiago fica no centro desta tira estreita, como um nó feito com a faixa amarela do norte desértico, e a tira verde e húmida do sul. Um roteiro de viagem a Santiago.
Amanhecer em Santiago
A cidade demora a acordar. Na Alameda, os transportes públicos despejam pessoas, às golfadas, que se dispersam rapidamente pelas ruas, deixando atrás de si o ressoar dos tacões nos passeios de cimento.
Pelo Paseo Ahumada, ainda de portas fechadas, passam os raros madrugadores da baixa, e alguns funcionários de uniforme urbano: saia-casaco de cores discretas ou fato com gravata a condizer. O sol demora a chegar ao fundo das ruas estreitas de prédios acinzentados que formam as quadras, bairros em ângulo recto que aparecem nos mapas com um inevitável ar de favo.
O centro fica entre a Alameda (Avenida General O’Higgins), o rio Mapocho e a via Norte Sul, formando um triângulo recheado de locais interessantes e agradáveis, incluindo ruas de peões, jardins e praças calmas, onde o cidadão menos stressado pode tirar o retrato ou jogar xadrez.
É aqui que se descobre o lado mais provinciano de uma cidade que cumpre os requisitos de qualquer capital: subúrbios pobres, bairros ostensivamente ricos, intensa migração interna em busca de emprego, e nuvens de poluição, que os Andes impedem de avançar para o centro do continente.
Em direcção ao centro vão aparecendo casas de comida rápida: hambúrgueres, frangos assados, refrigerantes. Empregados fardados – as mulheres com saias curtíssimas – servem cafés rápidos a quem vai começar mais um dia de trabalho.
As ruas de peões, que formam uma cruz no coração da cidade, enchem-se de uma multidão activa, até o crepúsculo a dispersar de novo. Não faltam polícias, para prevenir uma criminalidade crescente mas pouco violenta, com números ainda muito pouco assustadores para uma cidade a caminho dos cinco milhões de habitantes – cerca de um terço da população do país.
Um amigo aconselha-nos a ter cuidado junto a um mercado de flores e fruta: “Eu fecho sempre o vidro do carro, que me podem tirar os óculos ou qualquer coisa que esteja à mão”. Apesar de tudo, o centro de Santiago não perde o seu ar acolhedor que lhe dão as ruas arborizadas, frescas e espaçosas.
Junto ao Rio Mapocho, uma zona ajardinada, com pontes e bancos de madeira, atrai pares de namorados e lembranças de Paris num fim de tarde, quando as diferenças se esbatem. O mercado, ali próximo, é uma bela estrutura de ferro com interiores recortados por vidros, que deixam passar a luz.
No centro estão as frutas e os legumes empilhados – os abacates são dos melhores do mundo – e, à volta, pequenos restaurantes para todas as bolsas oferecem menus de peixe e marisco frescos, não fosse o Chile um dos maiores produtores mundiais. Mercearias, talhos e peixarias acabam de encher o interior e exterior do mercado, frequentado por todos na hora das compras, ou do almoço de negócios.
Apesar de algum tempo na Argentina – ou, se calhar, por isso mesmo – o meu castelhano é mal compreendido; interpeladas, as pessoas sorriem e olham em volta, como que a pedir ajuda.
Mas conseguimos, com o mínimo de desvios, descobrir o hotel que nos interessava: uma casa lilás, de corredores labirínticos forrados a madeira, com um pátio habitado por uma dezena de gatos e cães, e o acesso aos quartos feito por uma porta dissimulada na parede, como nos filmes de castelos assombrados, garantindo privacidade e sossego.
À volta fica a turbulência de uma cidade de trabalho, com um tráfego maioritariamente fumarento e ruidoso. Autocarros de nariz pontiagudo rugem ferozmente ruas acima, ecoando nos prédios de apartamentos que vão crescendo um pouco por todo o lado, ferindo violentamente o ar pacato do centro.
Torres modernas e espelhadas, “estilo Los Angeles”, como se lhes referiu um santiaguense, já chegaram até bem perto da Plaza de Armas. Os tempos são mesmo de mudança, lenta mas firme.
Ao fim da tarde, pelas ruas pedestres ou frente à antiga e histórica catedral, diversos grupos evangélicos protestantes oferecem a salvação, alguns com ênfases teatrais de cânticos e discursos inflamados que roçam a histeria.
De braços cruzados, há sempre quem pare para escutar. Há alguns anos, qualquer ajuntamento espontâneo nas ruas não seria tão pacífico mas, francamente, já não há nada que nos lembre isso.
Os anos negros de Pinochet
É certo que se passaram dez anos, mas no imaginário europeu é difícil separar o nome “Chile” dos dezassete anos de terror político e militar dirigidos pelo general Pinochet.
O estádio de Santiago, onde Vitor Jara padeceu com um número que nunca se conhecerá ao certo de cidadãos chilenos, fica para sempre como um monumento a uma sanguinária falta de desportivismo político.
O Palácio de la Moneda, cinzentão e feio como uma prisão antiga, foi cuidadosamente recauchutado após o bombardeamento que tirou a Allende o poder e a vida, e continua a servir de cenário a desfiles militares e fotografias de grupo.
A guarda é rendida de dois em dois dias, com uma charanga que toca modinhas simpáticas e pouco militares, como o tema do filme “Flashdance”. À volta, os edifícios parecem-se todos com a caixa-forte do Tio Patinhas.
Os números falam por si: quatro a cinco mil assassinados, cerca de setecentos mil desaparecidos – e quando damos conta de que foi a própria Igreja Católica a fornecer estes números, e a funcionar como o elemento mais revolucionário da sociedade, então percebemos que as coisas estiveram mesmo mal.
A popularidade do catolicismo firmou-se nesta altura mais do que nunca, com padres e outros elementos da igreja a servirem de barreira entre o Estado e as populações, muitas vezes com risco da própria vida. Assassinatos de opositores políticos foram perpetrados em Espanha, na Argentina e nos Estados Unidos, pródiga e eficazmente, durante os anos oitenta. Como por milagre, nada transparece na vida da cidade.
Não há monumentos, placas comemorativas do regresso à liberdade, vestígios materiais de uma época de horrores. E, no entanto, como nos diz Álvaro, jovem fotógrafo do moderno bairro de Las Condes, “todos conhecemos pelo menos uma pessoa, ou uma família, que teve alguém preso ou perdeu alguém. Os argentinos sofreram, mas aqui foi dez vezes pior”.
Santiago e o Chile no pós-ditadura
Esta foi, diga-se a verdade, uma prolongada excepção à regra numa história onde, de modo algum, sobressaem os regimes militares. Como em toda a América do Sul pós-colonização ibérica, a independência não trouxe grandes mudanças na estrutura social: as famílias que detinham latifúndios e poder assim continuaram, bem para lá dos anos sessenta.
A longo prazo, assustados com o modesto socialismo de Allende, numa América sempre à beira de um ataque de revolucionários radicais, foram a base de apoio de um exército assassino que reinou impunemente até 1989. Foi também esta poderosa minoria que permitiu o escorregar lento de Pinochet para chefe do exército e senador vitalício (!), com o mínimo de inquéritos incomodativos e o máximo de amnistias e desresponsabilizações.
Em vez de mais perseguições, desta vez em sentido contrário, optou-se pela pacífica “via do silêncio”, com as vozes dos familiares de assassinados e desaparecidos a clamarem no deserto. Todos querem esquecer este incomodativo período da história do país – mas alguns não podem.
Paciente e submisso, porém, o povo chileno não parece dado a vinganças ou rasgos revolucionários. Depois de Patricio Aylwin, que sucedeu a Pinochet, o presidente Eduardo Frei tem sabido conduzir uma política de conciliação nacional e reconstrução económica de sucesso, levando o país a um crescimento médio que já atingiu os 5% ao ano.
O povo indígena de Santiago
Da “gente da terra” – quatro tribos a norte e uma dezena de outras no sul – resta o Monumento al Pueblo Indigena, na Plaza de Armas.
Ironicamente, lembra uma imagem estilhaçada que se tentou reconstruir sem sucesso. No entanto, em 1541, ainda mal Pedro de Valdívia tinha fundado Santiago e já os Mapuches a tinham cercado, obrigando as tropas espanholas a retirarem-se para o cimo fortificado do Cerro de Santa Luzia.
Durante alguns anos, a cidade sofreu a pressão constante destes ataques, e Santiago del Nuevo Extremo teve dificuldade em crescer, na forma típica de favo em volta da Plaza de Armas, como todas as ex-colónias espanholas da América do Sul. Valdívia foi alargando o território durante o século XVI, mas só no século XVIII é que a cidade começou a tomar ares de capital, com a construção de diques para dominar o imprevisível rio Mapocho, a melhoria das estradas e comunicações com o porto de Valparaíso, a construção da linha férrea e a instalação do telégrafo.
O domínio colonial terminou no século XIX, com a população indígena empurrada para longe de Santiago, a sul do rio Biobío, e a cidade tornou-se uma das maiores e mais importantes do continente. Apesar de, como qualquer outra capital, condensar em si uma interessante amostragem das etnias e culturas do país, para encontrar os Mapuches, o lugar mais próximo de Santiago continua a ser o sul.
Em algumas aldeias em redor de Temuco, vivem os “resistentes” com os seus xamanes, em ilhas de pobreza e analfabetismo e, apesar de serem cerca de 800.000, a sua cultura está quase reduzida a curiosidade para sociólogos. Vêm à cidade vender produtos da terra e mezinhas no mercado local, e os seus olhares evitam-nos sempre.
No entanto, foram os que mais problemas causaram aos conquistadores e, mesmo após a independência, os territórios a sul do Biobío continuaram nas mãos dos seus caciques, até que negociações e tratados feitos no fim do século XIX os incorporaram, por fim, no Chile.
Para uma bela panorâmica sobre a cidade, sobe-se ao Cerro San Cristobal com o funicular, passando pelo jardim zoológico com o seu intenso cheiro a selva e gritos de araras prisioneiras. Santiago estende-se até se perder junto à linha parda dos Andes, onde permanecem manchas brancas de neve.
Do alto, não nos damos conta da desmesurada Alameda: cem metros de largura e três quilómetros de comprimento, percorridos por um tráfego intenso. Sentados junto ao Santuário da Virgem Imaculada, alguns artistas treinam o traço sobre a paisagem.
Vistas de longe, as zonas de arranha-céus são muito restritas; predominam as casinhas cinzentas com algum verde à volta, que se confundem com a cor poeirenta do chão. O Cerro ergue-se num dos pulmões da cidade, o Parque Metropolitano, grande espaço recreativo com jardins, cafés, restaurantes e piscinas, tudo coroado pela enorme estátua da Virgem que olha pela cidade, junto à qual o papa João Paulo II rezou uma missa, durante a sua visita ao país, em 1984.
Em baixo, junto à entrada do funicular, fica o “Quartier Latin”: a avenida Pio Nono e o bairro Bellavista, com as suas cervejarias e restaurantes cosmopolitas, do grego ao alemão, do árabe ao italiano. Já foi a zona boémia da cidade, onde habitou Pablo Neruda, e uma das suas casas foi transformada em museu, oferecendo visitas guiadas ao universo do poeta, falecido pouco depois do golpe militar de Pinochet.
Com dois Prémios Nobel da Literatura (Gabriela Mistral e Neruda) na área da poesia, o Chile orgulha-se também de uma das mais altas taxas de literacia do seu continente: cerca de 94% da população tem a chance de, um dia, poder ler a obra dos dois poetas nacionais.
Para já não falar do excelente e actual Luís Sepúlveda, contador nato de histórias chilenas, ou de Isabel Allende, sobrinha do malogrado presidente. E para ver um chileno ficar verde de raiva, basta perguntar se Neruda não era, por acaso, argentino…
Originalidade do Chile
Que não haja dúvidas sobre a originalidade do Chile. O país começou aqui mesmo, em Santiago. Juntamente com a intendencia de Concepcion, formava um núcleo que, ao longo da história, havia de crescer em direcção ao norte e ao sul, sempre ao longo dos Andes.
Desde o início que o Chile teve uma população mais restrita, unida e homogénea que a maioria dos outros países sul-americanos. Com os seus primeiros habitantes reduzidos a números baixíssimos, por doenças e perseguições que chegaram com os espanhóis, hispânicos e mestiços constituem, desde cedo, a maioria.
As conquistas territoriais feitas durante a Guerra do Pacífico (1879-1883), que permitiram anexar zonas do Peru e da Bolívia, trouxeram mais algumas etnias, nomeadamente dos Andes e do Atacama, que se juntaram à bandeira chilena sem alterar os números globais. O Peru e a Bolívia é que nunca tragaram muito bem esta perda territorial – especialmente este último país, que perdeu o único acesso ao mar que possuía.
Situada a 90 quilómetros da costa e do grande porto de Valparaíso, a capital não tem sido contestada, consolidando sempre a sua centralidade geográfica e política. Alguns quilómetros a norte, a paisagem ameaça desertificar-se em direcção ao interior, transformando-se numa linha amarela.
Os últimos tufos verdes ficam ali por Antofagasta, antes de entrarmos no quase ininterrupto deserto de Atacama, o mais seco do mundo, com os seus salares de um branco ofuscante. Para sul, o verde vai-se acentuando na Região dos Lagos, até entrar no nevoeiro húmido e definitivamente musgoso da selva que cobre os fiordes, alterna com glaciares e termina na inóspita e fria Terra do Fogo.
Santiago é o nó que une estas duas tiras de terra tão diferentes, um nó físico e cultural criado pela própria história do país.
Santiago do Chile nos dias de hoje
Na última década, com o aumento populacional concentrado nos bairros suburbanos, os níveis altíssimos de poluição do ar, água de qualidade duvidosa e monumentais engarrafamentos nas vias principais, cada vez se torna mais necessário afinco e boa vontade para encontrar a cidade do início do século, com as suas casas construídas à volta de um pátio arborizado, gozando todo o recato e sossego de pequenas ilhas.
Cercado pela austera catedral, o Museu Histórico Nacional e os correios centrais, fica o jardim da Plaza de Armas, espaço para turistas, famílias, fotógrafos, cabinas de telefone parecidas com palmeiras e grupos silenciosos de jogadores de xadrez, instalados no coreto. Daí à rua comercial de Huérfanos são dois passos.
Seguindo para oeste, atinge-se o Cerro Santa Lucia, outra das zonas mais agradáveis da cidade. Para além de coração histórico de Santiago – e do país – é um aprazível e muito concorrido parque entrecortado de jardins, passeios e fontes, até à espécie de varandim acastelado que ocupa o cimo, com vistas sobre a Alameda e o topo dos prédios, com uma linha de fog a pairar sobre os telhados.
Após alguns dias de passeios, a pé e de autocarro, em várias direcções, não descobri nenhum outro lugar como o carrossel sempre animado da Plaza. À volta do jardim há um movimento constante de peões, entre os quais circulam loucos, missionários, polícias e vendedores de café, com o aromático cilindro metálico ao peito, fazendo o consolo de quem passa algum tempo por ali.
Não faltam restaurantes e esplanadas perto, onde se descobrem óptimos rissóis de choclo (milho) e caris indianos. Nas ruas de peões, músicos e vendedores ambulantes de tudo – fruta, comprimidos, ervas, cremes e plásticos – animam o ambiente.
Durante vários dias seguidos, dois cegos conseguiram uma boa audiência, debitando tangos com a ajuda de um acordeão e um piano eléctrico. Os passantes paravam, acompanhavam a letra com os lábios, pediam o tema seguinte, sussurrando ao ouvido de um dos músicos.
Apesar de argentino, este drama em música, o fado da América Latina, não é desdenhado pelos santiaguenses. Um louco dançava, despertando sorrisos. Pela televisão, soubemos que Santiago tem uma das mais altas taxas do mundo de problemas mentais, e é frequente encontrá-los pelas ruas, alheios e inofensivos, dançando ou falando para si próprios.
Para o bem e para o mal, o Chile parece ter optado por olhar em frente e sacudir o passado, com Santiago a liderar o caminho. Sem ter a confiança na humanidade da minha amiga Nena, excelente alma santiaguina na casa dos sessenta (“Se fosse hoje, a comunidade internacional não deixava que isto acontecesse, pois não?”), poderia dizer-se que a paz que se sente na capital é imutável e sempre esteve lá.
Quem chega não sente medos ou ódios. Não nota os dez anos de paralisia democrática. Não vê atrasos no “progresso” que, nas sociedades ocidentais, se contabiliza pelos números da economia. Semente conciliadora de almas e territórios diversos, Santiago pode dizer que lidera, hoje, um dos mais auspiciosos países da América Latina.
Veja também o post sobre viver em Santiago.
Guia prático
Este é um guia prático para viagens a Santiago, com informações sobre a melhor época para visitar, como chegar, pontos turísticos, os melhores hotéis e sugestões de actividades na capital chilena.
Chile: informações gerais
O Chile é um país longo e estreito, com a cordilheira andina a delimitar as fronteiras com o Peru, a Bolívia e a Argentina; do lado oposto fica o Oceano Pacífico. Tem 4.300 km de comprimento, uma média de 175 km de largura, e a sua variedade geográfica abrange fiordes, glaciares, vulcões, ilhas e o deserto de Atacama, a Norte, que é o mais seco do mundo, com uma precipitação que não ultrapassa as quatro chuvadas por século.
Como chegar a Santiago
Os voos para Santiago do Chile, via Rio de Janeiro, ficam por cerca de 1.200 euros, utilizando combinações de voos entre a Iberia, TAP e Lan Chile, dependendo do aeroporto de partida.
Onde ficar
Não faltam hotéis em Santiago, para todos os gostos, localizações e orçamentos. Para informações mais actualizadas consulte a lista abaixo, que contém uma selecção dos melhores hotéis da cidade.
Seguro de viagem
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